Juventude e futuros: Qual é a preocupação e como está sendo solucionada? 

Quem nunca ouviu que os jovens são o futuro da nação? É uma fala muito comum, mas será que, ao fazer essa afirmação estamos pensando em quais são as possibilidades de futuro e se estamos preparando a juventude para eles?  Primeiro é importante entender quem compõem a juventude, quais lugares ocupam e como se percebem (ou são percebidos) na sociedade.  

A juventude é definida em três etapas: 1) jovem adolescente, são aqueles de 15 a 17 anos; 2) jovens jovens, de 18 a 24 anos; e por fim 3) jovens adultos, de 25 a 29 anos. Diferente da noção de criança e adolescente instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em que é analisado o desenvolvimento psicológico dos indivíduos, a noção sobre juventude se relaciona também com aspectos sociais e econômicos, ou com a ideia de que são responsáveis e possuem certo nível de independência, ou seja, estão passando pelo processo de amadurecimento e reconhecimento de si na sociedade, ou seja, estão encontrando seu lugar no mundo. 

Mas de que maneira as guerras, crises econômicas e climáticas e todo o senso de escassez e incertezas afetam a juventude?  

“Com o avanço da pandemia, a situação se tornou ainda mais grave, ampliando os índices de jovens sem oportunidades de trabalho e também da evasão escolar, com uma parcela significativa da população sofrendo impactos em seu processo educacional. Todo este contexto tem forte influência no desenvolvimento da população jovem. Caso este cenário não seja revertido, o Brasil vive o risco de ter uma geração perdida e pode desperdiçar a oportunidade de alavancar o seu crescimento utilizando como força motriz a maior população de jovens da sua história” 

Abramo (2024) nos mostra que existe uma ausência de perspectiva de futuro para os jovens que é percebido pelos nem nem (nem estuda, nem trabalha). Basicamente, o que analisamos é um esgotamento da juventude que, se quer, consegue vislumbrar um futuro e sonhar com mudanças significativas e positivas em seu contexto social. 

Em contrapartida, existe uma parcela da juventude sendo capturada pelos conselhos de coachs e pela ideia de que o enriquecimento é fácil, que seguir com os estudos não é uma boa ideia, que o pensamento consegue transformar realidades e que as universidades não servem pra nada, afinal ninguém ganha dinheiro enquanto está estudando, mas gasta com mensalidade, materiais, alimentação, transporte etc. 

Ou seja, temos grupos opostos e que não dialogam. Assim como as políticas públicas pensadas para a juventude porque elas não conseguem compreender as mazelas, dúvidas e incertezas que os assolam. Pelo contrário, existe uma tentativa resolver os prováveis problemas do futuro com ideias do passado e do presente. 

E, de que maneira esse abismo geracional se apresenta? 

Infelizmente, a dificuldade de diálogo entre as gerações é muito comum porque existe um apego ao passado, a ideia de que a vida precisa continuar como sempre foi. Então quando as ideias e o modo de fazer se transformam ou se adaptam à novas necessidades há uma descrença. 

Desta maneira, a juventude consegue se colocar em diferentes lugares, mas não necessariamente é respeitada e têm suas opiniões validadas em todos eles, a ausência ou a pouca experiência prática em certas situações é utilizada como justificativa para deslegitimar as percepções e ideias dos jovens, porque a experiência o know-how pra algumas pessoas é mais importante e legítimo do que o conhecimento teórico ou científico. 

Por isso é tão comum, em alguns momentos ouvirmos que a juventude está perdida, que os jovens não trabalham como antes, que não se importam com nada ou o famoso “na minha época era diferente”, mas é importante ter em mente que as demandas atuais também são diferentes. 

Desejar que os comportamentos se repitam seria um grande erro! 

O excesso de telas, todas as crises (ambiental, climática e econômica) e todas as revoluções tecnológicas são exemplos de situações que se transformaram em problemas gravíssimos e afetam toda a população, em todas as idades. Essas mudanças evidenciam que as vivências, necessidades e problemas de hoje não são os mesmos do passado e tentar resolver os problemas dos futuros com soluções do passado não faz sentido, em especial para crianças e jovens que serão mais afetadas. 

A ausência da juventude na elaboração de projetos e políticas públicas escancaram a gravidade da situação. 

Temos como exemplo a Reforma no Ensino Médio, uma proposta muito interessante porque tenta aproximar a escola e seus conhecimentos das vivências e realidades da juventude. Entretanto, as disciplinas eletivas não geram interesse na juventude, os profissionais da educação não receberam o preparo pras disciplinas que são ministradas, a carga horária não se adequa a realidade de jovens da escola pública, existe uma diminuição da carga horária das disciplinas ‘normais’ e em cidades pequenas com uma ou duas escolas de ensino médio não há poder de escolha. 

Sendo assim, o abismo com a juventude aumentou. 

Por fim, é importante pensar a juventude e os futuros com um olhar ampliado. É essencial que tenhamos em mente que os futuros serão habitados mais pela juventude que por nós, portanto eles precisam, pelo menos, idealizar as múltiplas possibilidades que os aguardam e ser parte atuante nos processos. 

Referências: ABRAMO, Helena. Políticas Públicas de Juventude: reconstrução em pauta. Mapas e caminhos de políticas públicas de juventude: qual é a bússola de reconstrução? Ação Educativa, São Paulo, 2024 
Foto de Capa: Pixabay.

A Geração Beta vem aí: como criar lugares à prova de futuro para eles?

Geração Beta usando óculos de Realidade Aumentada em ambiente urbano futurista, ilustrando a fusão entre mundo físico e digital nas cidades do futuro

A partir de 2025, testemunharemos a emergência de uma nova geração que desafiará tudo o que entendemos sobre comportamento urbano, identidade e pertencimento: a Geração Beta. Nascidos entre 2025 e 2039, estes indivíduos constituirão 16% da população global até 2035 e não apenas serão os responsáveis por conduzir o mundo para o próximo século, mas também os primeiros a viver em um mundo onde a distinção entre físico e digital simplesmente não existirá.

Imagine um cotidiano em que:

· A inteligência artificial e a realidade aumentada são tão naturais quanto uma ligação telefônica.

· Viver simultaneamente nos mundos físico e digital é a norma, não a exceção.

· As interações sociais fluem naturalmente entre espaços tangíveis e virtuais sem nenhuma sensação de ruptura.

Diante deste cenário, uma pergunta crucial se impõe: que tipos de lugares precisamos construir para acolher essas novas formas de interação e pertencimento de uma geração que habitará simultaneamente o físico e o digital?

Do analógico ao digital: rumo à Geração Beta

Como um millennial nascido nos anos 80, minha experiência de vida sempre abrangeu duas realidades complementares, porém distintas. A infância foi 100% analógica: para conversar com amigos, era preciso combinar um encontro com alguma antecedência ou tentar a sorte de ir, meio de surpresa, à casa de alguém e tocar a campainha. Já enquanto adolescente, testemunhei e fiz parte da revolução das comunicações e das redes sociais: através de Orkut, MSN e até mesmo mensagens SMS, era possível socializar por horas sem sair de casa ou marcar encontros presenciais com maior assertividade e precisão de tempo.

A revolução da internet foi determinante para a minha geração, mas a linha entre o físico e o virtual sempre foi clara. Agora, para a Geração Beta, essa distinção será obsoleta. Navegar entre realidades será tão instintivo quanto um pássaro alterna o voar e o pousar.

Esta mudança não diminui a importância do espaço físico. Pelo contrário, adiciona novas camadas à nossa compreensão de identidade e comunidade. A questão é: como preparar nossos ambientes urbanos para essa nova realidade?

4 Cenários para Cidades da Geração Beta

É uma pergunta impossível de responder de maneira prescritiva, porque como dizemos por aqui, pensar no futuro singular é pensar no passado. No entanto, podemos explorar alguns cenários bastante iminentes, com base em tudo que sabemos por enquanto. Longe de ser uma lista definitiva, aqui estão algumas possibilidades principais:

1. Flexibilidade como Norma

Esqueça a hegemonia da funcionalidade do espaço. Em vez disso, os lugares serão definidos por sua capacidade adaptativa, ou seja, pela habilidade de se reinventar continuamente, conforme as demandas das comunidades que os habitam. Parece algo muito disruptivo agora, mas para os Betas, esse será o mínimo esperado de um espaço verdadeiramente útil e relevante: menos funções pré-determinadas e mais possibilidades de uso e exploração.

2. Cotidiano Aumentado

Se a premissa de comportamento da Geração Beta é transitar fluidamente entre os mundos físico e digital, precisamos assumir de partida que as experiências em realidade aumentada estarão muito além de smart glasses individuais e totens interativos em espaços públicos: as cidades deverão responder em tempo real às necessidades, emoções e interações de seus moradores e visitantes. A questão não é se viveremos em um mundo aumentado, mas como utilizaremos esta tecnologia para criar espaços tão responsivos quanto as possibilidades digitais que os envolverão.

3. Pertencimento Desterritorializado

Os Betas serão a primeira geração para quem o senso de pertencimento não poderá ser medido apenas pelo limite territorial do bairro e da cidade. O melhor amigo poderá estar a um oceano de distância física e, no entanto, ser tão parte do dia a dia quanto um colega de turma da escola presencial (se é que ela ainda vai existir nos moldes como a conhecemos hoje…). Essa mudança de paradigma incide em, desde já, pensar nos lugares menos como pontos num mapa e mais como destinos de comunidades intencionais.

4. Sustentabilidade Integrada

Quando os Betas chegarem à fase adulta, uma das pautas globais em alta será a comemoração do centenário da Conferência de Estocolmo (1972), considerada o primeiro grande fórum de discussão ambiental da história. Até lá, a sustentabilidade não será mais um ideal em debate, mas a própria essência do modo de vida urbano. Para essa geração, a incorporação de tecnologias regenerativas nos ambientes construídos deverá ser tão óbvia quando a necessidade de um projeto hidráulico ou elétrico.

