Os aeroportos e a experiência de lugares e não-lugares

Aeroportos. Apenas aqueles que não viajam constantemente é que os acham glamorosos – isso é um facto. Para aqueles que vivem uma vida como Ryan Bingham, personagem de George Clooney na comédia romântica, Up in The Air, que viveu de aeroporto para aeroporto e de cidade para cidade despedindo pessoas, este não é o caso.

Tirar e calçar sapatos e cintos, recuperar computadores portáteis, preocupar-se com o tempo, o trânsito, e claro, noites sem dormir devido a horários de voo muitas vezes hostis, tornam todo este processo muito mais stressante do que agradável.

Mas, mesmo que saibamos que é por razões de segurança, o que nos obriga a chegar mais cedo cada vez que voamos, porque é que os aeroportos continuam a ser sempre tão genéricos e sem alma?

“Não importa em que parte do mundo se está, o ambiente aeroportuário é quase sempre genérico, sem personalidade. Esta falta de personalidade confere aos aeroportos, na sua maioria, um estatuto de “não-lugares”.

O que são lugares e não-lugares?

Locus – a origem latina do termo “lugar” – é algo que não causa qualquer estranheza ou falta de familiaridade. O termo “não-lugar” é, por sua vez, desconhecido para muitos de nós. Para compreender o seu significado, deve-se seguir a geografia humanista, mais especificamente utilizando Yi Fu Tuan como chave do esqueleto, especialmente quando diz: “O espaço torna-se um lugar à medida que adquire definição e significado. Quando o espaço nos é totalmente familiar, torna-se um lugar”.  

Espaços, lugares e não-lugares

Marc Augé refere-se no seu trabalho homónimo aos não-lugares como não tendo aspectos simbólicos suficientes para serem considerados lugares. São genéricos e podem estar em qualquer outro sítio em qualquer outro contexto. Mas se são genéricos, porque não são considerados espaços? Precisamente porque têm uma função clara, mesmo que não sejam dotados de significado. Portanto, estes “lugares funcionais” encontram-se a meio caminho entre espaços e lugares.

Vamos fazer um exercício hipotético como Caio Esteves, Sócio e Diretor Global de Placemaking da Bloom Consulting, sugeriu no seu livro de 2016, Place Branding. Imagine ser vendado e transportado para um qualquer aeroporto algures no mundo. Quando lhe retirarem a venda, conseguirá dizer, com certeza, em que país se encontra? Não tem sequer de ser a cidade, apenas o país. Difícil, não é?

Lugar e alma

Ouvimos frequentemente o termo “alma do lugar”. Embora seja relativamente fácil imaginar o estado de espírito do lugar, nunca vamos muito mais longe que isso.

Genius Loci é um termo latino que se refere ao “espírito do lugar” ou o Deus/Genius que rege o lugar habitado pelo homem. Este “génio” foi adorado pelos romanos e apareceu por volta de 27 AC. Milénios depois, Christian Norberg-Schulz assumiu o termo para se referir à identidade do lugar através de uma abordagem fenomenológica, e como resultado, tudo se tornou mais palatável.

Estarão os aeroportos condenados a não ser lugares?

Embora numa grande parte do mundo os aeroportos nos enviem para a tristeza das filas, horários e pouca diversão, alguns lugares começaram a compreender uma afirmação extremamente simples e óbvia.

“Um aeroporto é o primeiro ponto de contacto e, ao mesmo tempo, a última memória de um destino.”

Por outras palavras, os aeroportos têm a vocação, além de serem portais que nos levam do ponto A ao ponto B mais rapidamente e são também portais para a cultura local. Desta forma, para além de ligarem os passageiros à cultura local, eles próprios podem tornar-se destinos.

Na Bloom Consulting, utilizamos Placemaking.ID®, a nossa própria metodologia, para empilhar camadas intangíveis e tangíveis, ou seja, o conceito que define o lugar, ou a sua alma se preferir, com experiência sensorial no espaço físico, criando significados e experiências que transformam os não-lugares em lugares.

Nem tudo está perdido

Alguns lugares já compreenderam o poder dos seus aeroportos e experimentaram investir fortemente na sua transformação de não-lugares em lugares. O caso mais conhecido, também por ter sido um dos primeiros, é o Aeroporto Changi de Singapura.

Muito mais do que a piscina, que colocou pela primeira vez o aeroporto no mapa, em 2019 foi inaugurada uma nova área chamada A Jóia. Tem 135.700m2 de área e exigiu um investimento de 1,3 mil milhões de dólares. Esta área é formada por um enorme centro comercial que rodeia um enorme jardim e liga os diferentes terminais do aeroporto. 256.000 pessoas visitaram o aeroporto no seu primeiro dia de funcionamento, em Abril de 2019. Mas o que torna The Jewel realmente especial, para além de toda a pirotecnia, é o facto de o aeroporto ter agora a perspetiva de fornecer mais catering aos residentes de Singapura do que aos viajantes per se, com uma proporção de seis visitantes em cada dez habitantes da cidade em relação ao total de visitantes.

Outro exemplo digno de nota é o novo aeroporto de Istambul. Sem a mesma fama que o seu homólogo de Singapura, o aeroporto turco foi eleito o melhor aeroporto do mundo na revista Condé Nast Traveler 2022 Reader’s Choice Awards. Para além da sua imensa dimensão – algo que se tornou padrão nos novos aeroportos – o aeroporto de Istambul tem talvez a melhor curadoria de lojas e restaurantes de qualquer aeroporto do mundo. Ao contrário das lojas padrão encontradas em aeroportos de todos os continentes, Istambul chama a atenção para o enorme Bazar na área central do aeroporto, emulando um bazar tradicional que oferece produtos locais e típicos – algo raramente visto em outros grandes aeroportos. Outro ponto positivo é a sensacional sala de espera da Turkish Airlines, uma companhia aérea turca que é constantemente listada como uma das melhores do mundo. A comida local e a arquitetura invejável transportam o viajante exatamente para onde ele está, ou seja, ligam o viajante à cultura local, mesmo que estejam apenas de passagem.

Conclusão

Alguns destinos começaram a entender o poder dos seus aeroportos e a necessidade de lhes dar não só uma identidade, mas também uma camada de experiência capaz de oferecer uma agradável oportunidade às pessoas que esperam pelos seus voos, e um ponto de ligação e sedução em relação à cidade e ao país onde se encontram. A piscina ou o jardim em Changi ou o antigo Bazar no IST, o facto é que as camadas de Place Branding e Placemaking parecem essenciais e indispensáveis aos novos aeroportos do século XXI, onde mais do que lugares funcionais procuramos experiências com significado, especialmente num momento em que o mundo está a recuperar do impacto da pandemia e onde as viagens de negócios podem nunca mais voltar aos níveis anteriores a 2020. Uma vez que precisamos de viajar, que seja através de lugares que sejam simultaneamente eficientes e agradáveis, com experiências autênticas e substitutos significativos para não-lugares que pouco acrescentam a todos nós.

Texto Extraído do Site: Bloom Consulting Journal.(https://www.bloom-consulting.com/journal/pt-pt/os-aeroportos-e-a-experiencia-de-lugares-e-nao-lugares/)
Foto de Capa: Caio Esteves
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A Cidade Antifrágil

Já não é notícia que o mundo tenha sofrido grandes mudanças, não necessariamente rupturas, mas certamente acelerações. Os processos em curso têm sido melhorados, e décadas passaram em meses. Entre estes processos, a desterritorialização e desmaterialização têm impactos diretos nas cidades e lugares.

Se, por um lado, vimos o trabalho transformar-se, deixando escritórios e ocupando casas, o mesmo aconteceu com as cidades com as suas ruas vazias. As nossas casas tornaram-se um escritório, e a Internet tornou-se a nossa cidade. A nossa relação utilitarista com as cidades foi alterada. Deixa de ser um cenário, para se tornar um protagonista em tempos pós normais. A tecnologia proporciona-nos quase tudo o que precisamos, incluindo a interação social, e até lá algo do domínio das cidades. Se as cidades são essencialmente o lugar de interação e oportunidade e essa interação já não se realiza no mundo físico, o que é “a cidade” agora?

Embora muitas destas questões ainda não tenham respostas objetivas, o que é claro é a necessidade das cidades se adaptarem a isto, e a novas realidades que certamente surgirão. Pouco antes disso, surge a ideia de uma cidade antifrágil. Na realidade, a ideia começou a tomar forma em meados de 2018, antes de toda esta loucura. O carácter hermético de muitas cidades e a dificuldade em lidar com as perspectivas do futuro de uma forma que não fosse pouco previsível já estavam a emergir como indicadores chave no trabalho de Placemakers.

A ideia de anti-fragilidade, muito discutida durante a pandemia, foi criada pelo autor Nassim Taleb, no seu bestseller “Antifragile”. Ao contrário da fragilidade e como uma espécie de evolução para a resiliência, a anti-fragilidade não se extingue após um acontecimento traumático como a fragilidade, nem regressa à sua forma original, como a resiliência. Aprende com as crises e evolui. Embora possa parecer inalcançável no início, este conceito já é utilizado em algumas indústrias, sendo a mais notória a aviação comercial. Depois de um acidente, a única certeza que temos é que no dia seguinte será mais seguro voar.

Mas o que é uma cidade antifrágil?

Essencialmente, uma cidade antifrágil é um organismo dinâmico, plural e adaptável. O conceito pode ser definido por uma simples equação, fundada por Caio Esteves em 2018: Identidade + Vocação x Opcionalidade

A identidade é certamente o ponto de partida, tal como no Place Branding. É necessário compreender profundamente o lugar em questão, a sua cultura e o comportamento das pessoas que o utilizam, tanto residentes como não residentes. A vocação, por sua vez, compreende o que o lugar produz e pode oferecer hoje, de uma forma tangível e intangível. Mais importante ainda, trabalha para compreender o que poderá oferecer no futuro, com base na sua identidade única.

A opcionalidade é o “novo” conceito aqui. Escrevemos entre aspas porque o termo é relativamente novo, mas a ideia é ancestral. Podemos dizer que a opcionalidade, outro termo talibiano, nada mais é do que não colocar todos os ovos num cesto, o conselho de uma avó em qualquer parte do mundo. Nesta perspectiva, olhando sempre para a sua identidade e vocação, os lugares deveriam desenvolver um número considerável de sectores de desenvolvimento económico em vez de um único, como vemos acontecer com demasiada frequência, por muito absurdo que possa parecer. Na altura da COVID-19, a falta de opcionalidade teve consequências dramáticas para vários destinos. 100% (ou perto) das cidades dependentes do turismo passaram por momentos muito delicados devido à falta de visitantes durante o encerramento, tanto a nível interno como externo.

