A Próxima fronteira dos empreendimentos imobiliários

Rua movimentada com pedestres e pessoas sentadas em mesas externas de um café ao pôr do sol.

Quando uma crise econômica é detectada, qual o primeiro segmento que sofre com os seus efeitos? Acertou quem apostou no mercado imobiliário.

Por se tratar de um produto com ciclo longo de fabricação, que vai do projeto à entrega da obra, o cenário econômico instável pode jogar areia nos planos dos menos precavidos e, claro, dos menos inovadores.

É fato que, com ou sem crise, o mercado imobiliário é um oceano de mesmices. Isso é facilmente comprovado, quando abrimos um jornal de circulação nacional – qualquer um deles – e vemos páginas duplas e páginas duplas de anúncios de novos empreendimentos.

Você consegue diferenciar qual anúncio é de uma ou de outra construtora ou incorporadora? Provavelmente, até hoje, você achava que eram todas ofertas de uma mesma empresa – engano seu, não só são de empresas diferentes como concorrentes.

Não precisa ser necessariamente um gênio do marketing pra perceber que essa não é a receita do sucesso, se é que a tal receita existe.

Essa falta de diferenciação não se resume aos layouts sem graça ou à redação publicitária genérica desses anúncios. O mercado imobiliário é avesso à inovação, por mais que diga que não. Essa estagnação segue sempre a “nova moda”, que rapidamente deixa de ser nova e passa a ser, ela também, genérica. Do metro quadrado, passou-se a vender “lifestyle”, sem se preocupar com o que esse conceito queria dizer. Já teve o tempo das “varandas gourmet”, depois, vieram a sustentabilidade e o uso consciente (ou supostamente consciente) de materiais, e depois, a arquitetura assinada. Todos esses “diferenciais” viraram commodities. Mas então, qual será a próxima moda?

A próxima fronteira é retomar o conceito de lifestyle, mas agora fazendo a lição de casa. Pra se falar de lifestyle, é preciso conhecer o aspecto “life” da audiência, é preciso ouvir e entender as pessoas que irão comprar os novos empreendimentos. Mas não é só isso:

É preciso entender o lugar como ativo estratégico para o negócio.

Os empreendimentos se esquecem de que o lugar onde eles estão inseridos é uma informação importantíssima para sua campanha de vendas — mais do que isso, é importante para a própria definição do projeto.

Cada vez mais, nos preocupamos com a ocupação das cidades, com o uso dos espaços públicos. Podemos dizer que a cidade é o grande “zeitgest”, o que seria o espírito do tempo, em português, desse começo de século.

Entender onde o empreendimento está inserido é entender sua vocação e seu alinhamento de identidades: nesse caso, identidade do empreendimento, identidade do lugar e identidade da audiência.

Sobre a identidade da audiência, o profissional de marketing imobiliário não tem muito o que fazer a não ser respeitar e compreender. A identidade do empreendimento, por sua vez, é algo totalmente controlável, que está em suas mãos. A identidade do lugar fica no meio do caminho. Não é possível de ser controlada, mas é passível de ser potencializada, qualificada.

O futuro do mercado imobiliário está na compreensão de que, mais do que bolhas, queremos edifícios que se integrem às cidades, que se relacionem com o lugar, que dialoguem com sua identidade, que entendam e fortaleçam a sua vocação.

A ideia do “paraíso” próximo à natureza no subúrbio já não é mais tão empolgante como no momento pós-revolução industrial, quando as condições sanitárias (e não a densidade demográfica, como muitos podem imaginar) causaram todo o tipo de doenças e epidemias e levaram gerações a crer que a cidade era um “mal”.

O movimento de retomada das cidades cria uma demanda diferente para os empreendedores imobiliários: terrenos mais caros devido à escassez de espaço. É comum vermos, em grandes centros, apartamentos de 18m², algo feito provavelmente pra “fechar a conta” do incorporador, que precisa otimizar ao máximo o seu investimento. É compreensível que pense que uma localização central, com oferta abundante de serviços, o leve a considerar que um apartamento do tamanho de um quarto de hotel seja suficiente. Mas é só uma questão de espaço? Esse empreendimento se relaciona com a cidade e com o entorno? Convida o morador a usar os serviços ou o obriga a usá-los?

Isso nos leva a uma discussão comum no mercado de comunicação: as diferenças entre place branding e place marketing. O próprio fato da discussão se dar na esfera da comunicação já mostra o quanto os conceitos costumam ser confundidos.

De forma rápida, podemos dizer que o place branding olha pra dentro, enquanto o place marketing olha pra fora. Mas o que isso quer dizer exatamente?

Quer dizer que o marketing se preocupa em parecer, e o branding se preocupa em ser. Você pode inserir um empreendimento em qualquer lugar da cidade e vendê-lo como “contemporâneo”, para jovens empreendedores, ou qualquer bobagem do gênero, baseada exclusivamente nas opiniões da equipe de marketing e de pesquisas quanti e quali tradicionais, que muitas vezes ainda perguntam quantos rádios você tem em casa.

Outra opção é entender o que o lugar tem para oferecer ao empreendimento, e não falo de valor financeiro, mas de valor “conceitual”, da identidade do lugar como capital, e mais do que isso, como singularidade.

E quando o lugar não tem nada de especial?

Todo lugar tem sua vocação, sua identidade e singularidade. Cabe a você procurar e potencializar essa característica única, mas, se preferir, você também pode continuar vendendo metro quadrado e varanda gourmet.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: Caio Esteves.

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Se você está pensando em como tornar seu lugar mais preparado para o futuro, com estratégia, identidade e participação real, podemos começar essa conversa. Saiba mais sobre a N/ Lugares Futuros ou entre em contato.

Como uma marca pode melhorar uma cidade

Loja temporária decorada com tema de dinossauro em uma rua comercial de Londres, próxima a marcas como Urban Outfitters e Diesel.

Nesse novo século as audiências (e não mais meros consumidores) buscam alguma forma de identificação com as marcas com as quais irão se relacionar.

As marcas, por sua vez, entenderam que mais do que produtos e serviços, as pessoas procuram experiências, formas de se identificar, relacionar e, no extremo dessa relação, validar suas próprias personalidades.

Esse relacionamento já acontece em vários pontos de venda, nas chamadas “Flagship Stores“ou ainda “Concept Stores“, onde, em um ambiente 100% controlado, as marcas promovem o seu “universo” por meio de experiências sensoriais que envolvem quem nelas entra.

Vivemos em um mundo majoritariamente urbano, o Homo Sapiens já pode se considerar Homo Sapiens Urbanus (ONU). Com uma população mundial crescendo exponencialmente, é possível entender que as cidades, em particular os grandes centros urbanos, com toda sua rede de apoio e oportunidades, serão o destino de um número cada vez maior de indivíduos.

Isso torna a cidade, e as questões que a envolvem, um assunto ao mesmo tempo contemporâneo e relevante, não só para políticos ou planejadores urbanos, mas para todos que se relacionam com ela e, claro, para as marcas, que precisam entender como se relacionar com as suas audiências nesse novo contexto.

Com o passar do tempo nos acostumamos a perceber a publicidade como algo negativo, muitas vezes relacionada como uma forma persuasiva de comprarmos aquilo que não precisamos ou até não queremos. O nosso próprio cérebro criou algumas barreiras evolutivas para lidar com o excesso de estímulos visuais a que somos expostos diariamente.

Podemos afirmar que adianta muito pouco uma profusão de logotipos se quisermos ser percebidos, ou seja, tudo se volta para a experiência e isso as marcas já entenderam. Nesse sentido a própria proibição dos anúncios de cigarros contribuiu para a “evolução” da publicidade em direção a experiência.

“Essas instalações ou ‘Hotéis Marlboro, como são conhecidos no ramo, geralmente consistem em um salves cheios de confortáveis sofás forrados de vermelho Marlboro posicionados em frente a televisores que ficam passando cenas do Velho Oeste com seus rústicos caubóis, cavalos galopantes, amplos espaços abertos e imagens de opoentes avermelhados projetados para evocar a essência do icônico ‘Homem Marlboro” (LINDSTROM, 2009, p. 75)

Mas se já é assim há algum tempo, qual a novidade?

O fato é que as marcas sabem lidar pouco com o ambiente urbano, usando a cidade e os espaços públicos como palco para eventos e não de forma sistêmica e nem mesmo estratégica.

A vocação da publicidade na urbe é muito mais gerar experiências positivas para as pessoas do que de fato vender produtos, na verdade vender produtos é uma consequência em qualquer um dos casos.

Naomi Klein ( 2002), no controverso ´Sem Logo´ já dizia, “marcas, não produtos” também amparada por Phil Knight, CEO da Nike que proferia “Não há mais valor em produzir coisas. O valor é agregado pela pesquisa cuidadosa, pela inovação e pelo marketing”. Se as marcas precisam criar experiências nada mais inteligente e pertinente do que a associação de marcas a qualificação dos espaços públicos.

Verbas de publicidade conseguidas através de elementos publicitários bem colocados podem promover um lugar e ancorar mudanças na qualidade urbana.

Mas não adianta encher a cidade de totens publicitários, pontos de ônibus envelopados e relógios (sim, relógios) patrocinados. Não podemos trocar uma qualidade por outra, ou ainda, entender que a poluição visual é menos pior do que a ausência de espaços públicos qualificados. É preciso encontrar um equilíbrio.

Público ou privado?

Como encontrar esse equilíbrio sem transformar as cidades brasileiras em Tóquio ou Times Square?

Entendendo o contexto cultural e, mais do que isso, criando experiências pertinentes entre as pessoas (sim, as marcas também são feitas por pessoas) e, claro, doses superlativas de bom senso.

Nesse momento de incapacidade do poder público no que se refere ao cuidado dos espaços públicos, pode caber as marcas (as espertas pelo menos) ocupar essa lacuna ao invés  de gastar os seus milhões de reais em publicidade abrangente e genérica, modelo comprovadamente obsoleto. Vejamos como nós, seres humanos lidamos hoje com a publicidade tradicional:

“Ao chegar aos 66 anos de idade, a maioria de nós já terá visto aproximadamente dois milhões de anúncios de televisão. Contando de outra forma, isso equivale a assistir oito horas de comerciais, sete dias por semana, durante seis anos seguidos. Em 1965, um consumidor típico lembrava 34% dos apúncios. Em 1990, esse percentual havia caído para 85.” LINDSTROM, 2009, pag.41

Antes que alguém me acuse de privatização do espaço público, adianto que a ideia passa longe disso. Não se trata de marcas ocupando de forma privada a cidade e sim de marcas qualificando o espaço público, promovendo experiências capazes de criar conexões entre pessoas e marcas e ainda benefícios para todos os cidadãos.

Nesse sentido, um exemplo bem resolvido, são os parklets. Esse equipamento que troca uma vaga de estacionamento de carros por um espaço de convivência para pessoas, tem em muitos dos seus projetos o patrocínio de uma marca. Alguns casos bem sucedidos e outros nem tanto, o fato é que o precedente já existe, embora ainda circunscrito a um tipo específico de uso.

Atrás da identidade num mar de pessoas

O place branding – abordagem que trata os lugares como marcas, identificando sua vocação, potencializando sua identidade e fortalecendo os lugares – atua como forma de entender o contexto cultural (mais precisamente das pessoas que moram/ frequentam/ passam no lugar) e de uma maneira assertiva e transformadora, conectar a identidade dos lugares a identidade das marcas, nesse caso específico da publicidade como âncora de transformação.

Além disso, não basta conectarmos identidades para entregarmos logotipos blindados pelo darwinismo – esse alinhamento de identidades é capaz de gerar inputs relevantes para a criação de conteúdos capazes de criar a identificação entre pessoas e marcas. Mas, muito além de entregar um conteúdo alinhado e personalizado, os equipamentos publicitários tem a possibilidade de alavancar lugares e tornar uma cidade mais vibrante.

Após todos os avanços dos últimos regramentos como a Lei Cidade Limpa é preciso entender não só a demanda por esses equipamentos, mas, principalmente, a sua necessidade.