O segredo reside em ser adaptável aos futuros incertos

Mas, se todos esses cenários são incertos por definição, a própria ideia de preparar lugares para lidar com futuros diferentes não é paradoxal?

Não, porque como dissemos, o objetivo não é prever ou prescrever cada detalhe do futuro (aliás, o nome disso é futurologia, e definitivamente essa não é a especialidade da casa!!!), mas trabalhar a capacidade de adaptação e antecipação do lugar frente às incertezas.

Mais do que a promessa de uma mudança demográfica e comportamental, a chegada da Geração Beta é uma oportunidade e um convite para reavaliarmos como estamos projetando e interagindo com os lugares que habitamos. Quanto mais cedo um bairro, cidade ou região entender sua posição neste processo e agir, mais preparado estará para lidar com as muitas incertezas e crises que aparecerão pelo caminho.

Foto de Capa: Pixabay.

A tecnologia e o nosso percurso pela cidade.

Nossas preferências por livros, filmes, séries, comida e até amigos são facilmente disponibilizados pelas já não tão novas tecnologias. A Amazon nos diz o que ler, o Facebook com quem falar, o Netflix o que assistir, o iFood o que comer, o Tinder, bom… deixa o Tinder pra lá…

Esse aparente conforto – afinal agora temos uma enorme quantidade de opções na ponta dos dedos – traz embarcadas duas questões:

1) Será que só devemos nos relacionar com quem pensa da mesma forma que a gente, ou dentro de padrões de comportamento pré-definidos, ainda que por nós mesmos?

2) Será que estamos consumindo apenas conteúdo e informações que tenham sintonia com nossos pontos de vista?

A impressão crescente é que tudo se tornará “personalizado” em um futuro próximo. Não devido às nossas próprias escolhas, mas a compreensão “artificial” (a.i ) das nossas escolhas.

As aspas nunca significaram tanto: personalizado X artificial, embora ambos, no limite, sejam artificiais. Ao que parece perderemos um pouco a nossa capacidade de escolha, imersos em um perímetro cada vez mais estreito daqueles que se comportam como nós.  Numa perspectiva Naisbittiana, o mundo será cada vez mais touch, à medida que for mais tech. De tech não entendo muito, me interessa o touch.

Discutindo exatamente sobre esse assunto e como me incomodava a ideia de não controlar o espectro das minhas interações imaginei um cenário um tanto assustador. E se esse mesmo efeito/fenômeno guiasse nossas ações na cidade em que vivemos ou naquela que estamos visitando? Na verdade ele já nos guia de alguma forma. Aplicativos como o Waze nos dizem por onde dirigir e Maps da vida nos dizem por onde andar, aparentemente visando a facilidade e a otimização do percurso.

Pensar na otimização dos percursos é pensar que nos movemos pela cidade como mero cenário, como uma espécie de obstáculo que nos separa de onde queremos chegar. 

Impossível não comparar esse aspecto extremamente racional com conceitos mais orgânicos como a psicogeografia ou a teoria da deriva, ou de forma ainda mais ampla com o flâneur Benjaminiano (Baudelariano, na verdade, embora tenha sido imortalizado por Walter Benjamin).

O mais curioso é que provavelmente o antídoto para o racionalismo dos algoritmos, que tratam a cidade, como uma espécie de máquina de viver, no melhor estilo da Carta de Atenas (manifesto-guia da arquitetura e urbanismo modernistas criado em 1933, que gerou, entre outras distorções a cidade de Brasília) também se encontre no modernismo, de Baudelaire, Allan Poe e do próprio Benjamin.

O termo psicogeografia foi definido por Guy Debord, ainda nos anos 50 e está ligado ao comportamento lúdico- construtivo que se opõe às noções clássicas de viagem e passeio (Debord, 1958).

Uma ou várias pessoas que se lançam à deriva renunciam, durante um tempo mais ou menos longo, os motivos para deslocar-se ou atuar normalmente em suas relações, trabalhos e entretenimentos próprios de si, para deixar-se levar pelas solicitações do terreno e os encontros que a ele corresponde.”

Claro que existem necessidades diferentes para momentos diferentes, nem sempre você quer “experimentar” o caminho. Às vezes a eficiência é o seu objetivo, ou como chegar mais rápido do ponto A ao ponto B e nem sempre, você terá o espírito observador, descobridor. O flâneur por sua vez é o errante, o observador, e o flanar, a “Gastronomia do Olho” como disse Balzac.


A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes. Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugido e no infinito. Estar fora de casa, e contudo, sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos prazeres desses espíritos independentes, apaixonados, imparciais que a linguagem não pode definir senão toscamente.” – Baudelaire, 1863

É importante compreendermos que a experiência na cidade vai, ou poderia ir, muito além do pragmático, do racional e do otimizado. É claro que para isso é preciso que a cidade também ajude. Já foi dito que uma cidade vibrante deve oferecer uma surpresa a todo o instante durante o percurso, o que nos aponta para a necessidade de uso misto, fachada ativa, lotes menores, vida em comunidade, com mais oportunidades de interação e descoberta.

Sobre a humanização dos espaços, o arquiteto Martín Marcos, referencia Jane Jacobs ao dizer que se quisermos cidades projetadas para o futuro, devemos voltar a olhar o espaço público como o coração da vida moderna, “repensar a rua, a praça, o parque, a arborização e a paisagem urbana, aquela que nos permita humanizar o espaço público e experimentar o encontro, o intercâmbio e a diferença.”

Para Jane Jacobs a rua é uma autêntica e complexa instituição social onde aprendemos a socializar e construir comunidade. Um projeto que foi inspirado nela, é o Jane Walk´s em que caminhadas são organizadas de forma colaborativa, por qualquer pessoa interessada em guiar o passeio. Esse projeto começou no Canadá em 2007, e desde então acontece em várias cidades ao redor do mundo. 

O andar pela cidade pode ser um exercício estético, poético, literário, meditativo. Nesse sentido, é preciso se desconectar, ainda que por alguns instantes da tecnologia, do tech, e se reconectar ao entorno, ao touch, para então seguirmos adiante.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/a-tecnologia-e-o-nosso-percurso-pela-cidade/)
Foto de Capa: Caio Esteves.

Economia criativa e inovação para criar lugares melhores para se viver.

Por muito tempo, imaginou-se que o turismo seria a única possibilidade de “marcarmos” um lugar, uma ideia que favorecia o hardware dos lugares, ou seja, seus aspectos físicos.

Era preciso que um lugar fosse “belo” para que pudesse ser trabalhado. Em outras palavras, se sua cidade não tivesse a beleza do Rio de Janeiro, de Paris, de Amsterdã ou de Estocolmo, você estaria fadado ao ostracismo ou a ser um destino “underground”. Nesse momento, como tudo girava em torno do turismo, ou os lugares eram destinos (belos) ou não eram destinos.

Foi preciso muito tempo e algumas crises econômicas globais para que esse conceito fosse revisto. Agora entende-se que o turismo é apenas um dos vetores e não o único vetor capaz de qualificar um lugar como uma marca-lugar.

Inovação e criatividade como vetores de crescimento

Aqui, nesse artigo vamos abordar um vetor de desenvolvimento bastante atual, menos glamoroso do que o turismo, mas provavelmente mais eficiente: a inovação.

Sim, essa ideia batida, tão usada e tão pouco explicada. Um termo que parece servir para tudo e ser desejado por quem quer que seja, independentemente do segmento de atuação, como se a inovação fosse a garantia suprema de sucesso.

Então, qual o papel da inovação na cadeia da economia criativa? Como se dá a sua relação íntima com a questão dos lugares? E o que é economia criativa?

No caderno de inovação da FGV/EASP, economia criativa é definida como “O conjunto de negócios baseados no capital intelectual, cultural e na criatividade, gerando valor econômico”. Hoje, segundo a mesma fonte, existem no país cerca de 243 mil empresas formais, empregando quase 1 milhão de pessoas e respondendo a 2,7% do PIB. Isso não é pouca coisa. O termo economia criativa surgiu no Reino Unido, onde John Howkins condensou a discussão a respeito do assunto no bestseller Economia Criativa “Como Ganhar Dinheiro com Ideias Criativas”, de 2001.

“A economia criativa abrange todo o ambiente de negócios que existe em torno da indústria criativa, aquela baseada em bens e serviços criativos.” Fonseca, Ana Carla

No manual de Oslo, inovação é definida como:

“A implementação de um produto (bem ou serviço) novo ou significativamente melhorado, ou um processo, ou um novo método de marketing, ou um novo método organizacional nas práticas de negócios. na organização do local de trabalho ou nas relações externas.”

Possivelmente a explicação mais simples e convincente para o conceito de inovação seja a do UK Innovation Report que diz: “Inovação é a exploração bem-sucedida de novas ideias”

Ou seja, não basta só uma boa ideia, ela precisa ser factível, implementada e gerar resultados positivos, econômicos ou sociais.

Mas o que isso tem a ver com o lugar?

O place branding é um processo que identifica vocações, potencializa identidades e fortalece lugares através do ponto de vista das pessoas. Dessa forma, fica fácil entendermos que um dos resultados tangíveis desse processo é a clareza a respeito dos possíveis vetores de crescimento econômico de um lugar.

Um exemplo usado em 100% das referências a um “lugar inovador” é o bom e velho Vale do Silício. Há que diga quem ele surgiu no começo do século XX, com os laboratórios associados à origem do rádio. Durante os anos 1940/50, o reitor da Universidade de Stanford incentivou professores e graduados a começarem suas próprias empresas, e muitas delas nasceram de fato no campus de Stanford.  Naquele momento, a universidade era a âncora desse lugar que se tornaria o mais famoso polo de inovação do planeta. De fato, o sucesso do Vale está intimamente relacionado com a universidade local – lá foi desenvolvido o Stanford Research Park, com instalações locadas para empresas de alta tecnologia.

Mas, certamente, o fator mais relevante em nada tem a ver com a localização geográfica ou com as características físicas do lugar, e sim com as empresas, ou melhor, com as pessoas que lá frequentam, e com uma vocação muito bem desenhada, que soube evoluir e acompanhar as novas necessidades dos novos tempos, e que pouco têm em comum com a era do rádio, que supostamente iniciou toda essa corrida.