Para além da equação original

Era evidente que os três elementos da equação original não seriam capazes de lidar com a complexidade da abordagem proposta. Tornou-se necessário criar uma nova camada de elementos dentro de cada um dos conceitos originais.

Imagem retirada do livro Antifragile Cities de Caio Esteves.

Através desta evolução, somos capazes de incluir elementos essenciais ao pensamento antifrágil. Embora todos sejam essenciais, neste texto gostaríamos de destacar três deles, que se têm revelado evidentes face aos acontecimentos recentes: Participação Comunitária, Vitalidade Comunitária e Supra territorialidade.

Como uma cidade é feita por pessoas e para as pessoas, vamos começar por aí. Se, por um lado, a pandemia nos isolou dentro das nossas casas e as reuniões se transformaram em videoconferências, a nossa necessidade de um sentido de comunidade, quer física ou virtual, nunca foi tão forte. Foi este sentido de vida e de comunidade que nos fez passar pelos nossos altos e baixos em termos de saúde mental e física ao longo deste último ano. Ainda mais do que isso, a composição do mundo como uma enorme aldeia global era igualmente aparente, como diria McLuhan há mais de cinquenta anos atrás.

Ao mesmo tempo, estamos a viver um paradoxo, enquanto a globalização se apresenta como imparável, assistimos ao nascimento de um novo tipo de localismo. Isto toma forma não só a nível político micro-local, lançando luz sobre a importância do conhecimento local da própria casa (país, região e cidade), bem como a sua compreensão da importância do comércio e produção locais. Estes aspectos do localismo contribuem para a sobrevivência das comunidades em todo o mundo. O resultado final é que, independentemente da escala, já há bastante tempo que nós, como pessoas, estamos tão cientes da nossa dependência da comunidade local. 

À luz destes acontecimentos recentes, é essencial que as cidades criem esferas amigáveis de micro-decisão capazes de envolver a comunidade nas decisões sobre o seu futuro. Em todo o mundo, temos visto muitos exemplos da importância da comunidade, do seu envolvimento e da sua vitalidade. Os governos locais tiveram um melhor entendimento, e em certos casos, um melhor desempenho no combate à pandemia do que os governos nacionais. A nível local, as organizações estão mais próximas do problema e, portanto, da população. Quanto maior for o grau de envolvimento e compreensão, maiores serão os esforços para combater o problema em questão, criando assim sistemas de apoio eficientes a um nível com o qual as pessoas se possam relacionar.

Para além do território

Finalmente, precisamos de falar sobre algo a que chamamos supra territorialidade, que é essencialmente a ideia de que um lugar é muito mais do que o seu território. Este é outro ponto inexplorado por lugares de todo o mundo com muito raras e brilhantes excepções. Se a tecnologia se tornou a nova cidade, ou pelo menos a Internet, é imperativo pensar em cidades e lugares como indo para além das suas fronteiras físicas e dimensões. Esta não é uma abordagem esotérica; é pura evidência de um comportamento acelerado pela pandemia. Estamos a ir além do desenvolvimento de aplicações, e precisamos de gerir comunidades que não se encontram necessariamente dentro do mesmo território. Precisamos de compreender de uma vez por todas o significado das nossas cidades, e qual é a sua identidade e vocação para serem conhecidas para além do seu território.

No fim de contas, mesmo com a tecnologia moderna, a cidade antifrágil tem tudo a ver com pessoas.

Texto Extraído do Site: Bloom Consulting Journal.(https://www.bloom-consulting.com/journal/pt-pt/a-cidade-antifragil/)
Foto de Capa: Caio Esteves
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Passo 10. Um lugar vai muito além do seu território

Pense em experiências digitais e não presenciais.

Um lugar vai muito além do seu território

A desterritorialização ficou ainda mais evidente após a pandemia de Covid-19. É preciso pensar em experiências além da esfera física e presencial.

Um dos conceitos muito falado pela gente desde o início de 2020 é a desterritorialização. Termo criado por Deleuze e Guattari posteriormente adotado pela geografia e antropologia, que define a desconexão entre povo (cultura) e território.

A desterritorialização foi um dos aprendizados da pandemia, a ideia de que uma vez que estamos todos trancafiados dentro de casa, o lugar onde essa “casa” está na verdade faz pouca diferença, ou seja, no mercado imobiliário, cai por terra o mantra: location, location, location, ou pelo menos a forma como o “lugar” era trabalhado originalmente.

With this in mind, it is worth reflecting on the need for an experience beyond the territory, or as Caio Esteves called it in the book Cidade Antifragil (Antifragile City) – supraterritoriality.

Diante disso cabe a reflexão sobre a necessidade de uma experiência além do território, ou como o Caio Esteves chamou no livro “Cidade Antifrágil” Supraterritorial.

Essa talvez seja uma das dimensões do Placemaking.ID® mais complexas, não pela sua dificuldade em si, mas pela dificuldade de pensar a cidade além do seu território, como vem sendo feito desde sempre.

Pensar de forma supraterritorial é promover experiências que vão além da dimensão física e presencial, é preciso levar o lugar, a cidade, para outra esfera, a virtual (ainda que não necessariamente digital).

É preciso levar o lugar até as pessoas para que a experiência e os ativos desse lugar possam ser vivenciados ainda que à distância. Isso tem menos a ver com o tão falado metaverso e mais a ver com saber com precisão os ativos e características do seu lugar e pensar em formas de conectálo às audiências interessadas

Lembre-se

  • Um lugar é feito pelas pelas pessoas, logo ele é mais do que o próprio território, portanto, a experiência não deve estar vinculada exclusivamente à dimensão física.
  • Crie formas de conectar sua audiência aos ativos do seu lugar, se as pessoas não podem ir até você, você deve ir até elas.
  • Esqueça o metaverso (ou pelo menos não comece por ele), existem formas muito mais simples de levar a experiência do seu lugar até as pessoas. Esqueça também as saídas mais fáceis como apps, como se eles, independente do que estiver embarcado, fossem a solução para todos os problemas. Apps são mais ferramentas de governança do que experiências supraterritoriais, embora possam servir aos dois propósitos quando bem elaborados.

Texto Extraído do Site: Bloom Consulting Journal.(https://www.bloom-consulting.com/journal/pt-pt/passo-10-um-lugar-vai-muito-alem-do-seu-territorio/)
Foto de Capa: Caio Esteves
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Passo 4. Crie uma visão compartilhada

Crie junto à comunidade e stakeholders a visão que orientará as ações do lugar.

Crie uma visão compartilhada

“Uma visão de futuro ajuda a alinhar expectativas,estabelecer estratégias, objetivos e, tão importante quanto, métricas de sucesso.” 1

Uma visão compartilhada entre a comunidade e stakeholders é essencial para a junção de esforços em uma única direção, assim otimizamos investimento de recursos e energia em uma ideia já pactuada pela comunidade e capaz de orientar todas as suas ações, do planejamento urbano ao desenvolvimento econômico, passando pelo marketing e até pelo design.

Aqui não falamos de nada próximo à visão e missão do marketing, que muitas vezes só serve para enfeitar recepções de empresas, sendo que ou são compostas por conceitos genéricos, ou de uma arrogância inalcançável, ou ainda pior, algo que ninguém sabe o que significa ou por que está ali.

A visão no Placemaking.ID® é a manifestação da Ideia central da marca-lugar, sendo ela o conceito que materializará essa ideia central no ambiente urbano, compartilhado, comum. É a partir da ideia central que alinhamos a visão pela qual o lugar se organizará, a sua promessa, singularidade e diferenciação. É através da visão que o lugar cumpre o seu propósito e concretiza sua promessa.

Vale lembrar que falar em visão é falar em identidade e vocação, nem todos os sonhos são possíveis em todos os lugares, é preciso uma análise criteriosa levando em conta viabilidade e impacto.

Lembre-se:

  • Se a visão não for compartilhada, ela não passa de uma ideia.
  • Fuja da armadilha dos modismos, o que pode ser tendência de mercado hoje, pode não fazer nenhum sentido para o seu lugar, nem hoje, e nem no futuro.

Texto Extraído do Site: Bloom Consulting Journal.(https://www.bloom-consulting.com/journal/pt-pt/passo-4-crie-uma-visao-compartilhada/)
Foto de Capa: Caio Esteves
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A importância da vida comunitária no mundo pós-normal

ERA UM DIA ENSOLARADO. Após uma busca na Internet, verifiquei que o ano era 2013 – eu não tinha percebido que havia se passado tanto tempo. Depois de pousar em Florianópolis, ainda muito cedo fui levado a um bairro que parecia muito distante naquele momento. O trânsito pesado da Ilha de Santa Catarina, chamado de “fila”, para surpresa de um paulista que supostamente entende de trânsito, parecia aumentar ainda mais a distância.

A Pedra Branca recebe, tradicionalmente, visitantes de todos os lugares, interessados em ver a consolidação de ideias que ainda hoje são raras no mercado imobiliário brasileiro e, comumente, precisam de dez a doze horas de voo para serem vividas em outros lados do mundo. Naquele dia, eu era mais um desses visitantes. Eu estava numa missão com outros empreendedores de São Paulo, meus clientes, numa época em que eu acabara de começar no tal place branding, conceito que, assim como o do Novo Urbanismo, precisava de muitas horas dentro de um avião apertado para ser vivenciado. Lembro-me do Passeio Pedra Branca ainda em construção, com uma única operação comercial. Lembro bem da praça central, do mega estande de vendas. Eu não parava de pensar onde aquilo poderia chegar, com uma comunidade estruturada e engajada. Saí de lá ansioso para ver o lugar em todo o potencial, o qual, naquele momento, eu já imaginara.

Quando me convidaram para escrever esse texto, fiz um rápido retrospecto de quando voltei à Cidade Pedra Branca, em 2019, para uma palestra sobre meu livro (Place Branding, Editora Simonsen, 2016). A surpresa foi enorme: o que eu tinha imaginado lá atrás havia se concretizado. As ruas vivas, os estabelecimentos comerciais funcionando e atividades, várias atividades, tantas que perguntei se eram figurantes contratados só para me impressionar, ao melhor estilo Show de Truman. Claro que não. Até porque não teriam motivo para me impressionar – eu já compartilhava da ideia muito antes do que eles imaginavam.