O que imaginamos é que, mais do que comunicar simples mensagens publicitárias, essa “nova publicidade ”  pode ser construída a partir de uma abordagem colaborativa, afinal não adianta só entender quem usa, passa ou mora no lugar, mas também o que eles gostariam de ver, experimentar naquele lugar.

É impossível ser feliz sozinho

É preciso não só colaboratividade, é preciso interação, interação entre pessoas e tecnologia. Muito se fala das smart cities, mas para elas fazerem sentido é preciso existir smart citizens, algo só alcançado com pilares como colaboração e interação, que por sua vez só acontecem quando existe relevância e identificação.

O futuro das marcas nas cidades é mais o de promover experiências positivas nos espaços públicos, criando cidades mais vibrantes e habitantes mais felizes do que comunicar simplesmente seus produtos e serviços.

Só falta elas saberem disso.

Referências Bibliográficas

KLEIN , Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2002.
LIND STROM , Martin. A lógica do consumo: Verdades e mentiras sobre or que compramos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: Caio Esteves.

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Se a sua cidade não tem uma singularidade, ela é uma cidade sem alma

Homem barbudo de terno sentado atrás de letras grandes que formam a palavra PLUS, em ambiente interno com pessoas ao fundo.

“Se você não sabe qual a identidade ou a singularidade da sua cidade, ela vai ser mais uma daquelas cidades sem alma, genéricas.” Essa afirmação é do arquiteto Caio Esteves, fundador Do Place For Us, primeira empresa brasileira totalmente dedicada à criação de marcas-lugar (Place Branding), e coordenador da pós-graduação em Branding Experience na Istituto Europeo di Design São Paulo (IED SP), uma rede internacional de alta formação em design, moda, comunicação visual e gestão de disciplinas criativas.

Caio acabou de participar em Londres do City Nation Place Awards, como um dos jurados para premiar as melhores práticas de place branding e marketing no mundo.

Nessa entrevista ao O Futuro das Coisas, ele conta o que viu lá e explica como o Place Branding é uma ferramenta que fortalece uma cidade, cria receita, e melhor, gera felicidade para as pessoas.

Qual a diferença entre PlaceMaking e Place Branding?

Em termos simples o Place branding pensa e o PlaceMaking faz.

Eu gosto de uma definição que uso no meu livro que é pensar no PlaceMaking como uma forma de brand experience, ou seja, na tangibilização da marca-lugar em espaços públicos vivos, alinhados com um conceito central e pensados de forma coordenada para comunicar diferentes aspectos de uma mesma mensagem, uma mesma identidade, localizada pelo place branding.

Place branding é a ideia guarda-chuva que alinha a identidade e singularidade do lugar, PlaceMaking cria lugares alinhados com esse conceito.

Existe um sem o outro? Claro! É a melhor forma? De jeito nenhum!

Podemos dizer que o Place Branding é uma ferramenta que ajuda a modelar as cidades do futuro?

Na verdade ele deveria ajudar a modelar as cidades do presente, e isso já acontece, só que não por aqui…

O Place Branding, é um conceito que, por ser bottom-up, gera um conjunto de informações riquíssimo para a realização de planos diretores, por exemplo.

Dessa forma, os projetos não se baseiam exclusivamente em uma expertise, como a arquitetura ou urbanismo, ou em pesquisas tradicionais encomendadas, mas numa visão multidisciplinar, colaborativa, inerente ao processo de construção de uma marca-lugar, e mais importante talvez, seja a própria co-criação dos envolvidos e interessados diretamente no assunto, as pessoas que vivem e usam o lugar.

Quais as vantagens para uma cidade ou um bairro que cria uma identidade própria, cria a sua singularidade e como seus habitantes são beneficiados?

O resultado mais óbvio e de quantificação mais simples é o vetor financeiro. Se o meu lugar é especial (e todos os lugares são) eu passo a ter um ativo estratégico que antes não era identificado como tal.

Se essa minha singularidade é interessante para outras pessoas (mais uma vez, toda a singularidade é interessante) eu agora posso me comunicar de forma que as outras pessoas que se identificam com essa minha característica se sintam convidadas a se relacionar com o meu lugar.

O benefício mais intangível é a própria felicidade, que agora saiu do campo da “turma de humanas” e ficou menos “miçanga” com recentes estudos de neurociência que conseguem criar métricas de medição da tal felicidade…

Já sabemos que a felicidade está diretamente ligada ao convívio, a qualidade das conexões humanas, ou seja, uma cidade vibrante tende a ser promotora de felicidade. Nesse ponto, singularidade é a âncora, que faz um lugar se tornar vibrante.

Quais são os desafios para que as cidades brasileiras possam utilizar o Place Branding? Qualquer cidade pode utilizar?

O desafio é enorme, começando pela dificuldade de se entender o que é place branding, que ainda é confundido com marketing, publicidade, design e por aí vai…

Depois de entendida a diferença é preciso entender que uma marca-lugar não é uma marca de governo, portanto não pode viver só por 4 ou 8 anos, é algo que pertence as pessoas daquela cidade e até as pessoas que visitam aquela cidade, não é algo que é propriedade de um político ou partido.

O capital do lugar para a política está justamente no protagonismo, na inovação, no poder-público como facilitador e promotor e não como proprietário.

Qualquer cidade pode e deve utilizar o place branding, quem não quer ser único, ou ainda, quem não precisa ser único? As cidades também sofrem concorrência o tempo todo, por investimentos, por talentos, por turistas, etc…

Como envolver as comunidades no processo de criação do Place Branding?

Todos queremos uma vida melhor, todos queremos ser mais felizes. O segredo está na colaboração, colaboração de fato, não algo “pro-forma”.

Muitas vezes se confunde informar com colaborar. Informar é só comunicar o que está se fazendo, colaborar é ter a certeza que o que você está dizendo será levado em consideração, que você faz parte da mudança, e portanto faz também parte da solução.

Isso se dá através da participação das pessoas que vivem e utilizam o lugar no processo de construção dessa marca-lugar. Se a identidade é a base do processo, os espaços públicos resultantes serão mais qualificados e assertivos, potencializando os desejos, anseios e características das pessoas que o utilizam.

As cidades turísticas no Brasil tem uma característica que ilustra bem a necessidade de envolvimento. Muitas vezes os turistas são vistos como alguém indesejado, que aproveitam o que a cidade tem de melhor, justamente esse melhor que não é apreciado pelos moradores.

Esse pensamento cria uma cidade segregada, nós moradores, contra eles turistas. Claro, que essa sensação impacta na experiência do turista, que claro, tem uma impressão negativa. O acúmulo de impressões negativas cria cidades turísticas vazias, e cidades turísticas vazias são cidades pobres, e cidades pobres têm menos recursos para promover a qualidade de vida dos seus moradores, que claro, são menos felizes.

É preciso explicar para os moradores o papel estratégico do turismo.Isso não acontece através de campanhas publicitárias, ou por decreto, só acontece por colaboração, por vontade própria. Sem um grande pacto entre todos os interessados é muito difícil uma marca-lugar ser bem sucedida.

Quais os seus principais insights desde que fundou a Place for Us?

Talvez o mais relevante seja a diferença entre o branding “tradicional” de produtos de consumo e o place branding. Levou tempo pra entender isso…

No branding é possível ser mais solto… tem a máxima de que o cliente tem sempre razão (óbvio que não concordo, até porque se ele tivesse sempre razão ele não precisaria nunca de agência alguma). No place branding o cliente nunca tem razão, aliás, quem é o cliente? o poder público? a cidade? as pessoas?

Se o cliente é quem paga a conta, talvez seja realmente o poder-público, mas gosto de pensar nos beneficiários diretos, que não é o poder-público que aumenta suas reservas, e sim as pessoas do lugar, e é pra elas que trabalhamos, e isso muda tudo.

Foram 3 anos até entender um pouco melhor essa dinâmica e decidirmos separar a parte de place branding em uma outra consultoria, que se tornaria a primeira brasileira no segmento e ainda uma das primeiras com certificação de impacto social BCORP| PENDING.

Como pensar PlaceMaking ou Place Branding sem acabar gentrificando?

Essa questão é corriqueira. É comum imaginar que a qualificação dos lugares empurre moradores para fora. Muitas vezes é isso mesmo que acontece com a especulação imobiliária por exemplo, ou ainda com a maldita hipesterização.

O que é preciso entender são 3 pontos centrais:

1- Não se fala de place branding isolado, é preciso envolver um sistema, uma visão de cidade holística, uma vez que o próprio place branding é uma abordagem tanto sistêmica quanto abrangente, que preveja esse tipo de movimento e crie mecanismos pra contê-lo na melhor forma possível.

2- Tudo parte da identidade. Claro que a identidade não é hermética e se transforma ao longo do tempo, mas grande parte dela está diretamente ligada a autenticidade. Essa autenticidade por sua vez, está ligada com as pessoas que habitam aquele lugar. Logo se elas não estiverem mais lá, essa autenticidade desaparece, e fica tudo parecendo cenário do Projac. Portanto a própria matriz do place branding já é um mecanismo contra a gentrificação como conhecemos.

3- É preciso se desassociar da ideia que relaciona qualidade urbana a riqueza, ou ainda, que marca é coisa de rico. Esse pensamento, bastante ultrapassado no meu ponto de vista impede muitas vezes o desenvolvimento de projetos de impacto social considerável com medo da tal gentrificação. Place Branding é identidade, se a qualidade nasce dessa identidade e o lugar prospera, é preciso entender que o morador também pode prosperar, e nesse momento acontece uma qualificação sem gentrificação.

Quais as principais novidades do City Nation Place Awards, conferência que você participou em Londres?

Esse ano eu tive o privilégio de fazer parte do juri e fiquei particularmente feliz com a vitória de Edmonton como melhor expressão de identidade de uma marca-lugar. Isso prova o que venho falando desde o começo, que qualquer cidade pode ser uma marca, que a singularidade está sempre presente.

Mas os assuntos-chave que destaco são:

1- Compreensão da necessidade do envolvimento popular como premissa para uma marca-lugar legítima e bem sucedida.

2- É preciso garantir que os lugares, especialmente as cidades, terão capacidade de atender as demandas de turistas de marcas-lugar muito bem sucedidas, algo que já tira o sono de Amsterdã e Nova Iorque.

3- Realmente ainda existe muita confusão sobre o que é place branding.

4- Grandes marcas-lugar são fruto de um trabalho exaustivo de intersetorialidade e interdisciplinaridade.

5- Por mais que ainda se tente, o discurso de valores genéricos ainda não se sustenta. Place branding é sobre singularidade e identidade, algo avesso aos discursos vazios e genéricos.

6- Ainda existe um campo enorme para o avanço das métricas de sucesso de uma marca- lugar. As métricas atuais são inúmeras e ao mesmo tempo limitadas a dados muito específicos.

7- Talvez a melhor parte seja a que encontrei um outro maluco que acha que a identidade está presente e não deve ser “criada” e sim “encontrada”. Foi bom saber que não estava falando sozinho esse tempo todo.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: Caio Esteves.

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Como falar de futuros numa sociedade que não consegue se relacionar com o passado?

Ilustração de uma cidade parcialmente submersa, com ruas cobertas por água entre prédios e casas, sugerindo alagamento urbano em cenário distópico ou fictício.

Maio de 2024 foi marcado por uma demonstração inequívoca das mudanças climáticas, quando vimos, atônitos e impotentes, o Rio Grande do Sul ser engolido pelas águas. Pessoas perderam tudo, seus bens, suas casas, suas vidas. Ainda abalados pelo momento trágico do Sul do país, corremos o risco de achar que se trata de um evento isolado, imprevisível, ou ainda, como li recentemente, que o futuro tinha chegado ao Rio Grande do Sul, ledo engano.

Não foi a primeira, e, infelizmente, não será a última vez que no deparamos com eventos climáticos extremos. Muitos especialistas ouvidos pelos mais diferentes órgãos de imprensa são categóricos ao enfatizar que esse tipo de evento (não necessariamente chuvas e inundações) será ainda mais constante, no que vem sendo chamado de “novo normal do clima” ou “novo normal climático”. Me incomoda o fato de não só acharmos “normal”, mas principalmente o fato de acharmos “novo”. Nutro uma profunda desconfiança pelo termo “novo”.