Essa vocação clara, originalmente voltada para a tecnologia de ponta, criou um posicionamento inicial, ainda que orgânico, ou melhor, top-down, já que o reitor de Stanford decidiu quais empresas ele queria lá e pronto.

Mas a pergunta mais importante hoje é: são as marcas que estão no Vale que validam o lugar, ou é o lugar que valida as marcas? Isso tem importância? Talvez não. O fato é que o lugar ficou tão importante, que qualquer pessoa desejaria fazer qualquer coisa lá pra poder sentir-se ou dizer-se inovador, o que, de certa forma, valida o lugar como uma marca-lugar fortíssima, um “lugar de inovação” ou “o lugar de inovação”.

Construir um “lugar de inovação”

A inovação é um conceito sistêmico. Pouco adianta que existam meia-dúzia de empresas inovadoras num lugar sem os serviços necessários ao seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo, isso não significa que esse ambiente não possa ser criado.

Uma vez identificada a vocação para a inovação, através de uma pesquisa profunda e de uma análise detalhada sobre o potencial local e regional e de um mapeamento de demandas e necessidades, um polo de inovação pode ser desenhado e criado. Nesse momento, o placemaking é uma ferramenta/processo essencial.

O Placemaking é um conceito cunhado pela ONG norte-americana Project for Public Spaces (PPS) para definir os processos de desenho colaborativo de espaços públicos que levam em conta os desejos, interesses e necessidades das comunidades locais. Seus alcances foram estudados sob a perspectiva de diversos temas presentes em nossas cidades, como ecologia, psicologia, sustentabilidade, resiliência, entre outros.”

Sabe-se que o ecossistema criativo/inovador está intimamente relacionado com a juventude. Não que um quarentão não possa ser inovador, mas é da natureza do jovem o processo disruptivo, questionador, que, muitas vezes, leva à inovação. Sabe-se também que as novas gerações são cada vez mais pautadas pela difícil relação entre o seu próprio umbigo (aquilo que é bom para mim) e o propósito do que se faz (aquilo que é bom para o mundo). Sendo assim, não basta criarmos amontoados de prédios, desconectados das cidades. O próprio conceito de polo de inovação tende a ser mais ecossistêmico e, portanto, mais interligado com as cidades, mesmo a Apple criando seu novo campus, o Apple Park, totalmente voltado para dentro, o que faz algum sentido, já que a empresa de Cupertino não é exatamente famosa pelo seu traquejo social.

Diferente da Apple, a conexão entre empresas criativas com a cidade deve criar espaços públicos de qualidade, confortáveis, humanos, promotores do encontro. Essa é, inclusive, uma das oportunidades para as marcas que compõe a economia criativa criarem vetores de identificação com suas audiências, não só através de produtos e serviços, mas também da qualificação das experiências cotidianas de suas audiências.

Inovação e conexão

Um bom exemplo de como a inovação pode se relacionar com a cidade e, ao mesmo tempo, requalificar toda uma região é o projeto 22@Barcelona. Esse projeto transforma 200ha de área industrial em um distrito, com uma excelente infraestrutura e mais de 3 milhões de metros quadrados de espaços modernos, tecnológicos e flexíveis, para a concentração estratégica de atividades intelectuais.

O projeto se alinha com a estratégia adotada pela cidade de “Barcelona, Cidade do Conhecimento”. Isso significa que, mesmo com o vetor poderoso do turismo, Barcelona ainda procura outros vetores de crescimento e fortalecimento, como a economia criativa, o que comprova que uma cidade resiliente não se apoia só em um segmento econômico.

Além da relação com a cidade, o 22@Barcelona tem outras características relevantes, como o seu uso misto, alinhado com a tendência mundial de se morar próximo ao trabalho, minimizando o tempo gasto com o percurso casa-trabalho, e sistemas de incentivo que favorecem as atividades que se caracterizam por utilizar o “talento” como principal recurso produtivo.

No bairro, é possível ver prédios “high tech” e ao mesmo tempo crianças brincando de amarelinha pintada no asfalto, em um desenho urbano que privilegia as pessoas e as bicicletas em vez dos carros.

Se tudo isso ainda não bastasse, a região ainda conta com âncoras fortes, como o Museu del Disseny, shopping center, centro cultural e ícones arquitetônicos marcantes como a Torre Agbar de Jean Nouvel.

Conclusão

Como quase tudo que envolve o planejamento urbano e a discussão das cidades, é preciso apropriar-se de uma perspectiva estratégica, sistêmica. Nem só a arquitetura, com seus ícones, nem só inversão de prioridades em relação aos modais de mobilidade, nem só políticas de incentivo, ou nem só o que quer que seja.

A economia criativa e a inovação são vetores de desenvolvimento econômico viáveis para muitos lugares, além de possuírem força suficiente para alavancar a retomada de bairros degradados, como vimos na Espanha e em diversos outros países. Um ponto importante a ser notado é que o pensamento sistêmico também é um elemento que conecta esses lugares às cidades. Parques tecnológicos são, segundo a definição de LOFSTEN & LINDERLOF, 2002:

“Um ambiente que reflete a suposição de que a inovação tecnológica tem origem na pesquisa científica e que os parques podem fornecer o ambiente catalisador necessário para a transformação da pesquisa pura em produtos comercializáveis”

Parques, muitas vezes isolados dos centros urbanos, tendem a perder a conexão com a cidade, ligando-se prioritariamente às universidades e às empresas de forma secundária.

Nessa segunda década do século XXI, talvez seja a vez das “cidades criativas” ou “cidades inovadoras”, onde os conceitos centrais e de posicionamento não mais se concentram intramuros, mas ocupam uma região mais abrangente da cidade, que, ainda que delimitada a um bairro ou conjunto de bairros vizinhos, tem características mais permeáveis, mais integradas com o tecido urbano, onde os usos se misturam, onde a cidade pulsa. Afinal, você ainda quer dirigir quilômetros para chegar a uma área isolada, diminuindo sua possibilidade de convívio social, ou você prefere trabalhar dentro de uma cidade onde a vida acontece ao seu redor?

Ao mesmo tempo, o que esse seu lugar tem de especial enquanto lugar? Como ele se posiciona? A inovação é sempre igual? A criatividade é sempre igual?

Queremos ser o Vale do Silício de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza etc., ou queremos entender como nós mesmos somos capazes de produzir inovação?

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas. (https://ofuturodascoisas.com/economia-criativa-e-inovacao-para-criar-lugares-melhores-para-se-viver/)
Foto de Capa: Cortesia Modacity.

Aeroportos e o senso de lugar

Se você viaja constantemente de avião, entre um tira e põe de sapatos, laptops e cintos, o vai e vem das malas com rodinhas que levam tudo o que está pela frente, você provavelmente se pergunta: por que diabos os aeroportos são sempre iguais?

Não interessa em qual região do Brasil se está, o ambiente do aeroporto sempre é genérico, sem personalidade. Essa falta de personalidade confere aos aeroportos, do Brasil e do mundo, em sua maciça maioria, um status de “não lugares”.

O termo lugar, que vem do latim localis, de locus, é algo totalmente corriqueiro no nosso dia a dia. “Não lugar”, por sua vez, é um termo desconhecido por grande parte de nós. Mas o que faz, de um lugar, um lugar?

Para a geografia humanista, em especial para Tuan, “O espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado, quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar”.

“Dessa forma podemos dizer que lugares são espaços com significado atribuído pelo homem, portanto só existem lugares quando existem pessoas” (ESTEVES, 2016).

Lugares e não lugares

Essa discussão sobre lugares, espaços e não lugares é essencial quando falamos de senso de pertencimento, senso de lugar e, claro, de place branding.

O conceito do “não lugar” foi chamado por Edward Relph de “placelessness”. Para Marc Augé, os não lugares não apresentam carga simbólica, significado suficiente, sendo lugares genéricos, que poderiam estar em qualquer parte, em outro contexto.

No livro Place Branding, sugeri um experimento hipotético que chamei de “efeito sonâmbulo”. Nele, eu refletia sobre a possível dissonância cognitiva naqueles que, acostumados a viagens constantes a trabalho e por questões que envolvem convênios entre empresas, hospedam-se sempre na mesma cadeia de hotéis. Se extremarmos esse pensamento, podemos imaginar uma dificuldade de se entender em que cidade o viajante se encontra, uma vez que os quartos são religiosamente iguais, algo que, inclusive, é uma proposta de valor dessas cadeias internacionais, a “não surpresa”.

Isso mostra que não lugares são, antes de tudo, lugares sem alma, não reconhecíveis, lugares onde você corre o risco de não saber onde está.

Para mim, a melhor definição de não lugar veio de Gertrud Stein, escritora e poetisa americana, que, ao se referir à cidade da sua infância, Oakland, escreveu em sua obra chamada “A Autobiografia de Alice B. Toklas“:

THERE IS NO THERE THERE, ou NÃO EXISTE LÁ LÁ

A ideia de uma “alma do lugar” não é exatamente nova. “Genius loco” é um termo latino que se refere ao “espírito do lugar”, objeto de culto na religião romana, e aparece por volta de 27 a.C. Posteriormente, o geógrafo Christian Norberg-Schulz, retomou o termo para definir uma abordagem fenomenológica da relação entre identidade e lugar, tornando o conceito mais palatável para o mundo atual.

Será que os aeroportos estão fadados a serem não lugares para sempre?

Quando pensamos em aeroportos, do que lembramos imediatamente?

Das filas na imigração, da chatice de tirar sapatos, laptops, cintos, do stress de perder o voo, isso tudo quando você não pertence ao seleto grupo dos que simplesmente morrem de medo de aviões.

Além do vai e vem desenfreado e do benefício específico de ser a maneira mais rápida de ir do ponto A ao ponto B, os aeroportos têm vocações ainda inexploradas pela maioria das cidades do mundo.

“Um aeroporto é o primeiro ponto de contato e ao mesmo tempo a última memória de um destino.”