É com essas memórias que escrevo esse breve texto sobre a vida comunitária, em um momento antagônico a tudo que escrevi até agora, ou, pelo menos, aparentemente antagônico. E é sobre esse paradoxo que desenvolverei as próximas linhas. Por alguns longos meses em 2020, no Brasil e no mundo, todos nos recolhemos a nossas casas. A pandemia e a mistura de medo do contágio com o desejo de solidariedade com os mais vulneráveis nos tirou de circulação, literalmente. Os lugares tiveram sua vida ceifada, sem muitos avisos. Se um lugar é feito pelas pessoas (assim como deveria ser feito para as pessoas), como diz a geografia humanista, cidades, bairros, calçadas, praças sem pessoas são lugares mortos. De uma hora para outra, o mundo todo se transformou num enorme “não lugar”, que, no conceito do antropólogo francês Marc Augé, é um lugar transitório, sem significado suficiente para ser um lugar de fato. As cidades transformaram-se exatamente nisso, ou seja, trânsito, passagem e caminho, para o supermercado, para a farmácia, e, nos piores casos, para o hospital.

Se, por um lado, a vida comunitária no espaço coletivo acabou, ao menos momentaneamente, por outro, percebeu-se que as comunidades continuavam ativas, provavelmente mais ativas do que antes. Mas como isso é possível? Temos dois fatores que podem explicar esse fenômeno. O primeiro é bastante óbvio. Comunidades estabelecidas e engajadas antes da pandemia,
continuaram engajadas durante a pandemia. A ausência de um espaço físico para o encontro não foi determinante para sua sobrevivência. Aliás, presenciamos inúmeras vezes a eficiência das comunidades engajadas nesses tempos difíceis, de almoços coletivos em varandas a rodízio de compras para pessoas mais vulneráveis, como idosos e portadores de doenças crônicas.

O segundo ponto, menos óbvio, foi justamente a constatação de que as comunidades independem do espaço físico para existirem. Não chega a ser uma novidade, mas foi um comportamento acelerado pelo isolamento social. Se a cidade é o lugar do encontro por excelência e esse encontro passa a ser virtual, proporcionado pela tecnologia, podemos presumir que a cidade se desmaterializou. Presenciamos comunidades não mais formadas pela quadra ou pela rua, mas pelo mundo todo, via tecnologia. Não foram poucas as interações com Europa, Estados Unidos, Escandinávia. De repente, o mundo se transformou naquela aldeia global que McLuhan previa ainda nos anos 60 do século passado.

Ainda não sabemos como será o comportamento urbano no mundo pós-normal, mas algumas lições foram aprendidas. As comunidades têm um papel fundamental na nossa vida cotidiana e o fortalecimento desses laços é essencial, inclusive para a nossa própria felicidade e, talvez agora, também para a nossa sobrevivência. Outra lição fundamental é a desterritorialização. As cidades e os lugares não são exclusivamente geográficos ou territoriais; são cada vez mais ligados ao comportamento, à identificação. Para isso, eu busco meus pares, onde quer que eles estejam, por meio da tecnologia. Não precisamos mais da praça para isso, ou, pelo menos, dependemos menos dela. Tão importante quanto pensar em equipamentos públicos “físicos”, o momento nos mostra que precisamos pensar numa outra forma de encontro, de espaços púbicos, agora também virtuais. E não, não teremos carros voadores por aí… pelo menos não agora.

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* Arquiteto e urbanista, Caio Esteves possui MBA em Branding pela Universidade Anhembi Morumbi (2006). Fundou a Places for Usem 2015, primeira consultoria especializada em Place Branding do Brasil. É autor do livro “Place Branding”, publicado em 2016, referência no tema no país. É colaborador e jurado do City Nation Place, congresso internacional de Place Branding em Londres; membro do Institute of Place Management de Manchester-UK e do Research Panel do The Place Brand Observer; associado ao International Place Branding Associaton (IPBA) e revisor convidado do Place Branding & Public Diplomacy. É idealizador e coordenador do MBA Place Branding das Faculdades Integradas Rio Branco (SP), e professor de branding e place branding em diversas outras universidades do país. Palestrante nacional e internacional em eventos sobre marcas-lugar e ambientes inovadores, qualidade dos espaços públicos, place branding e placemaking, é também colaborador frequente de sites e portais como The City Fix Brasil, O Futuro das Coisas, Archdaily e Place Brand Observer.

Texto Extraído do Site: Revista Area.(https://revistaarea.com.br/areaapresenta/artigo-a-importancia-da-vida-comunitaria-no-mundo-pos-normal-por-caio-esteves/)
Foto de Capa: Caio Esteves
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Shopping Centers: Um novo papel na vida das pessoas. 

Millennials, geração X, desmaterialização do varejo e do trabalho, lowsumerism, consciência ecológica, novas matrizes de mobilidade: o mundo anda em constante mutação, acelerado, dinâmico e por vezes errático.

Diante dessa perspectiva, as previsões de futuro são, na mesma medida, incertas e necessárias.

Nunca foi tão fundamental olhar para frente, em uma busca desesperada por antecipar o que logo se tornará obsoleto, numa espécie de “auto-hacking” para tornarmos obsoletos a nós mesmos, e, com isso, acharmos soluções antes que seja tarde demais.

Esse movimento acelerado faz com que soluções antes inovadoras se tornem anacrônicas numa velocidade assustadora. O que era disrupção ontem, hoje é mainstream e, o que é mainstream hoje, amanhã fará parte da memória, algo tão anacrônico quanto os tênis quadriculados, walkmans ou aparelhos de fax.

Estamos trocando produtos por experiências, e isso não chega a ser nenhuma novidade, como explica a jornalista Hiroko Tabuchi:

Os analistas dizem que uma mudança mais ampla está em andamento na mente do consumidor americano, estimulada pela popularidade de um conjunto crescente de estudos científicos que parecem mostrar que experiências, não objetos, trazem a maior felicidade. A Internet está cheia de histórias do tipo “Compre experiências e não coisas” que poderiam dar pesadelos aos executivos do varejo. Millennials – aqueles jovens de 20 e 30 que os vendedores desejam – preferem gastar seu dinheiro em férias fora da cidade, em refeições com amigos, em academias de ginástica e, claro, com seus smartphones, segundo sugerem muitas pesquisas.”

É no comportamento, não só de consumo, que basearemos a discussão desse texto, tendo como objeto principal a relação das pessoas com os shopping centers, chamados de “templos do consumo” ( CERVEIRA FILHO,1999 ) e provavelmente o símbolo máximo de um momento de consumo exacerbado, um modelo que agora precisa ser, ele próprio, hackeado, e quando penso em hacking, não consigo deixar de lado o amigo Carlos Piazza, o atormentador-mor do mainstream:

“O cenário de transformações é acelerado, desmassificado e desmaterializado. Não obstante tudo isto, o cenário se mostra também muito acelerado no processo de desintermediação, que no caso do varejo é algo com o qual se deve aprender muito e rápido. Aliado a isto devemos assumir que o processo de aceleração também faz com que produtos e serviços fiquem muito menos importantes do que as experiências de consumidores na visão integral do processo de consumo, antes, durante e depois…

Mas se as coisas tendem a se desmaterializar, o que fazer com os gigantes shopping centers?

Antes de responder isso é preciso entender o cenário no momento da  invenção dos shoppings, aliás, essa própria invenção é controversa. Para muitos, o “shopping center” nasceu em Paris, por volta de 1852, com o “Bom Marché”, mas só a partir dos anos 50 se popularizou nos Estados Unidos, com a inauguração do Country Club Plaza, em Kansas City.

Já para os mais radicais, o shopping não é uma invenção nada nova e tem sua origem nos bazares persas, como o de Isfahan, que data do século X,  no Oxford Covered Market, de 1774, na Inglaterra e no Galleria Vittorio Emanuelle II, de 1828, na Itália.

No Brasil, o primeiro shopping inaugurado foi o Iguatemi, em 1966 em São Paulo.

“A partir da década de 50 do século passado, os centros de compras se formaram em muitos países, proporcionando um notável desenvolvimento econômico, social e cultural. DINAH (2001) relata que, os fatores preponderantes à época que levaram ao surgimento do shopping center foram: o aumento do poder aquisitivo da população; a descentralização da população para zonas periféricas, bem como a grande expansão automobilística norte-americana, a qual fez sentir a necessidade de os centros comerciais disponibilizarem um grande espaço de estacionamento para automóveis.” – MARTINAZZO, Silvana.

O surgimento dos shoppings nos Estados Unidos está diretamente ligado à questão urbana, que por sua vez está interligada à expansão do carro como o principal modal de mobilidade. Ou seja, podemos dizer que, o posicionamento original do shopping center é semelhante ao posicionamento do subúrbio: facilidade, comodidade e segurança de um ambiente controlado e, em última instância, um percurso social “próximo aos meus pares”.

Nesse sentido, tanto o shopping quanto o subúrbio são estandarizantes, diminuindo a relação com o diferente, abafando a pluralidade, que, nesse momento, confunde-se com insegurança.

Toda grande cidade tinha um centro comercial com lojas de departamentos, lojas de especialidades, bancos e cinemas. Contudo, quando as pessoas começaram a se mover para as periferias das cidades, esses centros comerciais, com seus problemas de fluxo de automóveis, estacionamento e crimes, começaram a perder negócios. Os negociantes situados nos centros das cidades começaram a abrir filiais em shopping centers regionais, e o declínio dos centros comerciais continuou.” – KOTLER & ARMSTRONG (1994) apud MARTINAZZO, Silvana.

Shopping centers e a retomada das cidades

Talvez estejamos chegando próximos ao movimento oposto que gerou a popularização do modelo de shopping center. Num cenário onde a vida se concentra cada vez mais nos centros urbanos, e mais do que isso, nas centralidades dos centros urbanos, os problemas causados pelo modelo vigente da “era de ouro” dos shoppings, como trânsito, demora nos deslocamentos e consequente menos tempo para família e lazer, tornaram-se inviáveis.

Hoje, os shoppings representam bolhas espalhadas pelas cidades, característica igualmente preocupante para outros segmentos como os condomínios fechados residenciais e comerciais. O modelo de deslocamento “entre-bolhas” e “inter-bolhas” dá sinais de exaustão. Mover-se do seu condomínio-clube, para seu escritório-shopping, no seu automóvel particular e individual com ambiente e temperatura controlados já não parece ser o sonho de consumo das novas gerações.

Na realidade, as novas gerações aparentemente  não só não querem possuir seus próprios carros, como estão repensando o próprio conceito de consumo de bens materiais.

Como diz James Gamblin, colunista da revista Atlantis, “O que acontece é que as coisas que nós possuímos, especialmente se forem caras, nos obrigam a nos preocupar com elas”. O mercado imobiliário, aos poucos começa a entender esse processo, depois do sucesso do Airbnb; a indústria automobilística sofre com o car-sharing e com os modais alternativos como a bicicleta, que a obriga a pensar em novos modelos de negócio. Mas, e os shoppings? Existe saída?