Com poucas exceções ele serve como maquiagem para ideias e práticas comuns ou ultrapassadas, que precisam passar por um “reposicionamento”. Não precisamos nem voltar a 1941, no que seria até esse ano a maior enchente de Porto Alegre, basta voltarmos a 2023, onde eventos climáticos extremos causaram a morte de 75 pessoas, também no Rio Grande do Sul. Ou seja, nada disso é novo (nem mesmo a recorrência) ou normal, ou ainda local. O mundo muda constantemente, por óbvio, o clima por sua vez acompanha essas mudanças no chamado antropoceno, era geológica caracterizada pelo impacto da humanidade na natureza, ou, de acordo com o criador do termo, Paul Crutzen:

“Considerando esses e vários outros crescentes impactos das atividades humanas na terra e na atmosfera, que acontecem em todas as escalas possíveis – inclusive global –, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central da humanidade na geologia e na ecologia propondo o uso do termo Antropoceno para a época geológica atual.”

A data de início do antropoceno não é consenso entre pesquisadores, que divergem da origem – período que deixamos a vida nômade e começamos a nos fixar nos primeiros vilarejos –, até outros que acreditam que tudo começou com a revolução industrial, ou seja, essas mudanças não são de hoje.

Mas se nada disso é novo, por que sofremos os impactos destruidores desses eventos até hoje? Não existe uma única resposta para isso, porém existem várias pistas em diversas esferas diferentes, que passam pela incapacidade da gestão pública de pensar de forma estratégica no longo prazo, pela nossa visão de cidade, pela ideia que defende que sustentabilidade e progresso são conceitos antagônicos, chegando ao extremo do negacionismo climático que não só nega as mudanças climáticas como constantemente inventa alguma teoria da conspiração absurda pra justificar o evento, que embora hilárias de tão ridículas, causam um enorme desserviço aos desavisados.

Mas e o futuro nisso tudo?

A Lilia Porto, aqui do O Futuro das Coisas, no prefácio do meu livro mais recente, usou um termo que fez muito sentido, e explica muito do momento atual extremo, “presentismo”, ou nossa amarra nos eventos de hoje, do presente. Lembrei da Lilia em absolutamente todas as diversas entrevistas que dei durante esse mês sombrio, justamente por ter lançado um livro sobre o futuro dos lugares semanas antes de começar esse pesadelo. Na quase totalidade das entrevistas a preocupação era com a reconstrução, o que fazer, como reorganizar a infraestrutura, ou seja, quase sempre o ponto de partida era o hardware. Claro que diante de tragédias essa é uma preocupação absolutamente legítima, mas será que devemos nos preocupar “só” com isso?” Minha resposta era, e continua sendo, não.

Fui obrigado a criar uma ordem de atuação para minimamente contribuir para o debate em que o ponto de partida era o ontem, porque não viram, porque não fizeram, porque deixaram e assim por diante. O ponto de partida, embora incrivelmente óbvio, parecia esquecido, era preciso dar toda a assistência às pessoas antes de qualquer outro movimento. Abrigo, comida, atendimento médico, psicológico, roupas, produtos de higiene, ou seja, condições mínimas de dignidade.

Mas isso não é tão simples quanto pode parecer, ainda que o Estado conte com toda a ajuda que vem recebendo do país inteiro, e aqui fica o apelo, se você ainda não ajudou, faça isso o quanto antes, da forma que puder, o item abrigo merece particular atenção. Quadras de esportes e escolas não foram feitos para abrigar pessoas (guarde essa informação) e é preciso entender que levará bastante tempo para reconstruir as cidades afetadas. Uma comparação feita constantemente é com o furacão Katrina que devastou Nova Orleans em 2005. Também em termos comparativos, Nova Orleans demorou 10 anos para se reerguer. Isso significa que, provavelmente, outros eventos climáticos extremos ocorrerão antes da reconstrução total das cidades, portanto é preciso pensar em formas de abrigar as pessoas durante o processo de reconstrução, em projetos que, por si só, sejam resistentes a novas investidas do clima extremo.

A próxima etapa que elenquei, é um conjunto de duas frentes que ocorrem de forma paralela, uma olhando para o hoje e outra para o amanhã, ou melhor, os amanhãs. Olhar para o presente, após as condições mínimas de vida, é olhar para a reconstrução propriamente dita.

Reconstruir como?

Alguém disse certa vez que repetir a mesma ação esperando diferentes resultados seria a definição de loucura. É importante entendermos o que mudou nas últimas décadas e aplicar o conhecimento adquirido na reconstrução das cidades; por mais que o tempo não esteja a nosso favor, é essencial pensarmos sobre os novos modelos de cidade, a nova visão de cidade que se quer. Antes que alguém me ataque de academicismos frente ao desastre, já adianto que essa discussão também já está em curso e, portanto, também não é uma solução vinda do futuro.

Adaptabilidade e dinamismo são prerrogativas da cidade antifrágil, virtudes que se aplicam não só ao pensarmos no clima, mas nas diferentes dimensões que impactam a cidade.

As cidades esponja, são exemplos dessa adaptabilidade. Esse modelo de cidade, criado por Kongjian Yu, tomou conta dos noticiários por motivos óbvios, a ideia central da cidade esponja é justamente a absorção do excesso de água a partir de várias ferramentas e sistemas. Mas uma característica marcante na ideia de cidades esponja é justamente a adaptabilidade. Quadras-piscina-parques alagáveis são alguns dos bons exemplos de adaptabilidade no que se refere a esse modelo de cidade. As quadras/ praças piscina, por exemplo, são utilizadas para esporte e lazer e ao início/ previsão de chuvas, transformam-se em grandes reservatórios, que uma vez escoados, voltam a se comportar como praças e quadras. Os parques alagáveis também são uma ideia adaptável, com passarelas podem ser utilizados durante os períodos de alagamento e posteriormente utilizados em toda a sua extensão, também no nível do solo.

Será que a chuva excessiva ou a seca persistente são os únicos desafios climáticos que nos aguardam?

Aqui, chegamos finalmente na exploração dos futuros. Me parece inevitável olhar para a pluralidade dos futuros frente a necessidade da reconstrução das cidades. Sim, ao partirmos da adaptabilidade, diminuiremos os riscos de novas tragédias, mas a pergunta talvez seja, adaptabilidade a que? Quem responder, “a chuvas”, se restringiu a um acontecimento do passado, que pode sim se repetir, mas será que só sofreremos de enchentes? Mesmo no Rio Grande do Sul, o desafio será lidar com o excesso de água? Sempre?

Quem não se lembra do evento extremo em Dubai, que registrou em abril de 2024, em 24 horas o equivalente a um ano de chuvas, deixando a cidade alagada, na maior intensidade de chuvas desde o começo das medições 75 anos atrás. Alguém consegue imaginar Dubai embaixo d’água? Nem sempre o histórico de previsões se sustenta, ou seja, nem sempre, ou quase nunca, soluções do passado dão conta de resolver problemas que venham do futuro, mesmo esse não sendo o caso do Rio Grande do Sul. Ao pensarmos em reconstrução é preciso pensar além do que está dado e isso aponta para o que considero a terceira etapa desse processo de reconstrução.

Primeiro, a qualidade mínima de vida. Em segundo, uma abordagem de presente, reconstruindo as cidades, de forma adaptável e dinâmica, ainda que de forma provisória, e paralelamente, a exploração dos diferentes futuros, não só referentes aos desafios climáticos, mas também econômicos, sociais, ambientais em amplo espectro. Essa exploração pode contribuir de forma significativa para a reconstrução definitiva (entendendo que no mundo contemporâneo ser definitivo deixou de ser uma qualidade) das cidades afetadas e ainda uma forma de antecipar os desafios das diferentes cidades de um país continental como o nosso.

Soluções extremas para tempos extremos

O exemplo mais extremo de adaptação climática é, certamente, o pequeno país-arquipélago de Tuvalu, no Pacífico-Sul, que corre o risco de desaparecer com o aumento do nível dos oceanos. Por mais que se fale no hardware, na reconstrução das casas, dos edifícios, um dos principais problemas do abrigamento e da realocação é a perda da memória. Shakespeare diria “O que é a cidade senão as pessoas?” e emendo com “O que são as pessoas sem suas memórias?” Os lares, os lugares têm um grande efeito na construção do imaginário e da memória, tanto individual como coletiva. O projeto “Futuro Agora” de Tuvalu propõe a migração da nação para a nuvem, ao criar uma versão digital de si mesmo, transferindo uma existência física para uma virtual.

Numa eventual diáspora completa, esse seria o lugar em que os tuvaluanos poderiam “retornar” ao seu país, ou, até mesmo, para os nascidos no “exílio”, possam aprender sobre ele. Tuvalu quer ‘migrar’ para o metaverso para sobreviver ao clima (apublica.org)

Além da manutenção do reconhecimento da soberania de Tuvalu como país e da influência na conscientização das outras nações sobre as mudanças climáticas, o projeto pretende preservar a cultura do povo, mantida no ambiente virtual.

O projeto de Tuvalu aponta para um aspecto importante de qualquer reconstrução ou realocação, aspecto que vai muito além de cimento ou tijolos, de segurança física. Mudar as pessoas de lugar, reconstruindo ou não, envolve uma dimensão emocional, algo que Simone Weil chamou de enraizamento e que detalhei em artigo para O Futuro das Coisas, e que complementa esse artigo no que se refere as características culturais envolvidas no movimento de grandes populações.

“O enraizamento, ou melhor, o reenraizamento, ouso dizer, se dá a partir da cultura. Após a lente da necessidade física é preciso usar a lente da cultura, da identidade.” Esteves, Caio

Se o reenraizamento se dá a partir da cultura e identidade, é essencial que a comunidade atingida seja ouvida no processo de reconstrução e realocação. Todos presenciamos a importância da vitalidade comunitária, nas imagens e relatos de centenas de salvamentos e resgates nas últimas semanas. Essa comunidade, ainda que sofrida, impactada profundamente pela tragédia recente, é a principal interessada na reconstrução e por isso mesmo, a única fonte viável de informação sobre a cultura local, seus arranjos, suas atividades e necessidades.

O futuro se construirá a partir do presente e ignorar as características culturais e identitárias da comunidade seria ignorar o seu próprio direito a um futuro digno e legítimo. Futuros são coletivos, cocriados e vão muito além de tijolos, cimento ou concreto. Reconstruir cidades não é só reconstruir prédios, é reconstruir a própria comunidade, mais forte, mais igualitária, mais preparada para enfrentar os desafios que lhes aguardam.

* Esse artigo é dedicado a toda a população do Rio Grande do Sul, em especial para minhas amigas Betina Sulzbach e Fê Bock que trouxeram para a tragédia uma dimensão pessoal de algo que, para muitos pode (incrivelmente) parecer distante.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa Gerada por IA.

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Se o enraizamento é uma necessidade da alma, o desenraizamento é uma doença social

Mulher com lenço colorido na cabeça carrega feixe de galhos amarrados, olhando diretamente para a câmera.

A amplitude do O Futuro das coisas sempre me surpreendeu. Não raro, algum leitor me contacta nas redes sociais e comenta sobre um artigo recente ou compartilha e me marca ou ainda me encontra em algum evento e comenta sobre meus textos nesse espaço. Mas o que mais me surpreende mesmo é quando amigos de longa data me chamam para falar sobre determinado artigo assim que é publicado. De verdade, não entendo como pessoas que me conhecem há tanto tempo, ainda, tem tempo para ler as bobagens desse colunista, extremamente nichadas, que interessam a um número reduzidíssimo de leitores, mas que esse time editorial insiste em manter em seus quadros.

Um desses casos aconteceu precisamente no último artigo que falava sobre indicações geográficas e desterritorialização. Nutro um minúsculo número de amigos, pelos quais não tenho só um enorme carinho, mas principalmente admiração. São tão poucos que nem preciso citá-los. Claro que admiro um monte de gente, mas infeliz ou felizmente não os conheço pessoalmente, até porque, a cada dia fica mais difícil separar autor e obra e muitas vezes é melhor não conhecer seus ídolos de perto.