Pensando a partir dessa perspectiva, os aeroportos têm o potencial de criar uma relação clara entre o lugar onde estão inseridos e os visitantes que passam por ele, isso sem contar a possibilidade dos próprios aeroportos se tornarem destinos propriamente ditos.

Se puxarmos pela memória, veremos que de alguma forma isso já foi uma verdade, em um passado não tão distante. Basta lembrar o “passeio” de paulistanos, por exemplo, onde a graça era ver os pousos e decolagens no aeroporto de Congonhas.

Claro que esse fascínio não existe mais, uma vez que os aeroportos se tornaram tão banais quanto as rodoviárias, sem o glamour de outros tempos, mas ainda assim alguns aeroportos no mundo já começaram a entender e retomar essa nova/velha vocação do aeroporto como destino.

O aeroporto Changi, em Singapura, por exemplo, tem uma piscina na cobertura do hotel localizado no Terminal 1. Isso mesmo, uma piscina onde você, viajante, pode dar uns mergulhos vendo os aviões. Claro que não é de graça.

Outros aeroportos, como os da Escandinávia, trabalham de forma bastante eficiente a gastronomia local em suas áreas de alimentação e compras, uma das formas de comunicar a cultura local, além de criar áreas de repouso, uma vez que várias pesquisas apontam que passageiros mais relaxados têm propensão a gastar mais nos aeroportos.

Ou seja, começou-se a entender a necessidade de se criar uma experiência para os usuários dos aeroportos, que inclusive devem mudar de nome, de usuários para “hóspedes” ou “convidados”, como sugere o artigo do Place Brand Observer.

E no Brasil?

Por aqui, tratamos os aeroportos realmente como não lugares, não os diferenciamos uns dos outros, temos as mesmas praças de alimentação genéricas, independentemente da região em que estivermos, não contamos nada da nossa cultura local nesse importantíssimo “ponto de contato” entre visitantes e possíveis visitantes, uma vez que podemos estar no aeroporto unicamente para uma conexão de um voo mais longo.

Infelizmente, ainda não é possível compartilhar de elementos da cultura local em nenhum dos aeroportos brasileiros, mas, afinal, como fazer isso?

Uma resposta senso comum diria: “Design!” Sim, design de experiência.

A questão que trago é anterior, pois antes dessa experiência é preciso entender o que esse lugar representa, qual a sua singularidade (sempre ela), e essa é uma função do Place Branding.

A compreensão dessa singularidade é o argumento necessário para o desenho de uma experiência memorável nos aeroportos. Experiência que cria desejo, deixa saudade, que serve como uma espécie de portal entre diferentes culturas, de área de descompressão entre a realidade genérica das companhias aéreas e a cultura local que se descortinará a poucos passos.

É preciso olhar para os aeroportos como pontos de contato essenciais para as marcas-lugar e, mais do que isso, para a marca-Brasil (sim, essa mesmo que ainda não existe).

Engana-se quem acha que esse movimento é exclusivo do governo federal ou da Infraero, pois ele cabe também às companhias aéreas, que podem e devem criar experiências mais memoráveis para seus “convidados”, como por exemplo, conectando sua cultura de origem à experiência da companhia aérea, afinal, o que a Latam, Azul e Gol promovem do Brasil na experiência de seus voos internacionais?

Se olharmos a quantidade de pousos e decolagens nos aeroportos internacionais do país, poderemos ter uma dimensão da oportunidade perdida. Se somarmos só São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, tivemos 70.646.490 passageiros, só em 2016, segundo a estatística da Infraero.

Quantos deles se sentiram atraídos pelo lugar onde pousaram? Ou melhor, será que pousaram mesmo em um lugar

Mas qual seria o futuro possível dos aeroportos?

Sob a perspectiva do place branding, os aeroportos poderiam ser, além de destinos propriamente ditos, um equipamento de comunicação da singularidade dos lugares onde eles estão inseridos.

Dessa forma, seria possível criar experiências memoráveis para os usuários, principalmente quando levamos em conta o tempo gasto na espera de um voo ou conexão. Essa espera, além de mais agradável, poderia despertar a curiosidade dos passageiros por aquele destino ou, ainda, criar uma transição agradável entre o aeroporto e a cidade, entre a cultura do visitante e a cultura local.

Esse movimento se daria através do design das instalações, permanentes e temporárias, além de uma curadoria atenta às características singulares da cidade/região do aeroporto. No aeroporto Schipol, vemos quiosques dos museus vendendo todo o tipo de souvenirs de Van Gogh e cia, e, em contrapartida, o que oferecemos nos nossos? Será que encontramos JBorges para vender em Recife? Athos Bulcão em Brasília? É possível apreciar a “baixa gastronomia” carioca no Santos Dumont ou no Galeão?

Se os aeroportos são uma espécie de ponte entre destinos, eles também poderiam, ou melhor, deveriam, conectar culturas e, com isso, promover destinos.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas. (https://ofuturodascoisas.com/aeroportos-e-o-senso-de-lugar/)
Foto de Capa: Caio Esteves.

A Próxima fronteira dos empreendimentos imobiliários

Quando uma crise econômica é detectada, qual o primeiro segmento que sofre com os seus efeitos? Acertou quem apostou no mercado imobiliário.

Por se tratar de um produto com ciclo longo de fabricação, que vai do projeto à entrega da obra, o cenário econômico instável pode jogar areia nos planos dos menos precavidos e, claro, dos menos inovadores.

É fato que, com ou sem crise, o mercado imobiliário é um oceano de mesmices. Isso é facilmente comprovado, quando abrimos um jornal de circulação nacional – qualquer um deles – e vemos páginas duplas e páginas duplas de anúncios de novos empreendimentos.

Você consegue diferenciar qual anúncio é de uma ou de outra construtora ou incorporadora? Provavelmente, até hoje, você achava que eram todas ofertas de uma mesma empresa – engano seu, não só são de empresas diferentes como concorrentes.

Não precisa ser necessariamente um gênio do marketing pra perceber que essa não é a receita do sucesso, se é que a tal receita existe.

Essa falta de diferenciação não se resume aos layouts sem graça ou à redação publicitária genérica desses anúncios. O mercado imobiliário é avesso à inovação, por mais que diga que não. Essa estagnação segue sempre a “nova moda”, que rapidamente deixa de ser nova e passa a ser, ela também, genérica. Do metro quadrado, passou-se a vender “lifestyle”, sem se preocupar com o que esse conceito queria dizer. Já teve o tempo das “varandas gourmet”, depois, vieram a sustentabilidade e o uso consciente (ou supostamente consciente) de materiais, e depois, a arquitetura assinada. Todos esses “diferenciais” viraram commodities. Mas então, qual será a próxima moda?

A próxima fronteira é retomar o conceito de lifestyle, mas agora fazendo a lição de casa. Pra se falar de lifestyle, é preciso conhecer o aspecto “life” da audiência, é preciso ouvir e entender as pessoas que irão comprar os novos empreendimentos. Mas não é só isso:

É preciso entender o lugar como ativo estratégico para o negócio.

Os empreendimentos se esquecem de que o lugar onde eles estão inseridos é uma informação importantíssima para sua campanha de vendas — mais do que isso, é importante para a própria definição do projeto.

Cada vez mais, nos preocupamos com a ocupação das cidades, com o uso dos espaços públicos. Podemos dizer que a cidade é o grande “zeitgest”, o que seria o espírito do tempo, em português, desse começo de século.

Entender onde o empreendimento está inserido é entender sua vocação e seu alinhamento de identidades: nesse caso, identidade do empreendimento, identidade do lugar e identidade da audiência.

Sobre a identidade da audiência, o profissional de marketing imobiliário não tem muito o que fazer a não ser respeitar e compreender. A identidade do empreendimento, por sua vez, é algo totalmente controlável, que está em suas mãos. A identidade do lugar fica no meio do caminho. Não é possível de ser controlada, mas é passível de ser potencializada, qualificada.

O futuro do mercado imobiliário está na compreensão de que, mais do que bolhas, queremos edifícios que se integrem às cidades, que se relacionem com o lugar, que dialoguem com sua identidade, que entendam e fortaleçam a sua vocação.

A ideia do “paraíso” próximo à natureza no subúrbio já não é mais tão empolgante como no momento pós-revolução industrial, quando as condições sanitárias (e não a densidade demográfica, como muitos podem imaginar) causaram todo o tipo de doenças e epidemias e levaram gerações a crer que a cidade era um “mal”.

O movimento de retomada das cidades cria uma demanda diferente para os empreendedores imobiliários: terrenos mais caros devido à escassez de espaço. É comum vermos, em grandes centros, apartamentos de 18m², algo feito provavelmente pra “fechar a conta” do incorporador, que precisa otimizar ao máximo o seu investimento. É compreensível que pense que uma localização central, com oferta abundante de serviços, o leve a considerar que um apartamento do tamanho de um quarto de hotel seja suficiente. Mas é só uma questão de espaço? Esse empreendimento se relaciona com a cidade e com o entorno? Convida o morador a usar os serviços ou o obriga a usá-los?

Isso nos leva a uma discussão comum no mercado de comunicação: as diferenças entre place branding e place marketing. O próprio fato da discussão se dar na esfera da comunicação já mostra o quanto os conceitos costumam ser confundidos.

De forma rápida, podemos dizer que o place branding olha pra dentro, enquanto o place marketing olha pra fora. Mas o que isso quer dizer exatamente?

Quer dizer que o marketing se preocupa em parecer, e o branding se preocupa em ser. Você pode inserir um empreendimento em qualquer lugar da cidade e vendê-lo como “contemporâneo”, para jovens empreendedores, ou qualquer bobagem do gênero, baseada exclusivamente nas opiniões da equipe de marketing e de pesquisas quanti e quali tradicionais, que muitas vezes ainda perguntam quantos rádios você tem em casa.

Outra opção é entender o que o lugar tem para oferecer ao empreendimento, e não falo de valor financeiro, mas de valor “conceitual”, da identidade do lugar como capital, e mais do que isso, como singularidade.

E quando o lugar não tem nada de especial?