Muito além do estacionamento grátis

Se pensarmos nos shoppings como amontoados de lojas, com fast-foods e cinemas, provavelmente eles estarão sujeitos ao esquecimento, como uma relíquia de um passado não muito distante.

Uma das características de um shopping, qualquer um, ou pelo menos, a maioria, é que são tratados, como não-lugares.

O termo não-lugar, cunhado por Marc Augé ( 2012) é usado para nos referirmos a lugares transitórios que não possuem significado suficiente para serem definidos como “um lugar”. Os exemplos clássicos são quartos de hotel, aeroportos, rodoviárias, supermercados, etc.

Se o consumo tende a se desmaterializar, se a necessidade de intermediários deixará de existir, e os shoppings ainda são tratados sob o aspecto da materialidade, da transitoriedade ou, pior ainda, da generalidade, é preciso repensar urgentemente o modelo vigente.

O que fazer diante de uma perspectiva de falência de 15% dos shoppings nos Estados Unidos nos próximos 10 anos (Green Street Advisors), ou ainda, com a ociosidade de 35% das lojas dos shoppings no mesmo país, percursor do modelo atual de centros de compras e entretenimento?

O portal NoVarejo aponta 3 tendências para o futuro dos shoppings, sendo elas:

1- Geofencing: um aplicativo rastreia o consumidor colhendo informações para comparar o comportamento e adaptar o mix de lojas para a suas necessidades;

2- Food is the new fashion: as praças de alimentação podem promover uma experiência melhor, se transformadas em “food halls”;

3- Buy online and pick up in store: o consumidor compraria em casa e pegaria seu produto na loja.

Certamente, todas essas hipóteses podem ser caminhos para uma sobrevida do shopping center, mas todas elas ainda o tratam como não-lugar, ou pior, como “bolha”.

Com a busca pela identificação, por parte de marcas e audiências, mais importante do que entender o percurso do consumidor no shopping, seria entender quem é aquele consumidor e as suas características identitárias, aliás, se os shoppings continuarem tratando suas audiências como consumidores, eles já terão um problema por si só.

Os shoppings precisam mudar o papel que desempenham na vida das pessoas. Quando elas visitam esses “ainda não-lugares”, estão procurando experiências que vão muito além das compras. Será que as pessoas que frequentam shoppings devem continuar sendo vistas como “consumidoras”?

Mudar de “praça de alimentação” para “food hall” fará pouca diferença se nesse novo espaço (e não lugar, prestem atenção) o que for oferecido não fizer sentido dentro de um contexto específico, cultural, principalmente. É muito mais uma questão de paradigma do que de forma.

Quanto a pegar os produtos na loja, provavelmente prejudicará os empreendimentos maiores, mais afastados dos centros, pois já imaginou ter que pegar o carro, dirigir uma distância razoável, pagar estacionamento, só para pegar um produto que poderia ter sido entregue em casa?

Todas as soluções imaginadas pelo segmento sofrem do mesmo mal, não enxergam além do segmento!

Siga os sinais ou a brigada de incêndio devidamente identificada

Uma das possibilidades é uma mudança paradigmática em relação ao modelo atual de shopping center. É preciso conectá-lo com a cidade, com as pessoas, com as marcas e não fechá-los em bolhas. É preciso transformá-los em LUGARES!

Torná-los lugares significa carregá-los de significado, significado encontrado nos lugares, ou melhor, nas pessoas que fazem os lugares. Nada adiantará mudar a área de alimentação de nome, se nessa área, a oferta for a mesma de qualquer outro shopping de qualquer outro lugar. Um lugar é resultado de uma (no mínimo) singularidade, uma característica distintiva e indissociável daquela cultura local.

Antes de tudo é preciso compreender as pessoas que usam e formam aquele lugar (o lugar onde o empreendimento está). Entender como elas se relacionam e como querem se relacionar com a cidade, como é possível criar essa conexão, como integrar shopping, pessoas e cidade.

Dessa forma, o empreendimento passa a fazer parte de um ecossistema maior, chamado cidade, com uma relevância e função específicas nesse tecido urbano, ou seja, um equipamento urbano permeável, convidativo, ancorado nas características identitárias regionais e ao mesmo tempo atento ao que acontece ao redor.

No final do século XX foi a vez dos museus se reinventarem, chega a vez do outrora todo-poderoso shopping center.

Bibliografia:
AUGÉ, marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. 9 ed. Campinas, SP: Papirus, 2012
CERVEIRA FILHO, Mario. Shoppings centers. Direitos dos lojistas. São Paulo: Saraiva, 1999.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/shopping-centers-um-novo-papel-na-vida-das-pessoas/)
Foto de Capa: Vincent Callebaut Architectures
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Economia Criativa e Inovação para criar lugares melhores para se viver.

Por muito tempo,  imaginou-se que o turismo seria a única possibilidade de “marcarmos” um lugar, uma ideia que favorecia o hardware dos lugares, ou seja, seus aspectos físicos.

Era preciso que um lugar fosse “belo” para que pudesse ser trabalhado. Em outras palavras, se sua cidade não tivesse a beleza do Rio de Janeiro, de Paris, de Amsterdã ou de Estocolmo, você estaria fadado ao ostracismo ou a ser um destino “underground”. Nesse momento, como tudo girava em torno do turismo, ou os lugares eram destinos (belos) ou não eram destinos.

Foi preciso muito tempo e algumas crises econômicas globais para que esse conceito fosse revisto. Agora entende-se que o turismo é apenas um dos vetores e não o único vetor capaz de qualificar um lugar como uma marca-lugar.

Inovação e criatividade como vetores de crescimento

Aqui, nesse artigo vamos abordar um vetor de desenvolvimento bastante atual, menos glamoroso do que o turismo, mas provavelmente mais eficiente: a inovação.

Sim, essa ideia batida, tão usada e tão pouco explicada. Um termo que parece servir para tudo e ser desejado por quem quer que seja, independentemente do segmento de atuação, como se a inovação fosse a garantia suprema de sucesso.

Então, qual o papel da inovação na cadeia da economia criativa? Como se dá a sua relação íntima com a questão dos lugares? E o que é economia criativa?

No caderno de inovação da FGV/EASP, economia criativa é definida como “O conjunto de negócios baseados no capital intelectual, cultural e na criatividade, gerando valor econômico”. Hoje, segundo a mesma fonte, existem no país cerca de 243 mil empresas formais, empregando quase 1 milhão de pessoas e respondendo a 2,7% do PIB. Isso não é pouca coisa. O termo economia criativa surgiu no Reino Unido, onde John Howkins condensou a discussão a respeito do assunto no bestseller Economia Criativa “Como Ganhar Dinheiro com Ideias Criativas”, de 2001.

A economia criativa abrange todo o ambiente de negócios que existe em torno da indústria criativa, aquela baseada em bens e serviços criativos.” – Fonseca, Ana Carla

No manual de Oslo, inovação é definida como:

“A implementação de um produto (bem ou serviço) novo ou significativamente melhorado, ou um processo, ou um novo método de marketing, ou um novo método organizacional nas práticas de negócios, na organização do local de trabalho ou nas relações externas.”

Possivelmente a explicação mais simples e convincente para o conceito de inovação seja a do UK Innovation Report que diz: “Inovação é a exploração bem-sucedida de novas ideias”

Ou seja, não basta só uma boa ideia, ela precisa ser factível, implementada e gerar resultados positivos, econômicos ou sociais.

Mas o que isso tem a ver com o lugar?

O place branding é um processo que identifica vocações, potencializa identidades e fortalece lugares através do ponto de vista das pessoas. Dessa forma, fica fácil entendermos que um dos resultados tangíveis desse processo é a clareza a respeito dos possíveis vetores de crescimento econômico de um lugar.

Um exemplo usado em 100% das referências a um “lugar inovador” é o bom e velho Vale do Silício. Há que diga quem ele surgiu no começo do século XX, com os laboratórios associados à origem do rádio. Durante os anos 1940/50, o reitor da Universidade de Stanford incentivou professores e graduados a começarem suas próprias empresas, e muitas delas nasceram de fato no campus de Stanford.  Naquele momento, a universidade era a âncora desse lugar que se tornaria o mais famoso polo de inovação do planeta. De fato, o sucesso do Vale está intimamente relacionado com a universidade local – lá foi desenvolvido o Stanford Research Park, com instalações locadas para empresas de alta tecnologia.

Mas, certamente, o fator mais relevante em nada tem a ver com a localização geográfica ou com as características físicas do lugar, e sim com as empresas, ou melhor, com as pessoas que lá frequentam, e com uma vocação muito bem desenhada, que soube evoluir e acompanhar as novas necessidades dos novos tempos, e que pouco têm em comum com a era do rádio, que supostamente iniciou toda essa corrida.

Essa vocação clara, originalmente voltada para a tecnologia de ponta, criou um posicionamento inicial, ainda que orgânico, ou melhor, top-down, já que o reitor de Stanford decidiu quais empresas ele queria lá e pronto.

Mas a pergunta mais importante hoje é: são as marcas que estão no Vale que validam o lugar, ou é o lugar que valida as marcas? Isso tem importância? Talvez não. O fato é que o lugar ficou tão importante, que qualquer pessoa desejaria fazer qualquer coisa lá pra poder sentir-se ou dizer-se inovador, o que, de certa forma, valida o lugar como uma marca-lugar fortíssima, um “lugar de inovação” ou “o lugar de inovação”.

Construir um “lugar de inovação”

A inovação é um conceito sistêmico. Pouco adianta que existam meia-dúzia de empresas inovadoras num lugar sem os serviços necessários ao seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, isso não significa que esse ambiente não possa ser criado.

Uma vez identificada a vocação para a inovação, através de uma pesquisa profunda e de uma análise detalhada sobre o potencial local e regional e de um mapeamento de demandas e necessidades, um polo de inovação pode ser desenhado e criado. Nesse momento, o placemaking é uma ferramenta/processo essencial.

placemaking é um conceito cunhado pela ONG norte-americana Project for Public Spaces (PPS) para definir os processos de desenho colaborativo de espaços públicos que levam em conta os desejos, interesses e necessidades das comunidades locais. Seus alcances foram estudados sob a perspectiva de diversos temas presentes em nossas cidades, como ecologia, psicologia, sustentabilidade, resiliência, entre outros.”

Sabe-se que o ecossistema criativo/inovador está intimamente relacionado com a juventude. Não que um quarentão não possa ser inovador, mas é da natureza do jovem o processo disruptivo, questionador, que, muitas vezes, leva à inovação. Sabe-se também que as novas gerações são cada vez mais pautadas pela difícil relação entre o seu próprio umbigo (aquilo que é bom para mim) e o propósito do que se faz (aquilo que é bom para o mundo). Sendo assim, não basta criarmos amontoados de prédios, desconectados das cidades. O próprio conceito de polo de inovação tende a ser mais ecossistêmico e, portanto, mais interligado com as cidades, mesmo a Apple criando seu novo campus, o Apple Park, totalmente voltado para dentro, o que faz algum sentido, já que a empresa de Cupertino não é exatamente famosa pelo seu traquejo social.