Foi justamente uma dessas amigas que me chamou para uma conversa após o artigo citado, conversa essa que de tão instigante, resultou nesse presente texto. O trabalho dela que envolve mulheres refugiadas e o senso de pertencimento diante da situação limite do refúgio foi nosso ponto de partida, nada mais desterritorializado do que isso.

Numa rápida pesquisa no site da ACNUR, agência da ONU para refugiados, conseguimos entender o quão crítica é a situação e, ao mesmo tempo, imaginar a possibilidade de agravamento ao levarmos em conta as mudanças climáticas em curso. Pouco menos de noventa milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas, e dessas, mais de vinte e sete milhões são refugiados, onde metade deles tem menos de 18 anos.

Talvez, ao pensarmos em refugiados, lembremos automaticamente da Síria, que de fato representa 27% (6,8 milhões de pessoas) da origem dos refugiados. Surpreendente, a segunda colocada nesse ranking é nossa vizinha Venezuela com 18% dos refugiados (4,6 milhões de pessoas). No Brasil, no início de 2023 abrigávamos mais de 65.000 pessoas reconhecidas como refugiados, em sua maior parte venezuelanos (dados entre 2011 e 2021), seguidos por sírios e congoleses.

Ao longo da nossa conversa buscávamos entender como se dá a territorialidade durante processos de refúgio e abrigamento. Sempre é preciso lembrar que um lugar é feito de pessoas e, portanto, pelo grupo que habita determinado território. Se o lugar é feito pelas pessoas, qual seria então o problema do refúgio ou do abrigamento?

Deixando as óbvias dificuldades materiais, temos uma série de impactos a  observar. Nesse ponto, não deixava de pensar numa autora que me foi apresentada após uma palestra que dei em Belo Horizonte, por uma pesquisadora que tinha se debruçado sobre o tema para sua tese de doutorado, e me fez uma resenha quase tão boa quanto o próprio livro. Tratava-se de Simone Weil, escritora e filósofa francesa da primeira metade do século XX e seu trabalho derradeiro chamado “O Enraizamento”. Como sempre, pego emprestado aquilo que me faz sentido e, com isso, deixo de lado as características mais esotéricas e religiosas que envolvem o pensamento weiliano. Entre o que me faz sentido, encontro o que considero o cerne do seu livro, algo que ela chama de “Necessidades da Alma”, que completariam as necessidades físicas, porém com maior dificuldade de reconhecimento uma vez que não tinham relação direta com o corpo.

“O primeiro estudo a fazer a ser feito é o das exigências que são para a vida da alma aquilo que são as exigências do alimento, do sono e do calor para a vida do corpo. Deve-se tentar enumerá-las e defini-las. Não se pode confundi-las com os desejos, os caprichos, as fantasias, os vícios. Deve-se também distinguir o essencial do acidental. O homem carece não de arroz ou de batatas, mas de alimento; não de lenha ou de carvão, mas de calor. O mesmo com as exigências da alma: deve-se reconhecer as satisfações diferentes, mas equivalentes, que respondem às mesmas exigências.” (WEIL, p. 17)

As necessidades da alma, para Weill são: ordem, liberdade, obediência, responsabilidade, igualdade, hierarquia, honra, castigo, liberdade de opinião, segurança, risco, propriedade privada, propriedade coletiva e verdade, além do enraizamento.

“O enraizamento é talvez a exigência mais importante e ignorada da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos presságios do porvir. Participação natural, isto é, suscitada automaticamente por lugar, nascimento, profissão e ambiente. Todo ser humano precisa ter múltiplas raízes.” (WEIL, p. 65)

Por motivos óbvios, o interesse para esse artigo recai sobre os conceitos de enraizamento e desenraizamento, que podemos, de várias formas, compará-los às ideias de territorialização e desterritorialização e ainda apontar para uma terceira hipótese como a reenraizamento, assim como falamos de reterritorialização. Se o enraizamento é uma necessidade da alma, o desenraizamento, por sua vez, é uma doença social. Entre os três tipos de dezenraizamento, o chamado “desenraizamento geográfico e nação”, é o mais relevante para esse artigo.

Hoje, todos os franceses sabem o que perderam desde quando a França naufragou. Sabem disso como sabem o que falta quando não se come. Sabem que uma parte da sua alma está tão colada à França que, quando a França lhes é tirada, permanece colada, como a pele a um objeto tórrido, e assim é arrancada. Há, portanto algo a que está colada uma parte da alma de cada francês, a mesma para todos, única, real embora impalpável, e real à maneira das coisas que se podem tocar. Desse modo, o que ameaça a França de destruição – e em certas circunstâncias uma invasão é uma ameaça de destruição – equivale à ameaça de uma mutilação física de todos os franceses, e dos seus filhos e dos seus netos, e dos seus descendentes a perder de vista. Pois há populações que nunca convalesceram de uma conquista sofrida.” (WEIL, 2001, p. 182).

Se os refugiados são, por definição, pessoas desterritorializadas, será seu destino também o dezenraizamento? Acredito que não. Da mesma forma que Weil separa as necessidades do corpo das necessidades da alma, é preciso esse tipo de atenção aos movimentos migratórios involuntários.

É absolutamente compreensível que organizações humanitárias usem a “lente” das necessidades do corpo como abordagem objetiva, afinal, é preciso garantir que as pessoas estejam vivas e, portanto, alimentadas e saudáveis antes de qualquer outra coisa. A questão desse processo também levantada pela filósofa francesa é que a falta dos elementos que compõem as necessidades da alma, podem influenciar diretamente na saúde física das pessoas, e levá-las ao que chamou de “malheur”, palavra sem correspondente em português mas que comumente é traduzida como infelicidade mas sem a capacidade de absorver toda a carga filosófica embarcada no termo weiliano.

O enraizamento, ou melhor, o reenraizamento, ouso dizer, se dá a partir da cultura. Após a lente da necessidade física é preciso usar a lente da cultura, da identidade. Gosto da ideia da cultura como um patrimônio social. O Antropólogo inglês Edward Tylor definiu cultura como “um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e todas as produções dos homens em sociedade”. Quanto a identidade, numa abordagem mais contemporânea, temos Stuart Hall e seu sujeito pós-moderno, sem identidade fixa ou permanente, que se molda ao seu tempo:

“…. sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas…” (HALL, 2006)

Embora Hall nos dê algumas dicas sobre como o homem contemporâneo tem uma maior capacidade (e necessidade) de adaptação, ainda precisamos entender como fazê-lo quando esse processo é involuntário. No que se refere aos refugiados, minha hipótese é que os campos de refugiados funcionem como o Metaxo platônico, também utilizado por Weil, mas com a grafia metaxuMetaxo ou metaxia é algo com função de meio, intermediário ou conectivo. Proponho essa reflexão menos na forma transcendental usada por Weil, mas como intermédio entre dezenraizamento e reenraizamento, ou se preferirem, nos termos deleuze-guattarianos, mais comuns nos meus artigos, desterritorialização e reterritorialização.

Para que os abrigamentos possam servir de metaxo, a lente da cultura e da identidade precisa estar presente e ter a mesma importância da abordagem fisiológica. Para que isso aconteça é preciso parar de pensar unicamente na macroescala, absolutamente compreensível frente ao tamanho do problema e entender, mais uma vez, que a microescala, nesse caso não a escala do indivíduo, mas a escala da cultura, em forma de grupo, é tão importante quanto.

Os grupos recém-chegados podem exercer sua cultura e identidade no novo agrupamento, teoricamente provisório? Existem as condições necessárias para tal? Não adianta adotarmos os radicalismos e abraçarmos ideias como “já tem abrigo e comida, querem mais o que?”. Bastaria o conceito básico de humanidade para contrapor esse argumento, mas como vimos ao longo desse artigo, talvez, o completo desenraizamento mate as pessoas da mesma forma que a fome ou a doença, só que com requintes de crueldade, dada a sua lenta e invisível velocidade.

Se a comida e o abrigo são o hardware, a cultura e a possibilidade de exercê-la são mais do que o software, são o próprio peopleware, lembrando que hardware são elementos físicos e imóveis de um lugar, o software é o conjunto de atividades que ocorrem no lugar e o peopleware a cultura e identidade do lugar, baseado em quem o habita, ainda que transitoriamente. É preciso entender o caráter provisório e emergencial dos abrigamentos, mas é preciso entender também o caráter permanente da cultura, ainda que essa perenidade reflita apenas as dimensões mais profundas dos seres humanos, e como isso é capaz de impactar-nos e como sem isso podemos estar saudáveis fisiologicamente, mas completamente desprovidos daquilo que ao fim e ao cabo, nos torna humanos.

Referências Bibliográficas

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006.
Weill, Simone. O Enraizamento. Belo Horizonte. Âyné, 2022

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: ACNUR/Georgina Goodwin.

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Marcas-lugar e Indicação Geográfica num Mundo Desterritorializado

Pessoa solitária em uma trilha sobre penhasco com vista para o mar e ilhas ao fundo, sob um céu nublado e atmosférico.

Toda vez que alguém pergunta o que faço, típica pergunta que só acontece em São Paulo, eu fico numa enorme saia justa. Se falar minha atuação, onze em cada dez pessoas farão cara de interrogação; se tentar sair pela tangente, acabo colaborando com a confusão que há anos trabalho para esclarecer. Na falta de uma tradução satisfatória, usamos no Brasil o termo Place Branding, que se não bastasse o anglicismo um tanto irritante, já vem carregado por si só de uma série de confusões históricas. O termo place, passada a barreira da língua, torna-se o menor dos males, a coisa encrenca mesmo quando chega no branding, aí vira a festa do caqui, publicidade, design, marketing, logotipo, desenhinho, corzinha, letrinha, e pronto, temos a tempestade perfeita.

Da mesma forma que branding não é, e nem nunca foi, publicidade ou design ou mesmo marketing, place branding trilha o mesmo caminho comum. A cada determinado espaço de tempo somos atingidos por um termo, um neologismo, uma reinvenção, que se tornam queridinhas de público e crítica. Vimos isso acontecer com enorme impacto no design: nail designcake designdesign de sobrancelha. O design foi tão aceito na sua importância que hoje tudo é design. Ainda que muita coisa de fato seja design, essa massificação do termo talvez, penso eu, tenha trazido mais problemas do que benefícios para os profissionais da área. 

Antes de tudo é preciso entender que branding (que vem do ato contínuo de construir marcas e já explicita, no próprio nome, que uma marca é um “ser” vivo, em constante adaptação, evolução) é uma ideia, um ativo intangível associado (originalmente) a determinada empresa/ marca/ produto ou serviço. Isso já foi extensamente discutido no mercado, na academia e até na mídia e hoje é relativamente fácil, ainda que não saibamos exatamente o nome ou a expertise, entender o que uma marca representa.

Todos nós estamos cercados por marcas. Você está lendo esse texto num computador, ou num dispositivo qualquer, produto de uma marca. Talvez você o ame, talvez você o odeie, mas dificilmente, hoje em dia, você terá uma relação de indiferença. Pode ser aquele último modelo de notebook que você deu um gás danado pra conseguir comprar ou aquele laptop velho do seu trabalho que te empurraram porque você chegou por último na empresa em tempos de trabalho híbrido e sobrou para você, o fato é que a marca desse computador tem impacto (sofre e promove) sobre essa sua sensação.

Se hoje essa relação entre pessoas e marcas é de fácil percepção, quando falamos dos lugares isso fica ainda mais claro, mesmo que você até agora nunca tenha parado para pensar, que um lugar pode ser (e quase sempre é, quer queiramos ou não) uma marca. Ao pensar em algum lugar do mundo com o qual você se identifica – ou acredita que se identificaria –, automaticamente saberá dizer o que aquele lugar representa, pelo menos para você. Aqui, faço uma pergunta que vai diferenciar automaticamente o place branding de todo o resto. Esse lugar com o qual você se identifica, você sabe qual o logotipo dele? Aliás, você sabe se ele sequer tem um logotipo? Sabe qual o slogan? Quais as ações promocionais? Não, claro, afinal nada disso tem importância quando falamos de lugares.