Todo lugar tem sua vocação, sua identidade e singularidade. Cabe a você procurar e potencializar essa característica única, mas, se preferir, você também pode continuar vendendo metro quadrado e varanda gourmet.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas. (https://ofuturodascoisas.com/a-proxima-fronteira-dos-empreendimentos-imobiliarios/)
Foto de Capa: Caio Esteves.

Como uma marca pode melhorar uma cidade

Nesse novo século as audiências (e não mais meros consumidores) buscam alguma forma de identificação com as marcas com as quais irão se relacionar.

As marcas, por sua vez, entenderam que mais do que produtos e serviços, as pessoas procuram experiências, formas de se identificar, relacionar e, no extremo dessa relação, validar suas próprias personalidades.

Esse relacionamento já acontece em vários pontos de venda, nas chamadas “Flagship Stores“ou ainda “Concept Stores“, onde, em um ambiente 100% controlado, as marcas promovem o seu “universo” por meio de experiências sensoriais que envolvem quem nelas entra.

Vivemos em um mundo majoritariamente urbano, o Homo Sapiens já pode se considerar Homo Sapiens Urbanus (ONU). Com uma população mundial crescendo exponencialmente, é possível entender que as cidades, em particular os grandes centros urbanos, com toda sua rede de apoio e oportunidades, serão o destino de um número cada vez maior de indivíduos.

Isso torna a cidade, e as questões que a envolvem, um assunto ao mesmo tempo contemporâneo e relevante, não só para políticos ou planejadores urbanos, mas para todos que se relacionam com ela e, claro, para as marcas, que precisam entender como se relacionar com as suas audiências nesse novo contexto.

Com o passar do tempo nos acostumamos a perceber a publicidade como algo negativo, muitas vezes relacionada como uma forma persuasiva de comprarmos aquilo que não precisamos ou até não queremos. O nosso próprio cérebro criou algumas barreiras evolutivas para lidar com o excesso de estímulos visuais a que somos expostos diariamente.

Podemos afirmar que adianta muito pouco uma profusão de logotipos se quisermos ser percebidos, ou seja, tudo se volta para a experiência e isso as marcas já entenderam. Nesse sentido a própria proibição dos anúncios de cigarros contribuiu para a “evolução” da publicidade em direção a experiência.

“Essas instalações ou ‘Hotéis Marlboro, como são conhecidos no ramo, geralmente consistem em um salves cheios de confortáveis sofás forrados de vermelho Marlboro posicionados em frente a televisores que ficam passando cenas do Velho Oeste com seus rústicos caubóis, cavalos galopantes, amplos espaços abertos e imagens de opoentes avermelhados projetados para evocar a essência do icônico ‘Homem Marlboro” (LINDSTROM, 2009, p. 75)

Mas se já é assim há algum tempo, qual a novidade?

O fato é que as marcas sabem lidar pouco com o ambiente urbano, usando a cidade e os espaços públicos como palco para eventos e não de forma sistêmica e nem mesmo estratégica.

A vocação da publicidade na urbe é muito mais gerar experiências positivas para as pessoas do que de fato vender produtos, na verdade vender produtos é uma consequência em qualquer um dos casos.

Naomi Klein ( 2002), no controverso ´Sem Logo´ já dizia, “marcas, não produtos” também amparada por Phil Knight, CEO da Nike que proferia “Não há mais valor em produzir coisas. O valor é agregado pela pesquisa cuidadosa, pela inovação e pelo marketing”. Se as marcas precisam criar experiências nada mais inteligente e pertinente do que a associação de marcas a qualificação dos espaços públicos.

Verbas de publicidade conseguidas através de elementos publicitários bem colocados podem promover um lugar e ancorar mudanças na qualidade urbana.

Mas não adianta encher a cidade de totens publicitários, pontos de ônibus envelopados e relógios (sim, relógios) patrocinados. Não podemos trocar uma qualidade por outra, ou ainda, entender que a poluição visual é menos pior do que a ausência de espaços públicos qualificados. É preciso encontrar um equilíbrio.

Público ou privado?

Como encontrar esse equilíbrio sem transformar as cidades brasileiras em Tóquio ou Times Square?

Entendendo o contexto cultural e, mais do que isso, criando experiências pertinentes entre as pessoas (sim, as marcas também são feitas por pessoas) e, claro, doses superlativas de bom senso.

Nesse momento de incapacidade do poder público no que se refere ao cuidado dos espaços públicos, pode caber as marcas (as espertas pelo menos) ocupar essa lacuna ao invés  de gastar os seus milhões de reais em publicidade abrangente e genérica, modelo comprovadamente obsoleto. Vejamos como nós, seres humanos lidamos hoje com a publicidade tradicional:

“Ao chegar aos 66 anos de idade, a maioria de nós já terá visto aproximadamente dois milhões de anúncios de televisão. Contando de outra forma, isso equivale a assistir oito horas de comerciais, sete dias por semana, durante seis anos seguidos. Em 1965, um consumidor típico lembrava 34% dos apúncios. Em 1990, esse percentual havia caído para 85.” LINDSTROM, 2009, pag.41

Antes que alguém me acuse de privatização do espaço público, adianto que a ideia passa longe disso. Não se trata de marcas ocupando de forma privada a cidade e sim de marcas qualificando o espaço público, promovendo experiências capazes de criar conexões entre pessoas e marcas e ainda benefícios para todos os cidadãos.

Nesse sentido, um exemplo bem resolvido, são os parklets. Esse equipamento que troca uma vaga de estacionamento de carros por um espaço de convivência para pessoas, tem em muitos dos seus projetos o patrocínio de uma marca. Alguns casos bem sucedidos e outros nem tanto, o fato é que o precedente já existe, embora ainda circunscrito a um tipo específico de uso.

Atrás da identidade num mar de pessoas

O place branding – abordagem que trata os lugares como marcas, identificando sua vocação, potencializando sua identidade e fortalecendo os lugares – atua como forma de entender o contexto cultural (mais precisamente das pessoas que moram/ frequentam/ passam no lugar) e de uma maneira assertiva e transformadora, conectar a identidade dos lugares a identidade das marcas, nesse caso específico da publicidade como âncora de transformação.

Além disso, não basta conectarmos identidades para entregarmos logotipos blindados pelo darwinismo – esse alinhamento de identidades é capaz de gerar inputs relevantes para a criação de conteúdos capazes de criar a identificação entre pessoas e marcas. Mas, muito além de entregar um conteúdo alinhado e personalizado, os equipamentos publicitários tem a possibilidade de alavancar lugares e tornar uma cidade mais vibrante.

Após todos os avanços dos últimos regramentos como a Lei Cidade Limpa é preciso entender não só a demanda por esses equipamentos, mas, principalmente, a sua necessidade.

O que imaginamos é que, mais do que comunicar simples mensagens publicitárias, essa “nova publicidade ”  pode ser construída a partir de uma abordagem colaborativa, afinal não adianta só entender quem usa, passa ou mora no lugar, mas também o que eles gostariam de ver, experimentar naquele lugar.

É impossível ser feliz sozinho

É preciso não só colaboratividade, é preciso interação, interação entre pessoas e tecnologia. Muito se fala das smart cities, mas para elas fazerem sentido é preciso existir smart citizens, algo só alcançado com pilares como colaboração e interação, que por sua vez só acontecem quando existe relevância e identificação.

O futuro das marcas nas cidades é mais o de promover experiências positivas nos espaços públicos, criando cidades mais vibrantes e habitantes mais felizes do que comunicar simplesmente seus produtos e serviços.

Só falta elas saberem disso.

Referências Bibliográficas

KLEIN , Naomi. Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. Rio de Janeiro: Record, 2002.
LIND STROM , Martin. A lógica do consumo: Verdades e mentiras sobre or que compramos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas. (https://ofuturodascoisas.com/como-uma-marca-pode-melhorar-uma-cidade/)
Foto de Capa: Caio Esteves.

Se a sua cidade não tem uma singularidade, ela é uma cidade sem alma

“Se você não sabe qual a identidade ou a singularidade da sua cidade, ela vai ser mais uma daquelas cidades sem alma, genéricas.” Essa afirmação é do arquiteto Caio Esteves, fundador Do Place For Us, primeira empresa brasileira totalmente dedicada à criação de marcas-lugar (Place Branding), e coordenador da pós-graduação em Branding Experience na Istituto Europeo di Design São Paulo (IED SP), uma rede internacional de alta formação em design, moda, comunicação visual e gestão de disciplinas criativas.

Caio acabou de participar em Londres do City Nation Place Awards, como um dos jurados para premiar as melhores práticas de place branding e marketing no mundo.

Nessa entrevista ao O Futuro das Coisas, ele conta o que viu lá e explica como o Place Branding é uma ferramenta que fortalece uma cidade, cria receita, e melhor, gera felicidade para as pessoas.

Qual a diferença entre PlaceMaking e Place Branding?

Em termos simples o Place branding pensa e o PlaceMaking faz.

Eu gosto de uma definição que uso no meu livro que é pensar no PlaceMaking como uma forma de brand experience, ou seja, na tangibilização da marca-lugar em espaços públicos vivos, alinhados com um conceito central e pensados de forma coordenada para comunicar diferentes aspectos de uma mesma mensagem, uma mesma identidade, localizada pelo place branding.

Place branding é a ideia guarda-chuva que alinha a identidade e singularidade do lugar, PlaceMaking cria lugares alinhados com esse conceito.

Existe um sem o outro? Claro! É a melhor forma? De jeito nenhum!

Podemos dizer que o Place Branding é uma ferramenta que ajuda a modelar as cidades do futuro?

Na verdade ele deveria ajudar a modelar as cidades do presente, e isso já acontece, só que não por aqui…

O Place Branding, é um conceito que, por ser bottom-up, gera um conjunto de informações riquíssimo para a realização de planos diretores, por exemplo.