Diferente da Apple, a conexão entre empresas criativas com a cidade deve criar espaços públicos de qualidade, confortáveis, humanos, promotores do encontro. Essa é, inclusive, uma das oportunidades para as marcas que compõe a economia criativa criarem vetores de identificação com suas audiências, não só através de produtos e serviços, mas também da qualificação das experiências cotidianas de suas audiências.

Inovação e conexão

Um bom exemplo de como a inovação pode se relacionar com a cidade e, ao mesmo tempo, requalificar toda uma região é o projeto 22@Barcelona. Esse projeto transforma 200ha de área industrial em um distrito, com uma excelente infraestrutura e mais de 3 milhões de metros quadrados de espaços modernos, tecnológicos e flexíveis, para a concentração estratégica de atividades intelectuais.

O projeto se alinha com a estratégia adotada pela cidade de “Barcelona, Cidade do Conhecimento”. Isso significa que, mesmo com o vetor poderoso do turismo, Barcelona ainda procura outros vetores de crescimento e fortalecimento, como a economia criativa, o que comprova que uma cidade resiliente não se apoia só em um segmento econômico.

Além da relação com a cidade, o 22@Barcelona tem outras características relevantes, como o seu uso misto, alinhado com a tendência mundial de se morar próximo ao trabalho, minimizando o tempo gasto com o percurso casa-trabalho, e sistemas de incentivo que favorecem as atividades que se caracterizam por utilizar o “talento” como principal recurso produtivo.

No bairro, é possível ver prédios “high tech” e ao mesmo tempo crianças brincando de amarelinha pintada no asfalto, em um desenho urbano que privilegia as pessoas e as bicicletas em vez dos carros.

Se tudo isso ainda não bastasse, a região ainda conta com âncoras fortes, como o Museu del Disseny, shopping center, centro cultural e ícones arquitetônicos marcantes como a Torre Agbar de Jean Nouvel.

Conclusão

Como quase tudo que envolve o planejamento urbano e a discussão das cidades, é preciso apropriar-se de uma perspectiva estratégica, sistêmica. Nem só a arquitetura, com seus ícones, nem só inversão de prioridades em relação aos modais de mobilidade, nem só políticas de incentivo, ou nem só o que quer que seja.


A economia criativa e a inovação são vetores de desenvolvimento econômico viáveis para muitos lugares, além de possuírem força suficiente para alavancar a retomada de bairros degradados, como vimos na Espanha e em diversos outros países. Um ponto importante a ser notado é que o pensamento sistêmico também é um elemento que conecta esses lugares às cidades. Parques tecnológicos são, segundo a definição de LOFSTEN & LINDERLOF, 2002:

Um ambiente que reflete a suposição de que a inovação tecnológica tem origem na pesquisa científica e que os parques podem fornecer o ambiente catalisador necessário para a transformação da pesquisa pura em produtos comercializáveis”

Parques, muitas vezes isolados dos centros urbanos, tendem a perder a conexão com a cidade, ligando-se prioritariamente às universidades e às empresas de forma secundária.

Nessa segunda década do século XXI, talvez seja a vez das “cidades criativas” ou “cidades inovadoras”, onde os conceitos centrais e de posicionamento não mais se concentram intramuros, mas ocupam uma região mais abrangente da cidade, que, ainda que delimitada a um bairro ou conjunto de bairros vizinhos, tem características mais permeáveis, mais integradas com o tecido urbano, onde os usos se misturam, onde a cidade pulsa. Afinal, você ainda quer dirigir quilômetros para chegar a uma área isolada, diminuindo sua possibilidade de convívio social, ou você prefere trabalhar dentro de uma cidade onde a vida acontece ao seu redor?

Ao mesmo tempo, o que esse seu lugar tem de especial enquanto lugar? Como ele se posiciona? A inovação é sempre igual? A criatividade é sempre igual?

Queremos ser o Vale do Silício de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza etc., ou queremos entender como nós mesmos somos capazes de produzir inovação?

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/economia-criativa-e-inovacao-para-criar-lugares-melhores-para-se-viver/)
Foto de Capa: Cortesia Modacity
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Inteligência e o futuro das cidades.

Existe pouco consenso a respeito da origem das cidades. Os palpites vão de 10.000 anos a 4.000 A.C, de Jericó, na Palestina, até cidades na revolução neolítica. O que parece unânime é a origem da cidade como centro de comércio e fortificação contra inimigos.

O começo das cidades, para muitos, coincide com a domesticação das plantas e animais, e com isso, uma maior permanência nos lugares.

A cidade, local de estabelecimento aparelhado, diferenciado e ao mesmo tempo privilegiado, sede da autoridade, nasce da aldeia, mas não é apenas uma aldeia que cresceu. Ela se forma como pudemos ver. quando as indústrias e os serviços já não são executados pelas pessoas que cultivam a terra, mas por outras que não têm obrigação, e que são mantidas pelas primeiras com excedente do produto total…

A cidade, centro motor desta revolução, não só é maior que a aldeia, mas se transforma com uma velocidade muito superior. Ela assinala o tempo da nova história civil: as lentas transformações do campo (onde e produzido o excedente) documentam as mudanças mais raras da estrutura econômica; as rápidas transformações da cidade ( onde é distribuído o excedente) mostram, ao contrário, as mudanças muito mais profundas da composição e das atividades da classe dominante, que influem sobre toda a sociedade. Tem início a aventura da “civilização”, que corrige continuamente suas formas provisórias.” (BENEVOLO, Leonardo. 2015)

Mais recentemente a revolução industrial e a Segunda Guerra Mundial foram responsáveis pela intensificação dos processos de urbanização.

Se imaginarmos que o homem dominou o fogo há 500.00 anos  e o sapiens tem uma história de 150.000 anos e uma história cultural de mais ou menos 30.000 anos podemos dizer que a formação das cidades é um fato recente, ainda mais quando levamos em conta a urbanização brasileira, surgida após a década de 40.

Hoje, estima-se que mais da metade da população mundial se concentre em cidades.

As cidades já foram a solução, o problema e hoje, ao que parece, as cidades são a oportunidade. A oportunidade de conexão, de troca, de apoio, de prosperidade, de felicidade.

Mas qual será o próximo passo?

Quando pensávamos na cidade do futuro, 30 anos atrás, pensávamos nos Jetsons, carros voadores, automatização de tudo, afinal, quem não queria a Rosie?

As cidades se modificaram, muita coisa mudou, é fato. Mas, estamos ainda longe do clássico da Hanna Barbera.

Hoje, quando pensamos em futuro, um termo que comumente vem às nossas cabeças é o “smart city”, afinal, parece óbvio que, diante dos avanços das learning machines e A.Is da vida, as cidades também devam ser “inteligentes”. Mas, o que é uma cidade inteligente? ou melhor, o que faz uma cidade inteligente?

O termo “smart city” é usado de forma bastante abrangente, ou seja, sua definição ainda é inconsistente. Para cada 10 vezes que ouvimos o termo, em 9 delas a palavra “smart” pode ser substituída por “technologic”. Essa prática aliás, foi tão exaustivamente usada que, quando pensamos em “smart city” já imaginamos uma empresa de ICT querendo vender alguma solução, o que de fato acontece.

Não à toa o termo foi usado pela primeira vez em 1990, quando o foco era a importância do ICT na infraestrutura das cidades. O Instituto da California para Smart Cities foi o primeiro a focar em como as comunidades poderiam se tornar inteligentes e como as cidades poderiam ser projetadas para implementar tecnologia de informação. (ALBINO,BERARDI e DANGELICO, 2015)

Muitos criticaram o fato do conceito estar muito alinhado ao pensamento tecnológico, uma orientação muito técnica.

A discussão sobre o termo “smart” ao invés de “intelligent” também é digno de nota. Para Nam e Pardo ( 2011) a palavra “smart”, na linguagem do marketing, é mais “user-friendly” e menos elitista que “intelligent”. Outra possibilidade de interpretação, segundo os mesmos autores, é a que supõe que “smart” contém o termo “intelligente” embarcado, uma vez que a “smartness” só é alcançada quando um sistema inteligente se adapta ao usuário.

No campo do planejamento urbano, a inteligência é tratada como uma reivindicação normativa e uma dimensão ideológica, ser mais inteligente implica direções estratégicas. Governos e agentes públicos, em todos os níveis, estão abraçando a noção de inteligência para distinguir suas políticas e programas para objetivar o  desenvolvimento sustentável, o crescimento econômico sólido e uma melhor qualidade de vida para os seus cidadãos”. (CENTER OF GOVERNANCE, apud Albino, Berardi e Dangelico).

Mais importante do que o foco exclusivo na tecnologia é entender o sistema que envolve uma abordagem de cidade inteligente. 

Smart Infrastructure: serviços da cidade como água e energia, com tecnologia inteligente embarcada.
Smart Transportation: Sistema de transporte potencializado com sistemas de controle e monitoramento em tempo real.
Smart Environment: Inovação e ICT para proteção e gestão de recursos naturais.
Smart Services: Tecnologia e ICT para saúde, educação, turismo, segurança
Smart Governance: Governo inteligente acompanhado por participação e engajamento
Smart People: medidas que potencializem a criatividade e inovação aberta
Smart Living: inovação que potencialize qualidade de vida no espaço urbano
Smart Economy: tecnologia e inovação para fortalecer o desenvolvimento de negócios, empregos e crescimento urbano.

Inteligência X felicidade

Não é exatamente novidade o que a tecnologia pode fazer para melhorar a vida dos seres humanos, das bugigangas que usamos no dia-a-dia, da “wearable technology”, que nos fazem sentir mais modernos, jovens e conectados, até sistemas de prevenção de terremotos e demais desastres naturais que podem salvar milhares de vidas. Enquanto o senso comum acha que a tecnologia afastou as pessoas do contato (com base no contato pessoal como parâmetro ) outra vertente de pensamento acredita que a tecnologia aproxima as pessoas.

“A sociedade da informação  deve ser um lugar onde a tecnologia é usada para melhorar a satisfação com a vida e apoiar os nossos objetivos individuais e coletivos, e não para desgastá-los ou prejudicá-los”. Elizabeth Sparrow

Pode parecer, muitas vezes, que o assunto “smart cities” começa e termina na própria tecnologia, diferente do que sugere Sparrow na citação acima.