Esse sentimento que temos em relação a determinado lugar é o que chamamos de marca-lugar (place brand) e no fundo, o place branding trabalha continuamente para fortalecer ou desenvolver esse sentimento, partindo da identidade, ou seja, da própria comunidade. Todas as ações de promoção, venda, divulgação e até construção são subsequentes, afinal se a marca-lugar é resultado e resultante da identidade do lugar, nada mais óbvio do que o alinhamento de todas as ações em torno dessa marca-lugar.

Por isso me causa estranheza quando vejo, continuamente, ações de promoção de marca-lugar serem divulgadas como a própria marca-lugar. Recentemente, a discussão tem se concentrado na relação entre I.G (indicação geográfica) e marcas-lugar. Antes de aprofundarmos na relação entre os termos, precisamos entender o que é uma I.G. Segundo o governo brasileiro:

O registro de Indicação Geográfica (IG) é conferido a produtos ou serviços que são característicos do seu local de origem, o que lhes atribui reputação, valor intrínseco e identidade própria, além de os distinguir em relação aos seus similares disponíveis no mercado. São produtos que apresentam uma qualidade única em função de recursos naturais como solo, vegetação, clima e saber fazer (know-how ou savoir-faire). O que é Indicação Geográfica? Como obter o registro? — Ministério da Agricultura e Pecuária (www.gov.br)

A definição é muito clara, inclusive no próprio nome, ao limitar a indicação geográfica ao território específico, seja através dos recursos naturais disponíveis, seja através do saber fazer local. Aqui, precisaremos aprofundar a discussão e fazer algumas bifurcações conceituais. Comecemos pela mais óbvia: se uma marca-lugar é o sentimento que mantemos por determinado lugar, a indicação geográfica, através de seus produtos e serviços pode contribuir significativamente para esse sentimento desejado por estrategistas e gestores dos lugares. Exemplos disso são abundantes. Lugares idílicos como a Toscana envolvem, em seu “pacote de ativos”, uma produção vinícola reconhecida mundialmente. As pessoas continuariam amando a Toscana, suas belas paisagens e cultura abundante sem os reconhecidos vinhos Brunellos e Chiantis Clássicos? Provavelmente. Tudo isso ajudou a fortalecer os sentimentos em relação a esse lugar? Sem a menor sombra de dúvida.

Dito isso, podemos concluir que as indicações geográficas estão inseridas no universo do que podemos chamar de ativação de marca-lugar, sendo uma estratégia importantíssima para a divulgação, promoção e fortalecimento das cidades e regiões, mas não se trata, em momento algum, da marca-lugar em si.

Uma marca-lugar, deveria ser muito mais abrangente e plural do que uma determinada produção (material ou imaterial) por mais relevante que essa produção possa ser. Continuando no mesmo exemplo podemos facilmente comprovar que muito além dos vinhos D.O.C (Denominazione di Origine Controllata) toscanos, a região conta com outros produtos e outros ativos incrivelmente relevantes, como por exemplo, todo o patrimônio cultural e artístico do Renascimento presente em sua capital Florença.

Se a indicação geográfica fosse a marca-lugar toscana, Leonardo DaVinci, Dante e Donatello, entre tantos outros, estariam de fora desse sentimento, e, portanto, dessa marca-lugar. Parece absurdo? E ainda tem as paisagens, a arquitetura, a gastronomia… A Toscana, e provavelmente toda a Itália, é um exemplo bastante grandiloquente, mas poderia ser o Brasil. Imaginou se fossemos só o “Café do Brasil”? Onde estariam nossa arte, cultura, comportamento, música, dança, arquitetura, criatividade, inovação? O café, assim como tantos outros produtos tangíveis e intangíveis nos posicionam mundo afora, mas eles não são o Brasil propriamente dito.

Agora que ficou claro a importância das indicações geográficas da mesma forma que esclarecemos que marca-lugar e I.G, embora umbilicalmente conectados, são coisas diferentes, cada um com sua importância, podemos ir adiante para um face mais complexa do assunto. Indicações geográficas, se referem, por definição, ao território, como vimos na citação do governo federal. O território é, por sua vez, um tema central na discussão do place branding, especialmente no mundo pós pandemia.

Muito se discutiu, e escrevi extensivamente aqui mesmo no O Futuro das Coisas, sobre a função do território nas marcas-lugar, ou melhor, o que seria o território após a pandemia. Sempre fui crítico ao termo marca-território, ao entender que uma marca-lugar, pode e deve ir muito além do seu território. O conceito delleuzi-guattariano de desterritorialização foi acelerado, atualizado diante da crise sanitária. Era preciso, definitivamente, pensar em formas de levar a experiência de uma marca-lugar para além do seu território, uma vez que ninguém, durante um período incerto, poderia visitá-lo, independente do motivo ou objetivo.

Países e cidades mais maduros, do ponto de vista do place branding, correram para desenvolver ações que levassem seus ativos para um mundo agora preso dentro de quatro paredes, foi o caso de Helsinki e das Ilhas Faroé, entre outros.  A desterritorialização é um processo de essencial compreensão para as cidades e países contemporâneos, ou seja, imaginar formas de levar uma experiência autêntica para além de seu território em uma postura mais ativa do que a passividade tradicional de apenas publicitar o lugar à espera de visitantes ou compradores de determinado produto, serviço ou destino.

E aí, voltamos às indicações geográficas. Como elas funcionam num mundo desterritorializado? Se a primeira impressão pode ser a de que seria algo fora do seu tempo, já que o território em si aparentemente perdeu um pouco da sua importância (claro que menos para o turismo e mais para a atração e retenção de talentos por exemplo) me parece que o caminho pode ser justamente o oposto.

I.Gs fortes e conectadas com a marca-lugar podem amplificar a identidade dos lugares e levá-los para muito além de suas fronteiras. A palavra-chave aqui é justamente a conexão, entre território e marca-lugar, não como sinônimos, mas como complementos. Se na desterritorialização precisamos, de todas as formas, fortalecer nossa identidade de lugar, ainda que distante de nossa origem, uma boa estratégia de I.Gs, autênticas e relevantes, podem contribuir de forma significativa para o sucesso dos lugares. O contrário é igualmente verdadeiro, marcas-lugar fortes alavancam indicações geográficas ao ponto de encontrarmos um “dilema Tostines”.

Será que as I.Gs são fortes porque vêm de marcas-lugar fortes, ou as marcas-lugar são fortes porque tem I.Gs (ainda que não formatadas estrategicamente) fortes? A resposta, é uma outra pergunta: Isso interessa?

Se as estratégias de promoção e fortalecimento de uma marca-lugar devem ser alinhadas e uníssonas quanto ao conceito, não faz muita diferença para um lugar a forma como sua percepção é criada, se pela cidade, país ou estado, ou se por algum ativo tangível ou intangível que nos impactou direta ou indiretamente. Essa soma de dimensões capazes de criar sensações poderosas nas pessoas é o que chamamos de marca-lugar. Essa impressão criada a partir de várias dimensões, quando atrelada aos países, costuma ser chamada de Soft Power, forma de influência na percepção de terceiros através de características culturais e de identidade (entre outras) que se opõe ao Hard Power simbolizado pelo poderio militar e pela economia/PIB, mas nesse caso específico, já é assunto para outro artigo.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: Visit Faroe Islands

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Uma Vida com Sentido nos Lugares que Habitamos

Ilustração colorida com elementos surreais: um grande peixe sendo pescado por uma pessoa em um submarino amarelo, uma casa amarela com varanda onde pessoas caminham, e uma mulher gigante sentada tomando um drink com limão.

Venho sistematicamente escrevendo nesse espaço sobre a questão urbana e inevitavelmente sobre o futuro das cidades. Hoje, a pedidos, farei algo um pouco diferente. Refletirei sobre como poderiam ser as cidades no futuro.

Com meus dotes limitadíssimos de futurista, especialidade da qual tenho enorme simpatia e o prazer de uma interlocução com experts, deixarei os carros voadores autônomos, cyber humanos e metaverso para eles e me prenderei às questões urbanas e, por que não, mundanas (se bem que do famigerado metaverso eu serei obrigado a falar).

Muito provavelmente a cidade do futuro já começou a ser desenhada ao enfrentarmos a pandemia da covid-19, pelo menos como ela seria diante de um momento de ruptura como vivemos a partir de 2020.

Não é preciso grande pesquisa para, rapidamente, pensarmos em modelos de cidades que um dia foram “do futuro”. Vale lembrar que um modelo de cidade, é, na verdade, um modelo de sociedade, ou pelo menos deveria refletir seus anseios e necessidades.

 O futuro já foi o verde das “cidades-jardim” de Howard no final do século XIX; o progresso da “cidade moderna” da Carta de Atenas, de Le Corbusier e Cia; e, agora, parece ser o tal metaverso, muito bem descrito por Stephenson no romance cyber-punk Snow Crash de 1992 e ainda um tanto superficialmente explicado por Mr.Mark na empresa agora chamada, vejam só, Meta.

Se você, leitor e leitora, já se deparou com algum dos meus textos, sabe o quanto me preocupa a ideia de um mundo das máquinas, como uma mistura de Matrix com o robô Sophia e sua ironia assustadora, envoltos numa ideia aterrorizante onde a tecnologia sobrepuja a humanidade ao invés de trabalhar com ela. Na verdade acho que esse meu imaginário se formou quando vi Tron ( por favor, a primeira versão), depois Jogos de Guerra e muito mais recentemente se consolidou quando a inteligência artificial Alpha Go deu uma surra em um campeão humano no jogo que até então era dominado pelo “touch” e não pelo “tech”. O ano era 2016, tudo bem, foi ontem, mas lembre-se, o jogo chinês “Go” é, ou era, considerado um dos mais complexos do mundo. O xadrez já estava dominado por nossos pares biônicos desde 1997.

Por isso, é inevitável que, ao pensar na cidade do futuro, eu imagine, automaticamente, um lugar distópico, cyber-punk ao melhor estilo “Ghost in the Shell”, embora ultimamente esse lugar do futuro imagético esteja mais para “O Livro de Eli”. Enquanto o primeiro se passa numa Tóquio do futuro, repleta de humanos com implantes biônicos, o segundo se passa num cenário onde a escassez de água e comida determinam as relações de poder.

Evidentemente não sou contra a tecnologia, muito pelo contrário, ela está tão à minha volta quanto à sua volta, quando não, dentro de nós mesmos. Ainda assim, a enxergo como meio, como veículo de algo que é essencial hoje, que nos foi lembrado a duras penas pelos lockdowns da vida, na mesma medida que será no futuro, a vida em comunidade.

Desde os tempos imemoriais procuramos o sentido da vida, na religião, na ciência, nas artes. Atualmente, procuramos uma vida com sentido nos lugares que habitamos, mais precisamente nas cidades. A inserção na vida comunitária ativa parece ser um dos caminhos para essa significância. Termos identificação com o grupo onde estamos inseridos é o primeiro passo para nos identificarmos com o lugar onde vivemos. Lembremos da geografia humanista mais uma vez.

É importante qualificar essa vida em comunidade. Não me refiro à vida coletiva das reuniões de condomínio ou da escola dos filhos, ainda que obviamente elas façam parte, muitas vezes por obrigação, de nossa rotina, mas sim, da vida coletiva estritamente opcional, a padaria que se frequenta, a loja da esquina, o restaurante do almoço cotidiano, a relação que se estabelece entre funcionários, donos e clientes, uma comunidade muitas vezes informal, formada por pessoas que, nem sempre, moram no mesmo lugar, mas que certamente frequentam o mesmo lugar.

A fila do pão na padaria hipster, enquanto observo as figuras saídas da novela Dancing Days, a escolha do vinho orgânico na loja ainda mais hipster que a padaria, que fica do outro lado da rua, a balada modernete, o restaurante indiano-vegano-descolex, são alguns dos exemplos reais do meu bairro. Esse velho que vos escreve se enquadra nesse cenário? Provavelmente não, embora minha barba, já meio (ou quase) branca, me autorize a pertencer. O fato é que me identifico com essa diversidade, essa vibração, mesmo que muitas vezes me sinta num esquete do Porta dos Fundos zombando os paulistanos.