Dessa forma, os projetos não se baseiam exclusivamente em uma expertise, como a arquitetura ou urbanismo, ou em pesquisas tradicionais encomendadas, mas numa visão multidisciplinar, colaborativa, inerente ao processo de construção de uma marca-lugar, e mais importante talvez, seja a própria co-criação dos envolvidos e interessados diretamente no assunto, as pessoas que vivem e usam o lugar.

Quais as vantagens para uma cidade ou um bairro que cria uma identidade própria, cria a sua singularidade e como seus habitantes são beneficiados?

O resultado mais óbvio e de quantificação mais simples é o vetor financeiro. Se o meu lugar é especial (e todos os lugares são) eu passo a ter um ativo estratégico que antes não era identificado como tal.

Se essa minha singularidade é interessante para outras pessoas (mais uma vez, toda a singularidade é interessante) eu agora posso me comunicar de forma que as outras pessoas que se identificam com essa minha característica se sintam convidadas a se relacionar com o meu lugar.

O benefício mais intangível é a própria felicidade, que agora saiu do campo da “turma de humanas” e ficou menos “miçanga” com recentes estudos de neurociência que conseguem criar métricas de medição da tal felicidade…

Já sabemos que a felicidade está diretamente ligada ao convívio, a qualidade das conexões humanas, ou seja, uma cidade vibrante tende a ser promotora de felicidade. Nesse ponto, singularidade é a âncora, que faz um lugar se tornar vibrante.

Quais são os desafios para que as cidades brasileiras possam utilizar o Place Branding? Qualquer cidade pode utilizar?

O desafio é enorme, começando pela dificuldade de se entender o que é place branding, que ainda é confundido com marketing, publicidade, design e por aí vai…

Depois de entendida a diferença é preciso entender que uma marca-lugar não é uma marca de governo, portanto não pode viver só por 4 ou 8 anos, é algo que pertence as pessoas daquela cidade e até as pessoas que visitam aquela cidade, não é algo que é propriedade de um político ou partido.

O capital do lugar para a política está justamente no protagonismo, na inovação, no poder-público como facilitador e promotor e não como proprietário.

Qualquer cidade pode e deve utilizar o place branding, quem não quer ser único, ou ainda, quem não precisa ser único? As cidades também sofrem concorrência o tempo todo, por investimentos, por talentos, por turistas, etc…

Como envolver as comunidades no processo de criação do Place Branding?

Todos queremos uma vida melhor, todos queremos ser mais felizes. O segredo está na colaboração, colaboração de fato, não algo “pro-forma”.

Muitas vezes se confunde informar com colaborar. Informar é só comunicar o que está se fazendo, colaborar é ter a certeza que o que você está dizendo será levado em consideração, que você faz parte da mudança, e portanto faz também parte da solução.

Isso se dá através da participação das pessoas que vivem e utilizam o lugar no processo de construção dessa marca-lugar. Se a identidade é a base do processo, os espaços públicos resultantes serão mais qualificados e assertivos, potencializando os desejos, anseios e características das pessoas que o utilizam.

As cidades turísticas no Brasil tem uma característica que ilustra bem a necessidade de envolvimento. Muitas vezes os turistas são vistos como alguém indesejado, que aproveitam o que a cidade tem de melhor, justamente esse melhor que não é apreciado pelos moradores.

Esse pensamento cria uma cidade segregada, nós moradores, contra eles turistas. Claro, que essa sensação impacta na experiência do turista, que claro, tem uma impressão negativa. O acúmulo de impressões negativas cria cidades turísticas vazias, e cidades turísticas vazias são cidades pobres, e cidades pobres têm menos recursos para promover a qualidade de vida dos seus moradores, que claro, são menos felizes.

É preciso explicar para os moradores o papel estratégico do turismo.Isso não acontece através de campanhas publicitárias, ou por decreto, só acontece por colaboração, por vontade própria. Sem um grande pacto entre todos os interessados é muito difícil uma marca-lugar ser bem sucedida.

Quais os seus principais insights desde que fundou a Place for Us?

Talvez o mais relevante seja a diferença entre o branding “tradicional” de produtos de consumo e o place branding. Levou tempo pra entender isso…

No branding é possível ser mais solto… tem a máxima de que o cliente tem sempre razão (óbvio que não concordo, até porque se ele tivesse sempre razão ele não precisaria nunca de agência alguma). No place branding o cliente nunca tem razão, aliás, quem é o cliente? o poder público? a cidade? as pessoas?

Se o cliente é quem paga a conta, talvez seja realmente o poder-público, mas gosto de pensar nos beneficiários diretos, que não é o poder-público que aumenta suas reservas, e sim as pessoas do lugar, e é pra elas que trabalhamos, e isso muda tudo.

Foram 3 anos até entender um pouco melhor essa dinâmica e decidirmos separar a parte de place branding em uma outra consultoria, que se tornaria a primeira brasileira no segmento e ainda uma das primeiras com certificação de impacto social BCORP| PENDING.

Como pensar PlaceMaking ou Place Branding sem acabar gentrificando?

Essa questão é corriqueira. É comum imaginar que a qualificação dos lugares empurre moradores para fora. Muitas vezes é isso mesmo que acontece com a especulação imobiliária por exemplo, ou ainda com a maldita hipesterização.

O que é preciso entender são 3 pontos centrais:

1- Não se fala de place branding isolado, é preciso envolver um sistema, uma visão de cidade holística, uma vez que o próprio place branding é uma abordagem tanto sistêmica quanto abrangente, que preveja esse tipo de movimento e crie mecanismos pra contê-lo na melhor forma possível.

2- Tudo parte da identidade. Claro que a identidade não é hermética e se transforma ao longo do tempo, mas grande parte dela está diretamente ligada a autenticidade. Essa autenticidade por sua vez, está ligada com as pessoas que habitam aquele lugar. Logo se elas não estiverem mais lá, essa autenticidade desaparece, e fica tudo parecendo cenário do Projac. Portanto a própria matriz do place branding já é um mecanismo contra a gentrificação como conhecemos.

3- É preciso se desassociar da ideia que relaciona qualidade urbana a riqueza, ou ainda, que marca é coisa de rico. Esse pensamento, bastante ultrapassado no meu ponto de vista impede muitas vezes o desenvolvimento de projetos de impacto social considerável com medo da tal gentrificação. Place Branding é identidade, se a qualidade nasce dessa identidade e o lugar prospera, é preciso entender que o morador também pode prosperar, e nesse momento acontece uma qualificação sem gentrificação.

Quais as principais novidades do City Nation Place Awards, conferência que você participou em Londres?

Esse ano eu tive o privilégio de fazer parte do juri e fiquei particularmente feliz com a vitória de Edmonton como melhor expressão de identidade de uma marca-lugar. Isso prova o que venho falando desde o começo, que qualquer cidade pode ser uma marca, que a singularidade está sempre presente.

Mas os assuntos-chave que destaco são:

1- Compreensão da necessidade do envolvimento popular como premissa para uma marca-lugar legítima e bem sucedida.

2- É preciso garantir que os lugares, especialmente as cidades, terão capacidade de atender as demandas de turistas de marcas-lugar muito bem sucedidas, algo que já tira o sono de Amsterdã e Nova Iorque.

3- Realmente ainda existe muita confusão sobre o que é place branding.

4- Grandes marcas-lugar são fruto de um trabalho exaustivo de intersetorialidade e interdisciplinaridade.

5- Por mais que ainda se tente, o discurso de valores genéricos ainda não se sustenta. Place branding é sobre singularidade e identidade, algo avesso aos discursos vazios e genéricos.

6- Ainda existe um campo enorme para o avanço das métricas de sucesso de uma marca- lugar. As métricas atuais são inúmeras e ao mesmo tempo limitadas a dados muito específicos.

7- Talvez a melhor parte seja a que encontrei um outro maluco que acha que a identidade está presente e não deve ser “criada” e sim “encontrada”. Foi bom saber que não estava falando sozinho esse tempo todo.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas. (https://ofuturodascoisas.com/se-a-sua-cidade-nao-tem-uma-singularidade-ela-e-uma-cidade-sem-alma/)
Foto de Capa: Caio Esteves.

Como falar de futuros numa sociedade que não consegue se relacionar com o passado?

Maio de 2024 foi marcado por uma demonstração inequívoca das mudanças climáticas, quando vimos, atônitos e impotentes, o Rio Grande do Sul ser engolido pelas águas. Pessoas perderam tudo, seus bens, suas casas, suas vidas. Ainda abalados pelo momento trágico do Sul do país, corremos o risco de achar que se trata de um evento isolado, imprevisível, ou ainda, como li recentemente, que o futuro tinha chegado ao Rio Grande do Sul, ledo engano.

Não foi a primeira, e, infelizmente, não será a última vez que no deparamos com eventos climáticos extremos. Muitos especialistas ouvidos pelos mais diferentes órgãos de imprensa são categóricos ao enfatizar que esse tipo de evento (não necessariamente chuvas e inundações) será ainda mais constante, no que vem sendo chamado de “novo normal do clima” ou “novo normal climático”. Me incomoda o fato de não só acharmos “normal”, mas principalmente o fato de acharmos “novo”. Nutro uma profunda desconfiança pelo termo “novo”. Com poucas exceções ele serve como maquiagem para ideias e práticas comuns ou ultrapassadas, que precisam passar por um “reposicionamento”. Não precisamos nem voltar a 1941, no que seria até esse ano a maior enchente de Porto Alegre, basta voltarmos a 2023, onde eventos climáticos extremos causaram a morte de 75 pessoas, também no Rio Grande do Sul. Ou seja, nada disso é novo (nem mesmo a recorrência) ou normal, ou ainda local. O mundo muda constantemente, por óbvio, o clima por sua vez acompanha essas mudanças no chamado antropoceno, era geológica caracterizada pelo impacto da humanidade na natureza, ou, de acordo com o criador do termo, Paul Crutzen:

“Considerando esses e vários outros crescentes impactos das atividades humanas na terra e na atmosfera, que acontecem em todas as escalas possíveis – inclusive global –, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central da humanidade na geologia e na ecologia propondo o uso do termo Antropoceno para a época geológica atual.”