A pergunta que fica é, do que adianta toda a tecnologia se isso não nos fizer mais felizes?

Mas o que uma cidade precisa fazer para ser feliz?

Primeiro de tudo, deve suprir as necessidades básicas como comida, abrigo, segurança, e depois, Montgomery (2013) elenca uma série de possibilidades:

“A cidade deve maximizar a alegria e minimizar dificuldades
Deve levar-nos para a saúde, em vez de doença
Deve criar resiliência contra choques econômicos ou ambientais
Deve ser justa na forma como distribui espaços, serviços, mobilidade, alegrias, dificuldades e custos.
Acima de tudo, deve nos permitir construir e fortalecer os vínculos entre amigos, famílias e estranhos que dão sentido à vida. Vínculos que representam as maiores realizações e oportunidades da cidade.
A cidade que reconhece e celebra o nosso destino comum, que abre as portas à empatia e cooperação, irá nos ajudar a enfrentar os grandes desafios deste século.”

O termo “serendipty” que significa felizes descobertas ao acaso, tão usado no universo das startups, hubs e coworkings, na verdade está na própria natureza da cidade. O que é uma cidade senão o palco de encontros, ou como disse Shakespeare em Coriolanus:

 “O que é uma cidade senão as pessoas? ”

John Helliwell (appud Montgomery, 2013) mostrou que a rede que conecta confiança e satisfação de vida se estende também ao senso de pertencimento.

O autor compara ao triângulo perfeito:

– As pessoas que dizem que sentem que “pertencem” a sua comunidade são mais felizes do que aqueles que não o fazem.

– As pessoas que confiam em seus vizinhos sentem um maior senso de pertencimento.

– O senso de pertencimento é influenciada pelo contato social.

Na linha de pensamento de Helliwel, podemos dizer que, se a tecnologia pode ser responsável pelo contato social, então, ela pode realmente ser um agente promotor da felicidade.

Mas como usamos a tecnologia nas cidades até agora?

Songdo, Masdar, Fujisawa, são exemplos constantes quando falamos em smart cities, mas o que elas tem em comum? Fácil, tecnologia.

Songdo, na Coréia do Sul, com planejamento baseado na eficiência energética é um exemplo de novas cidades sustentáveis, com vários aparatos tecnológicos que vão de lixeiras com sensor de wifi a sensores colocados na pista que calculam a velocidade dos semáforos com base no tráfego de veículos. Porém, como é comum onde a tecnologia é protagonista, falta  engajamento comunitário.

“Algumas pessoas querem ajustar uma cidade como se faz com um carro de corrida, mas estão deixando os cidadãos fora do processo”, diz Anthony Townsend, diretor do Instituto do Futuro e autor do livro “Cidades inteligentes: grandes dados, hackers cívicos e a busca por uma nova utopia”, em entrevista para a BBC Brasil.

É preciso saber como inserir o conceito de sustentabilidade no cotidiano da população coreana e fazê-las entender a importância de todos estes programas de preservação de recursos naturais e criar na sociedade a responsabilidade ambiental sem depender da tecnologia.” – Anthony Townsend

Songdo também é conhecida como “cidade ubíqua”, uma das classificações das cidades inteligentes, e pretende integrar todo o seu sistema urbano à rede, conectados a um grande centro de controle.

O exemplo japonês

Fujisawa, ou Fujisawa Sustainable Smart Town está localizada a 50KM de Tóquio. Como o próprio sobrenome já indica, é uma cidade inteligente, com o foco no uso eficiente dos recursos naturais. Construída no terreno de uma antiga fábrica da Panasonic, marca que, junto a outras 8 empresas, viabilizaram o projeto de aproximadamente R$1.3 bilhão. A cidade conta com todo o tipo de soluções tecnológicas, desde mostrar ao morador qual eletrodoméstico está consumindo mais energia, a conexão da iluminação pública a central de segurança, que opera de acordo com a quantidade de pessoas que passam na região.

Ainda que conte com um projeto comunitário, Fujisawa parece ter esquecido um pequeno detalhe: o planejamento urbano. Até mesmo o desenho da cidade é orientado pela tecnologia, onde o desenho das ruas prioriza a iluminação natural nas unidades, para com isso, gastar menos energia, num exemplo claro de “Tech- oriented city”, ou, como o próprio nome “comercial” sugere: “ A cidade inteligente da Panasonic”.

Os Emirados Árabes não poderiam ficar de fora

O exemplo árabe da lista é a festejada Masdar City.

Originalmente projetada para ser a primeira cidade “zero-carbono” no deserto dos EAU, com previsão de conclusão para o ano passado, hoje conta somente com 300 moradores, todos estudantes do Instituo de Ciência e Tecnologia.

Concebida há mais de uma década, como um novo exemplo de cidade a ser seguido. Quando a cidade começou, em 2006, o projeto foi promovido como modelo para uma paisagem urbana verde de uso misto: um centro global para a indústria de tecnologias limpas, com 50 mil habitantes e 40 mil trabalhadores.

A Foster + Partners criou uma cidade sem carros, com carros elétricos autônomos, ao estilo Jetsons levando passageiros entre edifícios que incorporam tecnologias inteligentes para resistir ao calor abrasador do deserto e manter os custos de refrigeração baixos.

Tão longe e tão perto

Por mais que os exemplos tecnológicos de Japão, Coréia do Sul e Emirados Árabes sejam sedutores e pareçam saídos de contos de ficção científica, aparentemente o exemplo mais bem sucedido, está muito mais próximo da nossa realidade. Muito longe de sua fama anterior, relacionada à violência e ao tráfico de drogas, a colombiana Medellin, parece ser a bola da vez, não pela tecnologia em si, mas pela forma como ela é usada.

Medellin tornou-se famosa pelo seu design inovador de espaços públicos para combater a desigualdade e promover a paz. Uma estratégia importante adotada pelo governo foi transformar espaços de segregação e crime em espaços para desenvolvimento social e comunitário.

Ao longo da borda rural-urbana, um cinturão verde foi construído para envolver a comunidade na agricultura, para pôr fim à expansão descontrolada das favelas e reduzir o risco de deslizamentos de terra. Os residentes locais foram equipados com habilidades agrícolas e de construção, dando-lhes um senso de propriedade. Em outro projeto conhecido como Unidades de Vida Articulada, os antigos tanques de armazenamento de água foram transformados em espaços comunais que acolhem atividades esportivas, recreativas e culturais determinadas pelos cidadãos.

A cidade também foi pioneira no design de “parques biblioteca”, uma combinação de estruturas de biblioteca e espaços verdes. Estrategicamente localizados em bairros de baixa renda, os 10 parques biblioteca fornecem educação e recursos de ICT para 1000-2000 pessoas por dia e tornaram-se centros culturais para comunidades marginalizadas para se juntarem em atividades educacionais, culturais e recreativas.

O exemplo de Medellin comprova que não basta tecnologia, é preciso mais do que isso, é preciso inteligência para usá-la, uma compreensão sistêmica dos problemas locais e uma visão do que se quer alcançar. Essa visão, objetiva e sistêmica, é capaz de transformações mais efetivas e de maior impacto social, econômico e ambiental.

Antes uma das cidades mais violentas do mundo, a Medellín é agora um centro de tecnologia e inovação em toda a América Latina, reduzindo sua taxa de homicídios em 80% em 10 anos, enquanto criou infra-estrutura de transporte, aumentando a sustentabilidade ambiental e estabelecendo orçamentos participativos para o cidadão. Em 2013, foi nomeado “Cidade Inovadora do Ano” pelo Urban Land Institute – em parceria com o Citi e o departamento de Serviços de Marketing do Wall Street Journal – ganhando o título entre mais de 200 outras cidades, incluindo potências globais como New York City e Tel Aviv.

O outro lado

Enquanto a ideia de smart cities se alastra e aparece como a solução de todos os problemas urbanos, há quem diga que ela poderá acabar com a democracia. É inevitável a lembrança de filmes como Minority Report, onde o aparato do estado ubíquo, sabe o que vai acontecer antes mesmo de acontecer, identificando criminosos antes que os crimes ocorram.

No entanto, há críticas distópicas, sobre o que essa visão inteligente da cidade pode significar para o cidadão comum. A própria frase desencadeou uma batalha retórica entre tecto-utopistas e flaneurs pós-modernos: a cidade deve ser um panóptico otimizado ou um caldeirão de culturas e idéias?

E qual o papel do cidadão? A do vendedor de dados não remunerado, contribuindo voluntariamente com informações para uma base de dados urbana que é monetizada por empresas privadas? O morador da cidade é melhor visualizado como um pixel em movimento, viajando para o trabalho, lojas e casa novamente, em uma colorida tela gráfica 3D? Ou o cidadão é uma fonte imprevisível de exigências obstinadas e asserções de direitos? “Por que as cidades inteligentes oferecem apenas melhorias?”, questiona o arquiteto Rem Koolhaas. “Onde está a possibilidade de transgressão?”

A impressão que se tem é que com o aumento da tecnologia, a onipresença de soluções digitais, a cidade deve se comportar como um robô vasto e eficiente, visão originada, não por acaso, pelas gigantes da tecnologia como IBM, Cisco e AG, objetivando os grandes contratos com a municipalidade.

Conclusão

Embora a tecnologia tenha inúmeras contribuições possíveis para as cidades, ela só fará sentido se promover a qualidade de vida das pessoas. Uma sociedade “Tecnocêntrica”, por definição não trará melhorias sensíveis para uma sociedade onde a orientação deveria ser necessariamente “humanocêntrica”. Como em toda a evolução, é preciso avaliar os diferentes pontos de vista e os diferentes aspectos dos impactos causados, e o quanto eles são de fato relevantes.

A tecnologia parece ser o novo diferencial buscado pelos lugares, de bairros a cidades, numa clara tentativa de colocar a própria tecnologia como singularidade.

Nas discussões de place branding, a ideia de cidades inteligentes, por exemplo, surge como a solução definitiva para a diferenciação, como se o simples fato da cidade adotar um sistema interligado, por si só, fosse capaz de mudar algo ou promover alguma melhoria, ou pelo menos, percepção de valor. Todas as cidades podem ser inteligentes? Definitivamente, e, por isso mesmo, a tecnologia não é uma expressão de singularidade.

Enquanto a inteligência for o fim e não o meio, teremos várias cidades com semáforos inteligentes e wifi em espaços públicos, mas que, na essência, não promoverão nenhuma transformação social, a não ser que saibamos porque estamos implantando os sistemas, e mais do que isso, qual o resultado que essa implantação trará e como se alinha com a nossa vocação e identidade enquanto lugar.