Esta micro dinâmica local me parece o futuro das cidades, não por estar na moda com a cidade parisisense de 15 minutos, mas justamente por ser mais antiga do que qualquer outra forma de organização urbana que conhecemos.

A cidade do futuro é a cidade do passado na sua versão 2.0

Segundo o Jan Gehl, um dos autores que moldaram a minha visão de mundo urbano, nós esquecemos como fazer cidades para pessoas. Estamos presos numa espécie do dia da marmota numa visão retro-futurista de progresso ligado inicialmente a uma visão tecnológica de um mundo autocêntrico e às maravilhas da velocidade, e, mais recentemente, a uma visão digital de metaverso. Enquanto a primeira visão nos desterritorializava, a segunda nos desmaterializa.

No meu livro Cidade Antifrágil abordo, entre outras coisas, da necessidade da vitalidade comunitária relacionada ao comércio local, que podemos chamar de micro centralidade e sobre a importância da micro escala, que chamei de escala humana. Muito já foi escrito sobre a importância da escala humana na arquitetura, especialmente nos textos críticos ao urbanismo modernista, que para os brasileiros responde pelo nome de Brasília. Falou-se muito da escala na forma, na tipologia, no desenho urbano. Chamo a atenção especial para a escala humana nas relações pessoais e de poder.

Na esfera das relações pessoais a coisa fica extremamente simples de ser exemplificada: dos milhares de “amigos” que você ostenta nas redes sociais, quantos deles você realmente conhece? Com quantos você interage de forma consistente além de mandar parabéns quando a plataforma lembra a data? Ou, nas esferas de poder, quem você acha que sabe mais sobre as suas necessidades, o governo municipal (através de uma subprefeitura por exemplo) ou o governo federal?

O ponto aqui é a proximidade com o problema e a solução, a quantidade de intermediários e níveis hierárquicos, e a dimensão do universo de preocupação. Proximidade com o outro é também um caminho para uma melhor gestão urbana.

Escrevi em algum artigo, no passado recente, sobre uma ideia que tive logo após o lançamento do Cidade Antifrágil, ainda no meio da loucura dos dias sombrios da pandemia. Enquanto o prefixo pandêmico era o “DES”, o pós-pandêmico seria o “CO”. Se a pandemia causou desterritorialização, desmaterialização, desconhecimento e desespero, o próximo passo na nossa evolução enquanto sociedade me parecia a convivência, coexistência, colaboração e cocriação, ainda que todo esse “co” seja limitado por uma pequena escala, uma vez que as esferas de decisão, de vitalidade comunitária tendem a ser menores levando em conta a escala humana ou micro escala.

Essa organização compartilhada e de pequena escala, pode, inclusive, nos remeter a uma outra ideia do passado, as “cidades-estado”. Numa escala de antifragilidade, e portanto, de dinamismo e adaptabilidade, podemos imaginar que uma cidade é mais resiliente do que um estado que, por sua vez, é mais resiliente do que um país, em grande parte pela proximidade com os problemas e a maior capacidade de adaptação e evolução. Podemos fazer um paralelo óbvio com as startups que têm muito maior capacidade de adaptabilidade e mudança de rota do que os grandes conglomerados multinacionais.

Colaboração, convivência, pequenas escalas de poder compartilhado, comunidades vibrantes viabilizadas e interligadas pela tecnologia contemporânea me parecem ser o modelo de cidades do futuro. Essa tecnologia pode inclusive desmaterializar a ideia de cidade como conhecemos, não como o metaverso, mas com experiências e encontros não necessariamente ligados ao território físico, mas uma conexão por identidade e por significado mesmo que o grupo esteja espalhado em diferentes continentes.

Mas a pergunta que fica é, se tirarmos a tecnologia contemporânea da equação o que nos resta? Acertou quem disse as cidades antigas.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Ilustração da Capa: Celyn Brazier

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O fantasma do Natal futuro

Ilustração noturna de uma cidade nevada com prédios iluminados decorados para o Natal, com Papai Noel segurando um presente sobre um dos telhados, sob o luar.

Escrevo esse primeiro artigo como colunista fixo do O Futuro das Coisas a 30.000 pés de altitude, num dos voos domésticos mais longos a partir de São Paulo. Não me considero, nem de longe, um futurista, não tenho capacidade para tal, mas venho sistematicamente colaborando com minhas reflexões e provocações sobre as cidades e nossa vida nelas, nesses tempos estranhos em que vivemos, onde presente e futuro se entrelaçam constantemente e por isso mesmo deixo aqui público o meu orgulho de ter sido convidado para fazer parte desse time.

Olho pela janela em meio as nuvens e, voando para Natal, próximo ao Natal, é inevitável não falar sobre um período no qual as cidades costumavam vibrar acima da média, incluindo minha cidade natal, Santos.

Embora, depois de adulto, eu constantemente amaldiçoe a cidade onde nasci, eu tive uma infância bastante divertida, vivendo descalço e sem camisa 24 horas por dia como todo moleque caiçara que se preza. Um dos eventos que me faziam calçar e vestir algo era justamente a época que antecedia o Natal. Esse era um período esperado o ano inteiro, oportunidade de sair de casa a noite e de ver a cidade à noite e de quebra, ainda ganhar algum brinquedo.

Santos, em alguns momentos, se julgava Miami. Eu morava na Santos Beach, o centro ficava na Santos City. Minha avó, companheira inseparável nas minhas primeiras aventuras fora de casa, em viagens que ela carinhosamente chamava de “viagem de lavadeira” – saíamos sempre às sextas-feiras à noite e voltávamos aos domingos à noite – era a responsável por me levar à “cidade” naquela semana mágica que antecedia o Natal.

O roteiro era sempre o mesmo. Pegávamos o ônibus elétrico número 08 (trólebus, não um ônibus elétrico de uma Tesla da vida) descíamos na praça Mauá, no ponto final, mais ou menos em frente ao Café Carioca, onde muito antes dos controles sanitários e Anvisas da vida, você pedia um pastél de queijo e brotava na sua mesa um prato com dezenas deles e você pagava o que consumia, e claro, nunca era um só. Depois batíamos perna pelo centro da cidade atrás de algo que não me lembro exatamente o que era, até porque o que comprávamos não era nada relevante diante da aventura em si.

Lembro do meu fascínio pela “cidade” naquelas curtas semanas. Luzes, músicas, barulho, letreiros, movimento, pessoas, muitas pessoas. O próprio Flanêur ficaria com inveja de tanto que andávamos, apreciando tudo aquilo.

Falo de um tempo pré-shopping, em meados dos anos 1970. Não sei precisar quando as lojas dos centros Brasil afora deixaram de abrir até às 22h no final de ano. Suspeito que tenha sido junto a popularização dos shoppings, supostamente mais confortáveis e práticos. Provavelmente junto a isso começou o declínio dos centros brasileiros, sua mudança de perfil e por sua vez o desinteresse de grande parte da população. O glamour foi substituído pelo comércio mais popular, algo que por si só não é problema algum, mas que teve um efeito um tanto devastador em várias centralidades deixando uma arquitetura belíssima abandonada em prol do passear pasteurizado da grande maioria dos shoppings.

Se os shoppings podem ter sidos os primeiros vilões, hoje vivemos um novo ciclo de depreciação dos centros, ou de qualquer outra área majoritariamente comercial incluindo os próprios shoppings: as compras online. Nesse momento, alguém pode estar pensando, ainda bem que essa criatura não se julga futurista mesmo, afinal não existe nenhuma novidade nesse movimento. Engano.

Embora o consumo online nos acompanhe há tempos, a pandemia complicou um pouco as coisas ao mesmo tempo que facilitou. Confuso? Explico: facilitou para você e complicou para as cidades. Você, assim como eu, deve ter se acostumado com as maravilhas do delivery, essa coisa linda de comprar de casa, de pijama, e receber, em casa, de pijama no dia seguinte. Num primeiro momento isso parece o mundo ideal. 

Escrevi aqui, nesse mesmo portal, sobre a dificuldade de comerciantes e marcas em lidar com esse novo momento, seja pela dificuldade em se adequar as novas tecnologias, seja pela total incapacidade de promover uma experiência positiva que vá além do produto ou serviço comoditizado que oferecem. Se eu posso comprar tudo de casa e as lojas não me oferecem nada além dos produtos, por que diabos sairia de casa especificamente para comprar algo que posso comprar pela internet? Ganho eu, perde a cidade.

Pois bem, a coisa toda complicou ainda mais. Agora não é só uma questão desse ou daquele comércio, é uma questão que impacta ruas e bairros inteiros. Em recente artigo na Bloomberg Cities li o que algumas cidades no mundo chamam de delivery de 15 minutos. Se você como eu, achava lindo receber em 24 horas, imagina agora em 15 minutos? Mas claro, nada é tão simples assim. Depois das “dark kitchens” tão populares na pandemia, chega a vez das “dark stores”.

Esse delivery à jato só é possível graças a esse novo modelo de loja, que de loja não tem nada. Tratam-se de micro centros de distribuição em lugares onde antes havia… lojas. As únicas pessoas que entram e saem das “dark stores” são entregadores apressados de olho nos prazos a serem cumpridos. Entendeu a diferença? Se antes o entregador de aplicativo tinha que ir em loja A, B ou C para cumprir sua entrega, agora as lojas A, B ou C se deslocam para um lugar, muito mais próximo de você, onde os entregadores se abastecem dos pedidos que você receberá em casa de pijamas em 15 minutos.

Mas qual o problema disso, não é uma maravilha? Como um apaixonado pelas cidades creio que não, ou pelo menos, não do jeito que se apresenta. Da mesma forma que outro movimento disruptivo impactou bairros inteiros com o AirBnb, gentrificando, criando movimentos sazonais que por sua vez quebraram o comércio local, e precisou ser regulado (quando não proibido), as “dark stores” podem ter o mesmo impacto, expulsando o comércio local e pior, tirando a vibração característica das áreas comerciais, que por muitas vezes as definem enquanto bairros ou cidades.

Ao mesmo tempo que é inútil negar as mudanças de comportamento e a evolução causada por elas e para elas, é inegável o desafio que gestores públicos tem pela frente com essa inovação e mudança dos comportamentos urbanos constantes, seja pela tecnologia, seja por eventos não previstos como a pandemia, seja pelos dois.

Enquanto as cidades precisam se adaptar e evoluir, ou para fazer o meu jabá, tornarem-se cidades antifrágeis, nós consumidores podemos fazer nossa parte, mesclando nossas compras digitais com o apoio ao pequeno comércio local, que inclusive nos salvou do desabastecimento durante os períodos de isolamento.

Entender a importância do pequeno comércio de proximidade, é entender a capacidade de ativação comunitária desses estabelecimentos, seu impacto na segurança pública como dizia Jane Jacobs, seu papel no cotidiano, não só das pessoas, mas também das cidades.

Infelizmente não visito mais a “cidade” com minha avó há décadas, tampouco posso fazê-lo com minha filha, primeiro porque não tenho mais a Dona Nilde para me fazer companhia e segundo porque não existe mais o centro vibrante e iluminado até a noite.

Se todos nós, consumidores e gestores públicos, não ficarmos atentos, talvez, num futuro não tão distante assim, não tenhamos mais centro nenhum, iluminado ou não.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: Tiffany & Co
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País de qual futuro? Uma perspectiva estratégica sobre a Marca Brasil

Pintura “A Pátria”, de Pedro Bruno, retratando um ambiente doméstico onde várias mulheres costuram a bandeira do Brasil. Crianças pequenas interagem com o tecido no chão, enquanto o fundo mostra um cenário natural visto por uma porta aberta. A obra transmite valores de maternidade, patriotismo e trabalho coletivo feminino.

Nasci em 72, bem no meio dos anos de chumbo, período mais repressivo da ditadura militar (1968-1985). Minha primeira memória de infância foi  assistir a Vila Sésamo em uma pequena televisão preto e branco no quarto dos meus pais num apto de um quarto (onde, para os padrões de hoje, caberia um apartamento de 2 suítes) na orla da praia em Santos-SP. Vi a morte de Tancredo Neves ser anunciada em cadeia nacional durante uma aula da 7ª série do então chamado ginasial. Tudo isso para por em perspectiva um certo desdém ao ouvir ainda em 1989 a música “1965-Duas Tribos” da Legião Urbana, então no auge do sucesso, cantando: “O Brasil é o país do futuro”.