A data de início do antropoceno não é consenso entre pesquisadores, que divergem da origem – período que deixamos a vida nômade e começamos a nos fixar nos primeiros vilarejos –, até outros que acreditam que tudo começou com a revolução industrial, ou seja, essas mudanças não são de hoje.

Mas se nada disso é novo, por que sofremos os impactos destruidores desses eventos até hoje? Não existe uma única resposta para isso, porém existem várias pistas em diversas esferas diferentes, que passam pela incapacidade da gestão pública de pensar de forma estratégica no longo prazo, pela nossa visão de cidade, pela ideia que defende que sustentabilidade e progresso são conceitos antagônicos, chegando ao extremo do negacionismo climático que não só nega as mudanças climáticas como constantemente inventa alguma teoria da conspiração absurda pra justificar o evento, que embora hilárias de tão ridículas, causam um enorme desserviço aos desavisados.

Mas e o futuro nisso tudo?

A Lilia Porto, aqui do O Futuro das Coisas, no prefácio do meu livro mais recente, usou um termo que fez muito sentido, e explica muito do momento atual extremo, “presentismo”, ou nossa amarra nos eventos de hoje, do presente. Lembrei da Lilia em absolutamente todas as diversas entrevistas que dei durante esse mês sombrio, justamente por ter lançado um livro sobre o futuro dos lugares semanas antes de começar esse pesadelo. Na quase totalidade das entrevistas a preocupação era com a reconstrução, o que fazer, como reorganizar a infraestrutura, ou seja, quase sempre o ponto de partida era o hardware. Claro que diante de tragédias essa é uma preocupação absolutamente legítima, mas será que devemos nos preocupar “só” com isso?” Minha resposta era, e continua sendo, não.

Fui obrigado a criar uma ordem de atuação para minimamente contribuir para o debate em que o ponto de partida era o ontem, porque não viram, porque não fizeram, porque deixaram e assim por diante. O ponto de partida, embora incrivelmente óbvio, parecia esquecido, era preciso dar toda a assistência às pessoas antes de qualquer outro movimento. Abrigo, comida, atendimento médico, psicológico, roupas, produtos de higiene, ou seja, condições mínimas de dignidade.

Mas isso não é tão simples quanto pode parecer, ainda que o Estado conte com toda a ajuda que vem recebendo do país inteiro, e aqui fica o apelo, se você ainda não ajudou, faça isso o quanto antes, da forma que puder, o item abrigo merece particular atenção. Quadras de esportes e escolas não foram feitos para abrigar pessoas (guarde essa informação) e é preciso entender que levará bastante tempo para reconstruir as cidades afetadas. Uma comparação feita constantemente é com o furacão Katrina que devastou Nova Orleans em 2005. Também em termos comparativos, Nova Orleans demorou 10 anos para se reerguer. Isso significa que, provavelmente, outros eventos climáticos extremos ocorrerão antes da reconstrução total das cidades, portanto é preciso pensar em formas de abrigar as pessoas durante o processo de reconstrução, em projetos que, por si só, sejam resistentes a novas investidas do clima extremo.

A próxima etapa que elenquei, é um conjunto de duas frentes que ocorrem de forma paralela, uma olhando para o hoje e outra para o amanhã, ou melhor, os amanhãs. Olhar para o presente, após as condições mínimas de vida, é olhar para a reconstrução propriamente dita.

Reconstruir como?

Alguém disse certa vez que repetir a mesma ação esperando diferentes resultados seria a definição de loucura. É importante entendermos o que mudou nas últimas décadas e aplicar o conhecimento adquirido na reconstrução das cidades; por mais que o tempo não esteja a nosso favor, é essencial pensarmos sobre os novos modelos de cidade, a nova visão de cidade que se quer. Antes que alguém me ataque de academicismos frente ao desastre, já adianto que essa discussão também já está em curso e, portanto, também não é uma solução vinda do futuro.

Adaptabilidade e dinamismo são prerrogativas da cidade antifrágil, virtudes que se aplicam não só ao pensarmos no clima, mas nas diferentes dimensões que impactam a cidade.

As cidades esponja, são exemplos dessa adaptabilidade. Esse modelo de cidade, criado por Kongjian Yu, tomou conta dos noticiários por motivos óbvios, a ideia central da cidade esponja é justamente a absorção do excesso de água a partir de várias ferramentas e sistemas. Mas uma característica marcante na ideia de cidades esponja é justamente a adaptabilidade. Quadras-piscina-parques alagáveis são alguns dos bons exemplos de adaptabilidade no que se refere a esse modelo de cidade. As quadras/ praças piscina, por exemplo, são utilizadas para esporte e lazer e ao início/ previsão de chuvas, transformam-se em grandes reservatórios, que uma vez escoados, voltam a se comportar como praças e quadras. Os parques alagáveis também são uma ideia adaptável, com passarelas podem ser utilizados durante os períodos de alagamento e posteriormente utilizados em toda a sua extensão, também no nível do solo.

Será que a chuva excessiva ou a seca persistente são os únicos desafios climáticos que nos aguardam?

Aqui, chegamos finalmente na exploração dos futuros. Me parece inevitável olhar para a pluralidade dos futuros frente a necessidade da reconstrução das cidades. Sim, ao partirmos da adaptabilidade, diminuiremos os riscos de novas tragédias, mas a pergunta talvez seja, adaptabilidade a que? Quem responder, “a chuvas”, se restringiu a um acontecimento do passado, que pode sim se repetir, mas será que só sofreremos de enchentes? Mesmo no Rio Grande do Sul, o desafio será lidar com o excesso de água? Sempre?

Quem não se lembra do evento extremo em Dubai, que registrou em abril de 2024, em 24 horas o equivalente a um ano de chuvas, deixando a cidade alagada, na maior intensidade de chuvas desde o começo das medições 75 anos atrás. Alguém consegue imaginar Dubai embaixo d’água? Nem sempre o histórico de previsões se sustenta, ou seja, nem sempre, ou quase nunca, soluções do passado dão conta de resolver problemas que venham do futuro, mesmo esse não sendo o caso do Rio Grande do Sul. Ao pensarmos em reconstrução é preciso pensar além do que está dado e isso aponta para o que considero a terceira etapa desse processo de reconstrução. Primeiro, a qualidade mínima de vida. Em segundo, uma abordagem de presente, reconstruindo as cidades, de forma adaptável e dinâmica, ainda que de forma provisória, e paralelamente, a exploração dos diferentes futuros, não só referentes aos desafios climáticos, mas também econômicos, sociais, ambientais em amplo espectro. Essa exploração pode contribuir de forma significativa para a reconstrução definitiva (entendendo que no mundo contemporâneo ser definitivo deixou de ser uma qualidade) das cidades afetadas e ainda uma forma de antecipar os desafios das diferentes cidades de um país continental como o nosso.

Soluções extremas para tempos extremos

O exemplo mais extremo de adaptação climática é, certamente, o pequeno país-arquipélago de Tuvalu, no Pacífico-Sul, que corre o risco de desaparecer com o aumento do nível dos oceanos. Por mais que se fale no hardware, na reconstrução das casas, dos edifícios, um dos principais problemas do abrigamento e da realocação é a perda da memória. Shakespeare diria “O que é a cidade senão as pessoas?” e emendo com “O que são as pessoas sem suas memórias?” Os lares, os lugares têm um grande efeito na construção do imaginário e da memória, tanto individual como coletiva. O projeto “Futuro Agora” de Tuvalu propõe a migração da nação para a nuvem, ao criar uma versão digital de si mesmo, transferindo uma existência física para uma virtual.

Numa eventual diáspora completa, esse seria o lugar em que os tuvaluanos poderiam “retornar” ao seu país, ou, até mesmo, para os nascidos no “exílio”, possam aprender sobre ele. Tuvalu quer ‘migrar’ para o metaverso para sobreviver ao clima (apublica.org)

Além da manutenção do reconhecimento da soberania de Tuvalu como país e da influência na conscientização das outras nações sobre as mudanças climáticas, o projeto pretende preservar a cultura do povo, mantida no ambiente virtual.

O projeto de Tuvalu aponta para um aspecto importante de qualquer reconstrução ou realocação, aspecto que vai muito além de cimento ou tijolos, de segurança física. Mudar as pessoas de lugar, reconstruindo ou não, envolve uma dimensão emocional, algo que Simone Weil chamou de enraizamento e que detalhei em artigo para O Futuro das Coisas, e que complementa esse artigo no que se refere as características culturais envolvidas no movimento de grandes populações.

“O enraizamento, ou melhor, o reenraizamento, ouso dizer, se dá a partir da cultura. Após a lente da necessidade física é preciso usar a lente da cultura, da identidade.” Esteves, Caio

Se o reenraizamento se dá a partir da cultura e identidade, é essencial que a comunidade atingida seja ouvida no processo de reconstrução e realocação. Todos presenciamos a importância da vitalidade comunitária, nas imagens e relatos de centenas de salvamentos e resgates nas últimas semanas. Essa comunidade, ainda que sofrida, impactada profundamente pela tragédia recente, é a principal interessada na reconstrução e por isso mesmo, a única fonte viável de informação sobre a cultura local, seus arranjos, suas atividades e necessidades.

O futuro se construirá a partir do presente e ignorar as características culturais e identitárias da comunidade seria ignorar o seu próprio direito a um futuro digno e legítimo. Futuros são coletivos, cocriados e vão muito além de tijolos, cimento ou concreto. Reconstruir cidades não é só reconstruir prédios, é reconstruir a própria comunidade, mais forte, mais igualitária, mais preparada para enfrentar os desafios que lhes aguardam.

* Esse artigo é dedicado a toda a população do Rio Grande do Sul, em especial para minhas amigas Betina Sulzbach e Fê Bock que trouxeram para a tragédia uma dimensão pessoal de algo que, para muitos pode (incrivelmente) parecer distante.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/como-falar-de-futuros-numa-sociedade-que-nao-consegue-se-relacionar-com-o-passado/)
Foto de Capa Gerada por IA.