Referências

ALNINO,Vito, BERARDI, Umberto e DANGELICO, Rosa Maria. Smart Cities: Definitions, Dimensions, Performance, and Initiatives. Journal of Urban Technology. Vol.22. 2015
ANTHOPOULOS,L.G. Understanding Smart Cities: A Tool for Smart Government or an Industrial Trick? 2017
BENVOLO, Leonardo. História da Cidade. São Paulo. Perspectiva.2015
MONTGOMERY, Charles. Happy city: transforming our lives through urban design.New York: Farrar, Straus and Giroux, 2013.
NAM,T., PARDO,T.A. Conceptualizing Smart City with Dimensions of Technology, People and Institutions. Proc.12th Annual International COnference on Digital Government Research. 2011

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/inteligencia-e-o-futuro-das-cidades/)

Cidade Antifrágil: liberdade, opcionalidade e identidade

Quando ouvimos e lemos sobre cidades do futuro, constantemente nos deparamos com o termo cidades inteligentes, ou na sua versão mais comercial, smart cities. Muitos imaginam que a inteligência das cidades tem conexão direta com o seu futuro, ou melhor, que o futuro das cidades está ligado à inteligência embarcada nelas, e que essa inteligência está relacionada exclusivamente à tecnologia, o que embaralha ainda mais o conceito, criando para muitos uma ideia de que futuro/ tecnologia/ inteligência são conceitos indissociáveis, desejáveis e necessários, ou ainda pior, que inteligência e tecnologia serão os grandes responsáveis pelo futuro das cidades (ou, para aqueles mais radicais, essencial para que as cidades tenham um futuro).

Já falei, nesse mesmo espaço, sobre a visão compartilhada por muitos, de que a “sensibilidade” como chamou Carlo Ratti do MIT (ainda que com um viés bastante tecnológico) é tão ou mais importante do que a própria inteligência nas cidades. Ainda que “cidade sensível” (senseable city) não seja um excelente nome, ainda é mais abrangente e assertivo do que “cidade humana”, que ainda que antropocêntrico, sempre dá a impressão que apenas os humanos têm vez, criando um problema com todo o tipo de militância ecológica. Uma cidade sensível deveria ser sensível a tudo e a todos, inclusiva e indiscriminadamente.

Hoje, quando pensamos em futuro, um termo que comumente vem às nossas cabeças é o “smart city”, afinal, parece óbvio que, diante dos avanços das learning machines e A.Is da vida, as cidades também devam ser “inteligentes”. Mas, o que é uma cidade inteligente? ou melhor, o que faz uma cidade inteligente? (Esteves, 2017)

Mas, a grande provocação sobre o futuro das cidades veio de onde se menos esperava. Não foi ideia de um urbanista, de um cientista social ou de um designer. Foi um analista de risco, isso mesmo (se bem que é uma definição um tanto reducionista para esse autor) que trouxe uma ideia, que agora, relaciono com o meu universo de pesquisa e atuação: a cidade. Esse analista de risco se chama Nassim Taleb e é dele uma ideia incomum, embora conhecida empiricamente por grande parte das pessoas, a antifragilidade.

Antifragilidade é o oposto de fragilidade e, segundo o autor, é algo que se beneficia com a incerteza, ou seja, algo que “gosta” da incerteza.

Quando você está frágil, depende que as coisas sigam o exato curso planejado, com um mínimo de desvio possível, pois os desvios são mais prejudiciais do que úteis. É por isso que o frágil precisa ser muito preditivo em sua abordagem, e, inversamente, os sistemas preditivos causam fragilidade. Quando você quer desvios, e não se preocupa com a possível dispersão de resultados que o futuro pode trazer, já que a maioria será útil, você é antifrágil. (TALEB, 2015)

Além da resiliência

Uma das partes mais importantes do conceito de Taleb é a comparação do que ele chamaria de Tríade: fragilidade, resiliência, antifragilidade.

fragilidade sofre (e eventualmente morre) com a incerteza, com os erros e desvios, e é comparada com o mito da “espada de Dâmocles”, onde nosso protagonista troca de lugar com Dionísio, monarca de Siracusa, cidade mais rica da Scicília, e pode usufruir por um dia, de tudo que lhe era oferecido. Em meio à felicidade que agora ele facilmente aproveitava, recostou-se nas confortáveis almofadas e olhou pra cima e percebeu uma espada apontada em sua direção, presa por um fio da crina de um cavalo, ou seja, tudo parece lindo, mas tudo pode acabar a qualquer momento.

resiliência, por sua vez, é ligada aquilo que não sofre com a diversidade, e, após enfrentá-la, retorna a sua forma original, ou seja, não se prejudica, mas também não se beneficia com a incerteza. Nessa parte da Tríade, a metáfora usada é o mito egípcio da Fênix, ave que ao morrer era devorada por chamas e delas nascia uma nova Fênix, igual a anterior.

Já a antifragilidade, que por sua vez se beneficia da “desordem” é comparada ao mito grego da Hidra de Lerna, monstro com várias cabeças (de 7 a 10.000 dependendo do autor), enfrentado por Héracles (Hércules na mitologia romana) que ao ter uma de suas cabeças cortada, automaticamente duas novas cabeças nasciam no lugar, ou seja, ela se aproveitava da incerteza, e crescia com ela.

Lembre-se de que o frágil deseja a tranquilidade, o antifrágil cresce com a desordem e o robusto não se importa muito” (Taleb)

Nem é preciso ir tão longe

Um exemplo mais próximo de antifragilidade é a “cultura” startup. No ecossistema inovador, o erro faz parte do processo. Errar, ao contrário do pensamento tradicional, também traz conhecimento e aprimora processos, serviços, produtos e até pessoas.

A ordem é evoluir e não sobreviver.

O “frágil” versus o “robusto” versus o “ágil” versus o “antifrágil”: a natureza busca a antifragilidade.

Em relação à cultura das startups, uma pergunta que ouço há muito tempo se refere sobre a relação entre identidade e volatilidade, afinal, como é possível trabalhar uma identidade de uma empresa (marca nesse caso) se a natureza de uma startup é mudar?  Se um dia ela faz aplicativos sobre mobilidade, no outro isso vira um jogo e na semana que vem uma plataforma colaborativa de empreendedorismo social?

A resposta é a mesma, tanto para empresa quanto para cidades, ou mais especificamente, tanto para marcas corporativas quanto para marcas-lugar: Concentre-se nas pessoas.

São as pessoas os elementos imutáveis (teoricamente) da equação. O elo de ligação entre os sócios de uma startup, por exemplo, apresenta dicas poderosas da identidade daquela empresa, que para efeitos comparativos nesse artigo chamaremos de “encontro de pessoas”. O que mantém essas pessoas juntas, hoje fazendo app, amanhã games e semana que vem plataformas são as características identitárias, muitas vezes traduzidas num propósito claro, tão caro à geração dos millennials. Mas, é importante diferenciar identidade de propósito, embora ambos sejam características interiores, o propósito também é coletivo (a identidade pode ser), compartilhado e concretizado externamente.

No final, sempre teremos que responder a mesma pergunta

Saber quem somos, o que quase nunca é fácil, está no centro da questão desse artigo, traduzida em um termo, uma palavra, ao mesmo tempo comum e complicadíssima: identidade.

Para Calhoun,1994 “Não temos conhecimento de um povo que não tenha nomes, idiomas ou culturas em que alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles, não seja estabelecida…”

Para as ciências sociais, mais especificamente para Castells (1999)

Não é difícil concordar que do ponto de vista sociológico, toda e qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir do quê, por quem, e para quê isso acontece. A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso.”

A coisa complica ainda mais quando colocamos mais um elemento nessa discussão: o lugar. Dessa forma teremos a identidade dos indivíduos, e do território, que podemos concluir, lembrando Tuan, que é a soma das identidades dos indivíduos. Assumiremos que essa soma de identidades é capaz de formar uma “identidade de lugar”, sem necessariamente ser construída por algum ente (político, religioso, corporativo etc) com interesses próprios.

A hipótese da identidade

Na experiência empírica (de que Taleb tanto gosta), a prática tem mostrado que o conhecimento dos elementos identitários, supervalorizados pelos cientistas sociais e subvalorizados pelos planejadores urbanos, podem ser responsáveis pela criação de lugares mais vibrantes, harmônicos, com maior senso de pertencimento, e claro, mais resilientes.

E é aqui que tudo começa. Durante anos venho defendendo a resiliência das cidades como o principal objetivo do place branding. A revisão do termo faz sentido à medida que ele está cada vez mais relacionado com a ideia de sustentabilidade, ou seja, embarcado de carga simbólica do universo discursivo da ecologia e meio ambiente. A perspectiva da Tríade de Taleb traz mais um elemento para a discussão: não deveriam as cidades buscar a antifragilidade?

Identidade dos indivíduos  + 

identidade do lugar  +

opcionalidade =

lugar antifrágil

Essa é uma equação, ainda simples, da hipótese da identitidade, onde levamos em conta não só as identidades, mas outro elemento, também levantado por Taleb: a opcionalidade.

Esse conceito é provavelmente o de mais fácil compreensão. Opcionalidade é a possibilidade de diversidade, ou o famoso “plano B” seguido pelas demais letras do alfabeto, ou nas palavras do próprio Taleb: “Não ficar preso a determinado esquema, de modo que se possa mudar de opinião enquanto se segue adiante, com base em descobertas ou novas informações”. Não a toa que a opcionalidade é comparada a figura do flanêur Benjaminiano, que diferente do turista, com suas reservas, aplicativos, vouchers e todo o tipo de parafernália que o prende ao destino, simplesmente “flana” pela cidade, tomando cada decisão de acordo com sua própria vontade e de acordo com as oportunidades que se descortinam a sua frente.

          Fragilidade é prisão, antifragilidade é liberdade.

Não raramente nos deparamos com lugares – cidades mais precisamente – que tem apenas uma única vocação definida, ou apenas um produto reconhecido, imaginando que nunca, nenhum outro lugar poderá superá-lo.

Já vimos o que acontece com esse tipo de pensamento, exemplos não nos faltam, sendo Detroit nos Estados Unidos, provavelmente o mais retumbante. Voltada para a indústria automobilística, a cidade, começou a presenciar um êxodo sem precedentes na década de 1960, com demissões em massa na indústria. De dois milhões de habitantes em 1960 a cidade tem hoje 700 mil, tentando, de todas as formas, se reerguer.

Assim como Detroit, que jamais imaginou que a indústria automotiva pudesse sofrer algum tipo de crise, vários outros lugares tem a mesma ilusão da certeza, da perpetuidade das coisas.

Mas como prever o que pode acontecer? Essa é a grande questão,  é difícil prever o que acontecerá. O essencial é criarmos mecanismos e um mindset antifrágil capaz de aprender com os erros e até se beneficiar deles.