Há décadas somos o país do futuro, proclamado por Zweig, autor judeu-austríaco, radicado em Petrópolis que, em 1941 lançara o livro “Ein Land der Zukunft” ou “Brasil-País do Futuro”, ressaltando nossas virtudes, de forma um tanto ufanista é verdade. Perseguimos essa ideia há 77 anos.

Deu-se então a minha chegada ao Rio, que me causou uma das mais fortes impressões de minha vida. Fiquei fascinado e, ao mesmo tempo, comovido, pois se me deparou não só uma das mais magníficas paisagens do mundo, nesta combinação sem igual de mar e montanha, cidade e natureza tropical, mas lambem uma espécie inteiramente nova de civilização. Aqui havia, inteiramente contra minha expectativa, um aspecto absolutamente próprio, com ordem e perfeição na arquitetura, e no traçado da cidade, aqui havia arrojo e grandiosidade ems todas as coisas novas, e ao mesmo tempo, uma civilização antiga ainda conservada de modo muito feliz, graças à distância. Aqui havia colorido e movimento; os olhos não se cansavam de olhar e, para onde quer que os dirigisse, sentia-me feliz. Apoderou-se de mim uma ebriedade de beleza e de gozo que excitava os sentidos, estimulava os nervos, dilatava o coração e, por mais que eu visse, ainda queria ver mais.” (ZWEIG, 1941)

Em meio ao calor das eleições presidenciais que dividem o país, é relevante refletirmos sobre o futuro do nosso país. Não pretendo nesse espaço fazer qualquer reflexão política, nem ressaltar pontos positivos ou negativos desse ou daquele partido. A ideia é criarmos uma perspectiva estratégica a respeito do que poderíamos fazer para o nosso futuro, para que, inclusive, um dia ele chegue de fato.

Ao melhor estilo americano de “10 ações para isso” ou “5 passos para aquilo” vou elencar algumas reflexões necessárias, começando pela mais óbvia.

1.Visão estratégica

Enquanto vários países do mundo estão discutindo e criando metas e objetivos para 2050, nós ora somos paralisados por sessões da Câmara ou do Senado e pela iminência de alguma prisão, ora pela polarização política diante de mais uma eleição. Não conseguimos planejar o próximo mês, quem dirá a próxima década, 2050 então é praticamente uma outra encarnação.

Enquanto a Holanda quer ser o primeiro país vegano do mundo até 2030 e a Dinamarca pretende banir o uso de combustíveis fósseis usando 100% de energia limpa até 2050, o que nós estamos projetando? Claro que existem questões emergenciais e estruturais em nosso país, muito antes de pensarmos em sermos veganos, ou sustentáveis, mas estamos projetando essas necessidades estruturais e emergenciais de forma efetiva?Ou simplesmente apagamos um incêndio por vez? (nunca uma figura de linguagem fez tanto sentido infelizmente)

Existem ações isoladas, não governamentais, muito voltadas para os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) da ONU como a plataforma Agenda 2030 ou o projeto Brasil 2030 e promessas por parte do governo como a redução de emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2050.

Mas a questão permanece, qual a visão de país que compartilhamos, que buscamos?

2. Imagem-país

Quem acompanha os meus artigos aqui no O Futuro das Coisas pode estranhar a aparição do conceito de imagem antes de falarmos de identidade, afinal a imagem é resultado de uma identidade e não vice-e-versa. Explico. É essencial pensarmos na imagem projetada e percebida do país. Provavelmente teríamos mais força se a “Imagem-País” fosse mais trabalhada, ao invés de pensarmos de forma setorial ou pior, ficarmos amarrados às marcas de performance internacional que se alinham com a “ideia/imagem” do Brasil. Lembrou de alguma marca em especial? Uma né? E olhe lá… Algumas marcas, inclusive, parecem preferir não associar sua imagem com a imagem do país.

Claro que marcas fortes originárias de um país contribuem (e muitas vezes constroem) a percepção do próprio país. Usando o exemplo clássico, as marcas suíças reforçam a percepção da Suíça ou a marca-país reforça a percepção das marcas suíças? A resposta é simples, não importa!!! Tal o nível de maturidade tanto das marcas suíças quanto da Marca Suíça, a origem da percepção é irrelevante, uma vez que ambas se complementam e entregam uma mesma “promessa”. Promessa essa cuidada, não por acaso, por um órgão governamental do país chamado Presence Switzerland.

Essa é inclusive uma das minhas provocações nas palestras sobre place branding, independente da região do país onde esteja , após ouvir vários atributos e vários produtos quando pergunto sobre o que a Suíça remete as pessoas. Um silêncio constrangedor se instala no auditório após a mesma pergunta ser feita, só que dessa vez, usando o Brasil como sujeito.

Essa história nos leva ao item número 3 da nossa lista.

3. Identidade

Há muito tempo ouvimos o termo identidade nacional, que, convenhamos, soa cada vez mais anacrônico, mas é preciso entender a sua importância, ainda que absolutamente distante da ideia compartilhada pelo “Estado Novo”, que então buscava um argumento para personificar a identidade nacional e edificar uma nação a imagem dessa sociedade.

O fato é que ainda não sabemos quem somos, pudera, não paramos para pensar nisso, muito por conta do 1º item dessa lista. Somos historicamente bombardeados por estigmas e caricaturas, do próprio Zweig, seguido pelo simpático Zé Carioca, personagem da Disney de 1942, pelo país do futebol, do Carnaval, da Tropa de Elite a impagável cena de Velozes e Furiosos onde o personagem principal, interpretado pelo shakespeariano Vin Diesel profere, no momento em que várias pessoas, aparentemente em uma comunidade do Rio, levantam suas armas para a polícia: “This is Brazil”.

Um dos problemas de não controlarmos a nossa própria narrativa, ou pelo menos influenciá-la é que deixamos essa influência para terceiros, que então podem se apropriar como bem entender, de forma caricata ou não, real ou não. Isso não é empurrar a sujeira para baixo do tapete, e fazer de conta que nada disso existe, mas sim, entender que somos mais do que isso, ou não somos? Também podemos chegar à conclusão que não, mas essa também é uma forma de nos apropriarmos da nossa própria narrativa.

4. Das partes para o todo e vice-e-versa

Muitos perguntarão, com razão, como podemos pensar em algo tão abrangente quanto a ideia de identidade nacional em tempos líquidos? Não é nada simples, mas possível. A saída pode estar, não em uma abordagem nacional, mas em uma abordagem regional. Em um país diverso como o nosso um dos caminhos possíveis é o mapeamento de características identitárias regionais, uma forma de pensar as diversas regiões e micro-regiões como identidades próprias, com suas particularidades, culturas, linguagens, economia, etc…

O trabalho seguinte seria sobrepor esses “mapas” e buscar resultantes, pontos comuns às regiões. Nesses pontos comuns, nesses elementos resultantes, poderia estar a “cola” que une todos enquanto país.

Ao mesmo tempo é possível imaginarmos, dada à dimensão do Brasil, que as diferentes regiões possam se comportar de forma mais ou menos autônoma, onde, dessa forma, a imagem do país não seria a resultante da sobreposição de características identitárias, mas a sua simples soma. Para isso seria necessária uma imersão na identidade de cada uma dessas regiões e uma compreensão da potência estratégica dessa soma e diversidade enquanto país, algo não mais unificado, uno, coeso, mas plural, polifônico, dinâmico, onde a soma das partes é maior do que o todo.

5. Participação

É essencial entendermos a diferença entre as ideias de país e de nação.

Podemos dizer que país é um conceito genérico, e se refere a tudo que se encontra no território e apresenta características físicas, naturais, econômicas, sociais, culturais e outras. O conceito de nação significa uma união entre um mesmo povo com um sentimento de pertencimento e de união entre si, compartilhando, muitas vezes, um conjunto mais ou menos definido de culturas, práticas sociais, idiomas, entre outros. Assim sendo, nem sempre uma nação equivale a um Estado, ou a um país ou, até mesmo, a um território, havendo, dessa forma, muitas nações sem território e sem uma soberania territorial constituída. A identidade, o senso de pertencimento não está mais limitado à dimensão territorial.

Nesse sentido é possível concluir que tudo gira em torno das pessoas, das ideias, culturas, ritos, mitos, histórias que elas compartilham. E se a nação é feita por pessoas, nada mais óbvio que, elas mesmas façam parte dos processos decisórios. O tradicional processo “top-down” não faz mais sentido em tempos de “novo poder”.

O século XX foi construído de cima para baixo. A sociedade foi imaginada como uma grande máquina, movida de maneira intrincada por grandes burocracias e corporações. Para manter a máquina funcionando, pessoas comuns tinham papéis cruciais, embora pequenos e padronizados, a desempenhar. Faça seus exercícios. Reze suas preces. Aprenda sua tabuada. Cumpra seu expediente. Tire a foto do anuário escolar. Muitos de nós ficávamos relativamente satisfeitos por desempenharmos um papel menor num processo maior. Mas a ascensão do novo poder está mudando as normas e as crenças das pessoas a respeito de como o mundo deve funcionar e onde elas devem se encaixar. Quanto mais nos engajamos em modelos do novo poder, mais essas normas mudam. Na verdade, o que está surgindo — e isso é mais visível entre pessoas com menos de trinta anos (hoje mais da metade da população mundial) — é uma nova expectativa: um direito inalienável de participar. (Timms e Heimans, 2018)

Os processos “bottom-up”, onde as pessoas são protagonistas e não as instituições vem se tornando cada vez mais presentes no mundo atual. A transparência proporcionada pelas novas tecnologias e  certo grau de desconfiança na capacidade dos governos de lidar com as questões do dia-a-dia dos cidadãos nos leva a buscar formas mais ativas de engajamento, seja ocupando os espaços públicos ao melhor estilo “faça você mesmo”, organizando eventos coletivos ou criando mecanismos de gestão participativa. Nesse momento a tecnologia é presente, essencial, é meio e não fim. Ela agiliza e possibilita o compartilhamento de informações e a conexão entre pessoas com alinhamento de propósito de uma forma impensável 10 anos atrás.

A própria ideia de uma “marca-país” deveria nascer da comunidade e não do governo.

Quando falo em marca, esse termo batido e mal compreendido, não me refiro a logotipos, publicidade ou marketing, e sim ao termo marca como uma representação de uma ideia compartilhada, fruto de uma identidade compreendida, ou em processo de compreensão. Talvez, não seja mais possível falarmos em identidades “fixas” como sugere Stuart Hall, inclusive discutindo o próprio termo identidade com uma sugestão mais contemporânea, identificação.

Se imaginarmos que governos vem e vão e que projetos de poder mudam a cada cinco anos, fica ainda mais evidente a necessidade das pessoas se envolverem nas diferentes esferas de decisão, transformando projetos de poder em projetos de nação, compartilhados, pensados por quem permanecerá por muito mais do que cinco anos de governo com o “skin in the game”.

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Conclusão

Evidente que existem outras centenas de assuntos a serem tratados para que alcancemos esse futuro de fato, questões emergenciais como educação, segurança, saúde, igualdade, mas ao mesmo tempo é preciso entender que, o pensamento estratégico também deve permear esses assuntos e outros, como sugeridos nesse artigo.

Pensar estrategicamente na nossa identidade, vocações e potências se faz essencial para que, num trabalho conjunto, consigamos melhorar nossa reputação, ativo essencial para a captação de novos recursos, atração e retenção de talentos e ao mesmo tempo tenhamos condições de criar um ambiente favorável não só internamente para o surgimento de novas empresas, marcas e empreendimentos, como para o fortalecimento das marcas que atingirem o estágio de maturidade necessário para a exportação ou internalização, entendendo que esse processo é justamente um dos vetores de desenvolvimento econômico necessários para enfrentarmos os problemas urgentes e estruturais que nos assolam.