Se o enraizamento é uma necessidade da alma, o desenraizamento é uma doença social

A amplitude do O Futuro das coisas sempre me surpreendeu. Não raro, algum leitor me contacta nas redes sociais e comenta sobre um artigo recente ou compartilha e me marca ou ainda me encontra em algum evento e comenta sobre meus textos nesse espaço. Mas o que mais me surpreende mesmo é quando amigos de longa data me chamam para falar sobre determinado artigo assim que é publicado. De verdade, não entendo como pessoas que me conhecem há tanto tempo, ainda, tem tempo para ler as bobagens desse colunista, extremamente nichadas, que interessam a um número reduzidíssimo de leitores, mas que esse time editorial insiste em manter em seus quadros.

Um desses casos aconteceu precisamente no último artigo que falava sobre indicações geográficas e desterritorialização. Nutro um minúsculo número de amigos, pelos quais não tenho só um enorme carinho, mas principalmente admiração. São tão poucos que nem preciso citá-los. Claro que admiro um monte de gente, mas infeliz ou felizmente não os conheço pessoalmente, até porque, a cada dia fica mais difícil separar autor e obra e muitas vezes é melhor não conhecer seus ídolos de perto.

Foi justamente uma dessas amigas que me chamou para uma conversa após o artigo citado, conversa essa que de tão instigante, resultou nesse presente texto. O trabalho dela que envolve mulheres refugiadas e o senso de pertencimento diante da situação limite do refúgio foi nosso ponto de partida, nada mais desterritorializado do que isso.

Numa rápida pesquisa no site da ACNUR, agência da ONU para refugiados, conseguimos entender o quão crítica é a situação e, ao mesmo tempo, imaginar a possibilidade de agravamento ao levarmos em conta as mudanças climáticas em curso. Pouco menos de noventa milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas, e dessas, mais de vinte e sete milhões são refugiados, onde metade deles tem menos de 18 anos.

Talvez, ao pensarmos em refugiados, lembremos automaticamente da Síria, que de fato representa 27% (6,8 milhões de pessoas) da origem dos refugiados. Surpreendente, a segunda colocada nesse ranking é nossa vizinha Venezuela com 18% dos refugiados (4,6 milhões de pessoas). No Brasil, no início de 2023 abrigávamos mais de 65.000 pessoas reconhecidas como refugiados, em sua maior parte venezuelanos (dados entre 2011 e 2021), seguidos por sírios e congoleses.

Ao longo da nossa conversa buscávamos entender como se dá a territorialidade durante processos de refúgio e abrigamento. Sempre é preciso lembrar que um lugar é feito de pessoas e, portanto, pelo grupo que habita determinado território. Se o lugar é feito pelas pessoas, qual seria então o problema do refúgio ou do abrigamento?

Deixando as óbvias dificuldades materiais, temos uma série de impactos a  observar. Nesse ponto, não deixava de pensar numa autora que me foi apresentada após uma palestra que dei em Belo Horizonte, por uma pesquisadora que tinha se debruçado sobre o tema para sua tese de doutorado, e me fez uma resenha quase tão boa quanto o próprio livro. Tratava-se de Simone Weil, escritora e filósofa francesa da primeira metade do século XX e seu trabalho derradeiro chamado “O Enraizamento”. Como sempre, pego emprestado aquilo que me faz sentido e, com isso, deixo de lado as características mais esotéricas e religiosas que envolvem o pensamento weiliano. Entre o que me faz sentido, encontro o que considero o cerne do seu livro, algo que ela chama de “Necessidades da Alma”, que completariam as necessidades físicas, porém com maior dificuldade de reconhecimento uma vez que não tinham relação direta com o corpo.

“O primeiro estudo a fazer a ser feito é o das exigências que são para a vida da alma aquilo que são as exigências do alimento, do sono e do calor para a vida do corpo. Deve-se tentar enumerá-las e defini-las. Não se pode confundi-las com os desejos, os caprichos, as fantasias, os vícios. Deve-se também distinguir o essencial do acidental. O homem carece não de arroz ou de batatas, mas de alimento; não de lenha ou de carvão, mas de calor. O mesmo com as exigências da alma: deve-se reconhecer as satisfações diferentes, mas equivalentes, que respondem às mesmas exigências.” (WEIL, p. 17)

As necessidades da alma, para Weill são: ordem, liberdade, obediência, responsabilidade, igualdade, hierarquia, honra, castigo, liberdade de opinião, segurança, risco, propriedade privada, propriedade coletiva e verdade, além do enraizamento.

“O enraizamento é talvez a exigência mais importante e ignorada da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. Um ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos presságios do porvir. Participação natural, isto é, suscitada automaticamente por lugar, nascimento, profissão e ambiente. Todo ser humano precisa ter múltiplas raízes.” (WEIL, p. 65)

Por motivos óbvios, o interesse para esse artigo recai sobre os conceitos de enraizamento e desenraizamento, que podemos, de várias formas, compará-los às ideias de territorialização e desterritorialização e ainda apontar para uma terceira hipótese como a reenraizamento, assim como falamos de reterritorialização. Se o enraizamento é uma necessidade da alma, o desenraizamento, por sua vez, é uma doença social. Entre os três tipos de dezenraizamento, o chamado “desenraizamento geográfico e nação”, é o mais relevante para esse artigo.

Hoje, todos os franceses sabem o que perderam desde quando a França naufragou. Sabem disso como sabem o que falta quando não se come. Sabem que uma parte da sua alma está tão colada à França que, quando a França lhes é tirada, permanece colada, como a pele a um objeto tórrido, e assim é arrancada. Há, portanto algo a que está colada uma parte da alma de cada francês, a mesma para todos, única, real embora impalpável, e real à maneira das coisas que se podem tocar. Desse modo, o que ameaça a França de destruição – e em certas circunstâncias uma invasão é uma ameaça de destruição – equivale à ameaça de uma mutilação física de todos os franceses, e dos seus filhos e dos seus netos, e dos seus descendentes a perder de vista. Pois há populações que nunca convalesceram de uma conquista sofrida.” (WEIL, 2001, p. 182).

Se os refugiados são, por definição, pessoas desterritorializadas, será seu destino também o dezenraizamento? Acredito que não. Da mesma forma que Weil separa as necessidades do corpo das necessidades da alma, é preciso esse tipo de atenção aos movimentos migratórios involuntários.

É absolutamente compreensível que organizações humanitárias usem a “lente” das necessidades do corpo como abordagem objetiva, afinal, é preciso garantir que as pessoas estejam vivas e, portanto, alimentadas e saudáveis antes de qualquer outra coisa. A questão desse processo também levantada pela filósofa francesa é que a falta dos elementos que compõem as necessidades da alma, podem influenciar diretamente na saúde física das pessoas, e levá-las ao que chamou de “malheur”, palavra sem correspondente em português mas que comumente é traduzida como infelicidade mas sem a capacidade de absorver toda a carga filosófica embarcada no termo weiliano.

O enraizamento, ou melhor, o reenraizamento, ouso dizer, se dá a partir da cultura. Após a lente da necessidade física é preciso usar a lente da cultura, da identidade. Gosto da ideia da cultura como um patrimônio social. O Antropólogo inglês Edward Tylor definiu cultura como “um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e todas as produções dos homens em sociedade”. Quanto a identidade, numa abordagem mais contemporânea, temos Stuart Hall e seu sujeito pós-moderno, sem identidade fixa ou permanente, que se molda ao seu tempo:

“…. sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas…” (HALL, 2006)

Embora Hall nos dê algumas dicas sobre como o homem contemporâneo tem uma maior capacidade (e necessidade) de adaptação, ainda precisamos entender como fazê-lo quando esse processo é involuntário. No que se refere aos refugiados, minha hipótese é que os campos de refugiados funcionem como o Metaxo platônico, também utilizado por Weil, mas com a grafia metaxuMetaxo ou metaxia é algo com função de meio, intermediário ou conectivo. Proponho essa reflexão menos na forma transcendental usada por Weil, mas como intermédio entre dezenraizamento e reenraizamento, ou se preferirem, nos termos deleuze-guattarianos, mais comuns nos meus artigos, desterritorialização e reterritorialização.

Para que os abrigamentos possam servir de metaxo, a lente da cultura e da identidade precisa estar presente e ter a mesma importância da abordagem fisiológica. Para que isso aconteça é preciso parar de pensar unicamente na macroescala, absolutamente compreensível frente ao tamanho do problema e entender, mais uma vez, que a microescala, nesse caso não a escala do indivíduo, mas a escala da cultura, em forma de grupo, é tão importante quanto.

Os grupos recém-chegados podem exercer sua cultura e identidade no novo agrupamento, teoricamente provisório? Existem as condições necessárias para tal? Não adianta adotarmos os radicalismos e abraçarmos ideias como “já tem abrigo e comida, querem mais o que?”. Bastaria o conceito básico de humanidade para contrapor esse argumento, mas como vimos ao longo desse artigo, talvez, o completo desenraizamento mate as pessoas da mesma forma que a fome ou a doença, só que com requintes de crueldade, dada a sua lenta e invisível velocidade.

Se a comida e o abrigo são o hardware, a cultura e a possibilidade de exercê-la são mais do que o software, são o próprio peopleware, lembrando que hardware são elementos físicos e imóveis de um lugar, o software é o conjunto de atividades que ocorrem no lugar e o peopleware a cultura e identidade do lugar, baseado em quem o habita, ainda que transitoriamente. É preciso entender o caráter provisório e emergencial dos abrigamentos, mas é preciso entender também o caráter permanente da cultura, ainda que essa perenidade reflita apenas as dimensões mais profundas dos seres humanos, e como isso é capaz de impactar-nos e como sem isso podemos estar saudáveis fisiologicamente, mas completamente desprovidos daquilo que ao fim e ao cabo, nos torna humanos.

Referências Bibliográficas

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006.
Weill, Simone. O Enraizamento. Belo Horizonte. Âyné, 2022

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.(https://ofuturodascoisas.com/se-o-enraizamento-e-uma-necessidade-da-alma-o-desenraizamento-e-uma-doenca-social/)
Foto de Capa: ACNUR/Georgina Goodwin.