Nesse momento a singularidade entra em campo. Pegaremos emprestado esse termo da físicaonde define fenômenos tão extremos que as equações não são mais capazes de descrevê-los, ou ainda para definir aquilo que é pouco frequente, ou, por extensão, qualidade que distingue algo dos outros do mesmo gênero, aquilo que não conseguimos prever ou imaginar:

A idéia é que tecnologias de várias áreas evoluem cada vez mais aceleradamente, se integrando e mudando rapidamente a realidade. Em um dado momento – a tal da singularidade –, a curva da evolução ficaria tão vertical que ultrapassaria o limite do próprio gráfico. É impossível saber o que viria depois.” (https://super.abril.com.br/ciencia/singularidade/)

Como podemos ver, o termo singularidade está presente em um futuro discursivo, naquilo que talvez aconteça, um ponto de onde não saberíamos prever o que viria depois (como se em algum momento pudéssemos prever o que quer que fosse)

Como sugiro no gráfico abaixo, podemos propor o seguinte sentido para a construção de um lugar antifrágil, imaginando que a opcionalidade singular pode ter mais ramificações.

Se por anos procurei a resiliência como resultado, agora, a antifragilidade parece uma abordagem a ser seguida. Imagino que uma cidade antifrágil é um lugar com uma identidade (formada ou não pela soma das “pequenas identidades” ). Essa identidade clara e compartilhada, resulta em uma, ou mais, singularidades, que são as formas com que a identidade se manifesta. Quanto mais opcionalidade conseguirmos gerar, de forma alinhada, e portanto autêntica, melhor, ou mais antifrágil o lugar poderá ser.

Conclusão

Esse texto apresenta um primeiro recorte para esse novo conceito, que provisoriamente chamaremos de Cidade Antifrágil. Digo provisoriamente porque o termo ainda não é autoexplicativo e pode parecer facilmente um sinônimo para resiliência.

Nele embarcamos a reflexão de Taleb, junto ao mindset do place branding e cidades para pessoas, ou ainda “lugares orientados pela identidade”, numa tentativa de trazer à tona a discussão sobre o futuro das cidades diante do êxodo crescente em direção aos grandes centros urbanos por parte da população que não tem oportunidades suficientes nos seus lugares de origem, além da constante competição por recursos, talentos, turistas, indústrias, etc, por parte dos governos municipais.

Ainda temos mais perguntas do que respostas, mas a certeza de que é preciso olhar para frente, uma vez que as previsões baseadas no passado já não são mais eficientes (se é que um dia foram), e que o futuro recai sobre nós, pessoas, e ainda, que os modelos de gestão dos lugares, que já são ineficientes, se tornarão obsoletos muito antes do que imaginamos.

Fontes:

TALEB,N.N. Antifrágil. Kindle Edition, 2015
CASTELLS,Manuel. O poder Da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/cidade-antifragil-liberdade-opcionalidade-e-identidade/)
Foto de Capa:
Wilow Park

E agora, Zeitgeist?

Pessoas nas ruas, ocupação dos espaços públicos, retomadas dos centros urbanos, vida comunitária. Há algum tempo venho dizendo, com bastante segurança, que a cidade, o urbano, é o representante do Zeitgeist nesse começo de século.

Pra quem não lembra, o alemão dito cujo também é conhecido como “espírito do tempo”, algo que, num conjunto intelectual, social e cultural, representa um determinado período histórico.

Olho pela minha janela, no centro da maior cidade da América do Sul, e vejo tudo, absolutamente tudo, menos pessoas nas ruas, ocupação dos espaços públicos, retomadas dos centros urbanos, vida comunitária.

Não vejo ninguém, nunca, em nenhum horário. Vez ou outra sou surpreendido pelo barulho do escapamento furado de alguma moto de algum entregador, que também passa cada vez menos, ou talvez tenham sido substituídos por ciclistas, quem sabe.

A praça da República, importante ponto de encontro de office boys, moradores de rua, advogados, arquitetos, trabalhadores de telemarketing, auxiliares administrativos, vez ou outra de turistas, e sempre de todos os tipos de hipsters, hoje, pela nesga da minha janela, parece saída de um filme distópico.

Hoje é domingo, dia de feirinha, de movimento, de turistas, de fila quilométrica no rodízio do Almanara art déco, de gente se entupindo pra ver o cartaz em tamanho natural do Olivier Anquier convidando pra entrar em sua padaria descolada, de fila desde o almoço para conseguir um lugar no jantar na Dona Onça, na Casa do Porco, dia de sambão na praça Dom José Gaspar, de balada-rave-modernete no Paribar. Não, Oliviers, Janaínas, Jefersons, Luíses, todos estão em casa, fechados, assim como eu, provavelmente pensando que diabos acontecerá a seguir e muito longe de ter uma resposta plausível.

Será que a pandemia mudará nossa forma de nos relacionar com o espaço-público?

Essa é uma das tantas perguntas que ocupam o meu tempo entre um livro e outro, uma série e outra, uma reunião e outra, na tentativa de levar uma vida minimamente normal.

Uma coisa é certa, e uma certeza já é grande coisa: o mundo virou um grande Não-Lugar. Não-lugar é um conceito do antropólogo francês Marc Augé. Não lugares não possuem características simbólicas suficientes para serem considerados lugares, mas ao mesmo tempo, representa algum nível de relação funcional a ponto de não se caracterizarem espaços. Vale lembrar a diferença entre espaços e lugares, que como já vimos, não são a mesma coisa. Minha leitura para o texto clássico de Tuan é que os lugares são espaços dotados de significado pelas pessoas, logo, sem pessoas, sem significado; sem significado, sem lugar.

O planeta virou um cenário. Pode-se enxergar, pela TV e internet, lugares que as hordas de turistas antes não deixavam. Deu até pra ver a cor da água de Veneza. Nessa paisagem, linda, nada acontece, nada vive, nada mais significa o que significara outrora.

Nosso mundo se voltou para nossa casa- bunker- refúgio.

A casa se tornou espaço-público e privado, num limite invisível, possibilitado como nunca pela tecnologia. Reuniões foram feitas via plataforma digital, turmas se encontraram para bater papo e beber virtualmente, até orquestras deram concertos, cada um da tranquilidade de sua casa.

A desmaterialização do trabalho não é tema recente, mas ele nunca teve tão em pauta como agora. Será que as empresas manterão seus escritórios gigantes, seus horários fixos, suas centenas de reuniões presenciais? Não dá pra saber. O que se sabe é que o movimento nômade-digital tomou uma outra proporção, não mais por podermos estar em todos os lugares e produzindo, mas por nos proporcionar não estar em lugar nenhum que não seja a nossa casa, ou seja, vivemos um anti-nomadismo, ainda que digital.

O mundo se tornou a nossa casa, e nossa casa, por sua vez, o centro do mundo.

Isso nos deixa diante de uma encruzilhada, será que sentimos tanta falta assim um dos outros a ponto de todos irmos pra rua e nos abraçarmos quando tudo isso acabar, voltarmos a ocupar os cafés na calçada, movimentar o comércio de rua, andar, andar e andar pela cidade?

Minha suspeita é que sim, e que nunca daremos tanto valor a isso quanto num futuro próximo.

Caso contrário voltaríamos ao século XIX, onde a revolução industrial amontoou trabalhadores próximos as fábricas, aumentando drasticamente a densidade de cidades como Londres, sem as condições tecnológicas (sanitárias) para isso, criando a ideia, vigente por mais de um século, de que a “cidade” era o mal, o lugar da doença, e que o paraíso estaria nos subúrbios, na natureza edílica, mais longe possível do caos das cidades.

Esse século veio nos mostrando, até agora pelo menos, que a felicidade está relacionada com a convivência, com a possibilidade dos encontros, do tempo gasto com aquilo que nos importa. Mesmo condomínios afastados começaram a se comportar como centralidades, inevitavelmente, uma vez que mesmo diante da vontade de se viver na “natureza”, a conveniência e a convivência gerada pelos centros urbanos não é algo a se sacrificar.

Começamos a trocar home theaters sofisticados pelos escassos cinemas de rua, condomínios- clube por uma corrida no parque público, o carro individual pelo transporte compartilhado, até o tamanho das nossas casas mudou drasticamente. Diminuiu e diminuiu, ficou menor que a vaga para nosso carro, e nós lidamos bem com isso. Entendemos que a experiência urbana dos grandes centros era infinitamente mais interessante que a nossa mera e tediosa vida privada. Pelo menos até o mês passado.

A comunidade não é mais uma questão territorial.

Não somos mais definidos pela praça que ocupamos. Recentemente, numa aula de pós-graduação, um aluno me perguntou se a web não seria um lugar. Na hora hesitei, e hoje respondo, com segurança. Sim, pode ser um lugar, dependendo do uso que se faz dela.

Se as nossas relações comunitárias sempre foram baseadas em características identitárias/culturais, o próprio conceito de territorialização se desfez. Não é preciso estar num mesmo ambiente para se relacionar com “os seus”, nem na mesma cidade, nem no mesmo país.

As comunidades se tornaram virtuais, bem antes do sucesso de Zooms e Hangouts da vida. Nos relacionamos com aqueles com os quais nos identificamos, independente de onde eles estiverem. Essa rede comunitária invisível ficou evidente nesses últimos dias. Meu palpite é que continuaremos a nos encontrar fisicamente, em lugares de identificação, aqueles onde nos sentimos “em casa”, aliás a própria ideia de sentir-se  “em casa” nunca foi tão relevante, mas isso não negará a tecnologia.

Aliás, e aqui não tem como não citar o Naisbitt e o Piazza, na leitura que quanto mais tech formos mais touch seremos, cada vez mais a nossa própria ideia de comunidade dependerá da tecnologia. Sociedades digitais já estão em andamento, nesse caso com o protagonismo da pequena Estônia, onde hoje, graças a um sistema tecnológico robusto, só existem dois documentos impressos em papel e todo o resto, toda a irritante burocracia cotidiana pode ser resolvida digitalmente, e com isso, sobra mais tempo pro que realmente importa.

A lição da Estônia também é semântica. Percebam que eles se comportam como uma “digital nation” e não “smart nation”. Ao mesmo tempo que a tecnologia embarca inteligência, a inteligência não se limita a tecnologia.

Mais uma vez é fácil concluir que tecnologia e humanidade estão inevitavelmente ligadas, o comportamento de uma impacta na outra, até porque, mais do que inteligentes, todos querem ser felizes, seja correndo nas praças e parques, seja dentro de casa.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/e-agora-zeitgeist/)
Foto de Capa:
Kyu Tae Lee