Num mundo globalizado, de cadeias globais de valor, tão importante quanto a nossa identidade é a imagem que o mundo tem de nós, e, na mesma medida essa imagem é consequência da forma como nós mesmos nos vemos. Afinal, só existe cidade boa para o turista se for boa para o morador… e nesse caso, turista é figura de linguagem… ou não.

Imagem da capa: quadro Pátria, de 1918, de Pedro Bruno que retrata a bandeira do Brasil sendo bordada no seio de uma família. Esta tela é a máxima representação de uma expressão, de um sentimento de uma nação, mas também da construção do imaginário coletivo.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa:
Quadro “A Patria” de Pedro Bruno.

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Vivemos num mundo onde não basta só falar, é preciso ser; não basta parecer é preciso vivenciar

Apresentação artística com projeção da Terra em uma estrutura esférica gigante, onde diversos artistas em trajes coloridos escalam ou se movimentam sobre a superfície, simulando o globo terrestre.

O cenário que se descortina a nossa frente em meio à posse do novo presidente norte americano e sua visão particular sobre nacionalismo, como também o possível crescimento da extrema-direita na França na figura de Marie Le Pen – e a retomada da xenofobia a níveis alarmantes, deflagrada como justificativa após a crise dos refugiados  – além de nossos próprios problemas internos aqui no Brasil, nos obrigam a repensar o significado de um conceito arraigado, muito falado mas pouco explicado: a identidade nacional.

A necessidade de uma “identidade nacional” é um assunto debatido pela intelectualidade brasileira desde o século 19, e teve uma especial importância durante o “Estado Novo”.

Naquele momento, buscava-se a identidade nacional como um arcabouço legal para uma construção nacional, o estado então, personifica a identidade nacional e edifica uma nação a imagem dessa identidade. (SOUZA, 2004).

Esse processo buscava um povo que se encaixasse a uma identidade, e nesse processo caberia ao estado tutorá-lo e protegê-lo.

Após esse episódio, o próprio termo “identidade nacional” mereceu uma reflexão maior, apresentando um desgaste inevitável após a sua associação aos ideais de estados totalitários, que viam não uma recusa às diferenças, mas uma tentativa de integrar essas diferenças a um padrão dominante, buscando um consenso.

O mais recente episódio de “soberania nacional” talvez seja o muro que dividirá o México e os Estados Unidos.

Além dos diversos muros invisíveis que separam os povos, imigrantes, nacionalizados, ilegais, agora teremos também um muro físico, concreto, separando “nós” e “eles”, ou aqueles que são como eu daqueles diferentes de mim, justamente em um momento histórico onde as fronteiras se reforçam e a globalização parece cambalear, com movimentos como Brexit e um mundo cada vez mais isolado, olhando pra dentro.

No Brasil, o fato é que a nossa percepção, interna e externa, ainda é bastante difusa. Achamos que entendemos a nossa “essência”, mas logo que somos questionados por alguém um pouco mais insistente, fica óbvio que nossas certezas não sobrevivem a mortal segunda pergunta, que inevitavelmente é: Por que?

No exterior temos uma imagem percebida carregada de estereótipos, do país do futebol, das mulatas, do carnaval. Até o inocente Zé Carioca, personagem da Disney do século passado, contribuiu para uma percepção daquilo que supostamente somos.

Mas o que é identidade nacional?

Podemos dizer que uma nação é constituída por um legado de lembranças compartilhadas por todos (RENAN, 1947), ou seja, uma nação é o compartilhamento de histórias, lembranças, cultos e ritos. E quando não temos o que compartilhar? Nós inventamos.

A identidade nacional é um discurso. No caso do Brasil, era preciso ser ao mesmo tempo diferente do povo português e manter traços de sua herança cultural (FIORI, 2009).

Parece amplamente aceito o fato de nossa cultura se basear na mistura. Desde O guarani, de José de Alencar, essa ideia é difundida, à medida que o casal Peri e Cecília, um índio e uma portuguesa, representariam esse “casal inicial”. Nesse momento o país seria a síntese do velho (legado português) e o novo (o índio que se convertera ao cristianismo) (FIORI, 2009)

Se a identidade é algo que nos torna únicos e não idênticos, como então a tal mistura pode ser o elemento determinante de nossa identidade? No Brasil nada é tão simples.

Como vemos, o próprio Homo Sapiens é dado a relações fantasiosas, muitas vezes disfarçadas de “natural”, buscando relacionar essas associações com elementos da biologia. As redes de cooperação que se formaram desde as cidades da Mesopotâmia até o Império Romano eram ordens imaginadas. “As normas sociais que as sustentavam não se baseavam em instintos arraigados nem em relações pessoais e sim na crença em mitos partilhados.” (HARARI,2015)

Diagrama em formato de hexágono intitulado 'Nation Brand Hexagon', que mostra seis elementos que compõem a marca de uma nação: Turismo, Exportações, Governança, Investimento e Imigração, Cultura e Patrimônio, e Pessoas. No centro, está escrito 'Nation Brand'.

Simon Anholt, criador do termo Nation Branding em 1996, propunha levar as ferramentas e metodologias do branding corporativo para o seu uso nas nações. Podemos afirmar com grande chance de êxito que os países já se “viravam” muito antes disso na tentativa de contar suas histórias e criar uma identidade nacional (ESTEVES, 2016)

Outra reflexão se faz necessária: a diferença entre país e nação.

Podemos dizer que país é um conceito genérico, e se refere a tudo que se encontra no território e apresenta características físicas, naturais, econômicas, sociais, culturais e outras. O conceito de nação significa uma união entre um mesmo povo com um sentimento de pertencimento e de união entre si, compartilhando, muitas vezes, um conjunto mais ou menos definido de culturas, práticas sociais, idiomas, entre outros. Assim sendo, nem sempre uma nação equivale a um Estado, ou a um país ou, até mesmo, a um território, havendo, dessa forma, muitas nações sem território e sem uma soberania territorial constituída.

A diferença de como nos vemos e como somos vistos

A miscigenação faz parte da nossa identidade, senda e própria miscigenação, muito provavelmente a nossa maior característica de identidade.

Diferente dos países europeus, por exemplo, a nossa formação envolve pelo menos 3 etnias diferentes, o índio, o europeu e o negro, e mesmo com as previsões dos intelectuais das primeiras décadas do século 20, o brasileiro não se “embranqueceu” eliminando os traços da tal mistura, mas sim a fortaleceu, a legitimou.

Diante da perspectiva do nation branding, é de extrema importância a caracterização de elementos distintivos, ou como disse Govers e Go ( 2009), sua identidade como vantagem competitiva.

Se concordarmos que os países estão sujeitos a concorrência,  quais os elementos que nos diferem dos demais países? Temos isso claro?

Ou ainda, serão esses elementos comuns a todo o país, algo que nos caracterizaria como um único povo?

Minha suspeita é que não. Não só não sabemos que elementos são esses, como somos bem mais do que um povo.

Se não sabemos quem somos, seria muito difícil comunicarmos nossas características de forma satisfatória, afinal, alinhamento é um dos princípios do branding e por extensão, do nation branding. Para uma boa “country image” seria necessária uma identidade que a argumentasse.

Por isso caímos na armadilha dos diferenciais genéricos. Falamos de paixão, hospitalidade, calor, alegria… Podemos afirmar isso de todo o país? De norte a sul, leste a oeste? Se pudermos, como qualificamos esses adjetivos? Complicou não é mesmo?

Identidade nacional ou identidades nacionais?

Vimos que historicamente, inventamos nossas próprias histórias e origens, muitas vezes defendendo os interesses do estado outras de uma classe dominante, ou como disse Harari, enquanto uns faziam a história, a grande maioria se ocupava em arar os campos.

Talvez uma identidade nacional forte nos leve, como sugerem alguns, a um caminho xenofóbico, intransigente, onde olhamos só para nossos próprios umbigos, ou pior, para o nosso próprio umbigo, já que seriamos um só, um grande e uníssono ideal, estandarizado, singular, único.

Paremos um instante, esquecendo Trump e Le Pen, e olhemos para o “outro lado”. Países com identidades nacionais fortes não são necessariamente xenófobos, nesse caminho podemos lembrar do Reino unido, por exemplo, que mesmo com seu passado colonialista e com uma monarquia ainda forte, recebe diferentes culturas oferecendo uma democracia bastante estável para povos vindos de diversas regiões do mundo.

Em Londres é possível ver uma atendente da GAP, uma marca americana em um país europeu, mantendo seus costumes muçulmanos e usando véu, isso em um mesmo país que promove a campanha GREAT com o apoio de várias marcas e personalidades britânicas para promover a imagem do Reino Unido internacionalmente.

Será que é ansiedade demais esperar que tenhamos as nossas características definidas, sendo um país tão jovem?

Acredito que não, e explico de forma muito simples esse pensamento. Tradição, um ativo de marca-lugar poderoso é só uma das possibilidades e no caso do Brasil, pouco aplicável. Não é preciso ser “velho” para ser reconhecido, muito pelo contrário.

É preciso entender que ainda estamos, e continuaremos escrevendo a nossa história, por muito tempo, e justamente por isso é preciso olharmos com atenção para as nossas questões de identidade, nossas características culturais, distintivas e singulares.

Nossa cultura nasce da miscigenação, o que deveria ser suficiente para lidarmos com questões totalitárias, reducionistas, uma vez que somos resultado da pluralidade.

Esse nosso DNA nos diferencia na mesma medida que nos define, e mesmo sendo negado, continuará sendo presente. Mas, será que é só isso?

Como resolver essa questão?

Dessa forma resta entender quem escreverá a nossa história, quais serão as nossas características notáveis. Muito além disso, a questão mais relevante é:

Será que temos a necessidade/obrigatoriedade, de termos somente uma única identidade nacional.  Se precisarmos dessa unidade, com chegaremos nela?

A única resposta é através do engajamento de toda a população, algo extremamente difícil dado um país do tamanho do nosso e com toda a desigualdade o que torna o acesso a informação e a tecnologia raros em varias regiões do país.

Será que a solução pertence à esfera do marketing, e basta desenvolvermos nosso símbolo nacional para que sejamos reconhecidos? Pouco provável. Vivemos num mundo onde não basta só falar, é preciso ser; não basta parecer é preciso vivenciar.

Muito mais importante do que entender o que nos une enquanto nação é entender o que nos diferencia.

A unidade pode estar na própria formação do povo brasileiro, composta pelas três etnias, mas como isso se deu em cada canto do país é um exercício ao mesmo tempo rico e hercúleo, que muito dirá sobre a nossa capacidade de “competir” por um lugar de diferenciação diante do imaginário coletivo internacional.

Longe de um conceito autoritário de identidade nacional ou regional, onde os cidadãos se encaixam em uma ideia, é hora dos próprios cidadãos escreverem a sua história e quem sabe, procurar um governo que a defenda e a legitime.

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Referências Bibliográficas
BRITO, Carina. Livro Explica a formação da identidade nacional através do imaginário artístico. Jornal da USP. 2016DINNIE, Keith. Nation Branding: Concepts, Issues, Practice. Oxford: Butterworth-Heinemann, 2008.
ESTEVES, Caio. Place Branding- Identificando vocações, potencializando identidades e fortalecendo lugares. Ed. Simonsen, Santos, 2016.
FIORIN, José Luiz. A construção da identidade nacional brasileira. Bakhtiniana, São Paulo, v.1,n.1, p.115-126, 1º sem.2009
GOVERS, Robert; GO, Frank. Place Branding: Glocal, Virtual, and Physical Identities, Constructed, Imagined and Experienced. New York: Palgrave Macmillan, 2009
HARARI , Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade. 8ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.
KATRI, Lilia e SCHWARCZ, Moritz. Complexo de Zé Carioca. Notas sobre uma identidade mestiça e malandra. ANPOCS, 1994
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Identidade cultural, identidade nacional no Brasil. Tempo Social;Rev, Sociol.USP, S.Paulo,1 (1): 29-46,1ºsem,1989.
SOUZA, Ricardo Luiz. Autoritarismo, cultura e identidade nacional (1930-1945).História da Educação, ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, n.15,p.89-127,abr.2004

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa: Caio Esteves.