Ojisan Card Game: estratégia de integração intergeracional como resposta ao envelhecimento populacional no Japão 

Pessoa segurando cartas do Ojisan Card Game, jogo que impulsionou a integração intergeracional em uma cidade no Japão.

O Japão possui uma das populações que mais rapidamente envelhecem no mundo, tornando-se um laboratório vivo para os desafios e oportunidades de uma sociedade em envelhecimento.

Esse ano representa um marco crítico, conhecido como o “Problema de 2025”, quando toda a geração baby boomer japonesa ultrapassará a barreira dos 75 anos, consolidando uma “sociedade super envelhecida”, onde um em cada quatro cidadãos será um “super idoso”.

Esse cenário impõe uma enorme pressão sobre sistemas de previdência social, saúde e o mercado de trabalho. No entanto, um desafio menos visível, porém igualmente crítico, é o isolamento social e a crescente dificuldade de integração da população idosa.

Diante desse cenário, como podemos pensar em estratégias para endereçar a questão de integração intergeracional?

Imagem de sr. Honda, ex-brigadista de incêndio, ao lado da carta feita em sua homenagem dentro do jogo.
FOTO: FNN

O que é Saido Men, o jogo de cartas dos “tiozões”?

Para quem nunca passou pela fase de jogos de cartas como Pokemón, imagine um jogo onde você tem cartas, e cada personagem possui fraquezas e vantagens. Você batalha contra outros jogadores, que também podem trocar cartas entre si.

Saidōsho, cidade na província de Fukuoka criou um jogo similar, mas com um toque especial. Nesse caso, os personagens são os idosos da própria cidade. O jogo ganhou o nome de Saido Men, e foi colocada em prática por uma líder do conselho comunitário local. Ela decidiu evidenciar os homens que trabalhavam como voluntários na comunidade, como uma maneira de valorizar figuras locais emblemáticas.

A cidade segue a tendência do país, de avançado envelhecimento populacional. O “gap” entre os jovens e idosos tende a ficar cada vez maior, com opções de interação cada vez menores. O “jogo dos tiozões” foi pensado a modo de integrar esses dois mundos.

A proposta é simples: transformar os homens voluntários da cidade em personagens, heróis. Cada carta apresenta um “ojisan” (palavra japonesa para “tio” ou “senhor”) com seus pontos de vida (HP) e pontos de magia (MP) baseados em suas habilidades e experiências reais. As crianças colecionam as cartas, fazem trocas e até mesmo “batalham” umas com as outras, utilizando as habilidades únicas de cada personagem.

O jogo, que inicialmente não foi concebido para ser competitivo, foi organicamente adaptado pelas crianças, que criaram um ecossistema de desafios e interações, espelhando a dinâmica de sucessos como Pokémon.

Crianças sentadas à mesa, batalhando com suas cartas do jogo, no centro comunitário.
FOTO: Saidōsho community council/ Nippon.com

Estratégia de fortalecimento do senso de pertencimento: gamificação

Nesse contexto, a gamificação se mostrou uma ótima ferramenta para derrubar as barreiras intergeracionais. Ao traduzir a identidade e o valor comunitário dos idosos para uma linguagem universal e atraente para os mais jovens, o jogo criou uma ponte.

Os resultados foram visíveis. Figuras como o Sr. Honda, 74 anos, ex-brigadista de incêndio; o Sr. Takeshita, 81 anos, mestre do macarrão Soba; e o Sr. Fuji, 68 anos, policial aposentado, tornaram-se celebridades locais. Crianças passaram a reconhecê-los nas ruas, pedir autógrafos e, o mais importante, a interagir com eles.

O jogo não apenas aproximou as gerações, mas também reforçou profundamente o sentimento de pertencimento dos idosos, que se viram valorizados e vistos como parte essencial da comunidade. Esse reconhecimento inspirou novos voluntários a se engajarem, e aumentou o número de eventos comunitários.

Sr. Fukushima, ex-maquinista de trem, segura a carta feita em sua homenagem.
FOTO: Justin McCurry/The Guardian

Integração intergeracional também é questão de saúde pública

O “Problema de 2025” vai além da economia. Isso significa que haverá um pico de demanda por serviço de saúde e cuidados. Podem ser efeitos mais claros, como o aumento de gastos com previdência social, mas também menos óbvios, como um aumento no número de pessoas que precisam abandonar seus empregos para se dedicarem ao papel de cuidadores de familiares, o que impactaria a oferta de mão de obra.

Mas, um ponto importante a ser considerado é que isolamento social e a solidão na terceira idade são questões de saúde pública. Dados de pesquisa indicam que o isolamento social crônico pode aumentar o risco de morte de forma comparável ao fumo e à obesidade, além de elevar significativamente a incidência de demência.

A saúde comunitária depende de uma integração maior e criação de rede de apoio. A sociedade japonesa tem cada vez menos filhos e costuma ter um nível maior de isolamento social, com isso a rede de apoio tende a ser menor. A recomendação é que as conexões entre famílias e a comunidade sejam fortalecidas, e que os idosos passem a participar mais de atividades comunitárias e voluntariados.

Neste contexto, a integração intergeracional deixa de ser um mero ideal social e torna-se uma estratégia importante para a sustentabilidade das sociedades. Manter os idosos conectados, ativos e como parte integrante do tecido social fortalece as redes de apoio informal, reduz a pressão sobre os sistemas de saúde e mitiga os fatores de risco associados à solidão. A saúde de uma comunidade também está relacionada ao nível de integração social.

Interação entre pessoas de diferentes gerações, em evento comunitário.
FOTO: FNN

Lições para o futuro: da gamificação à construção de sociedades mais integradas

O caso do jogo dos “tiozões” é um exemplo de estratégia de pertencimento. Ele demonstra que soluções para desafios macros, como o envelhecimento populacional, podem surgir de iniciativas micro, que redesenham as relações humanas no espaço urbano.

A líder comunitária por trás do projeto identificou uma estratégia que funciona naquele contexto. Ao criar um mecanismo que valoriza a própria comunidade, o jogo não apenas mudou a percepção das crianças sobre os idosos, mas também aumentou concretamente a participação em eventos comunitários.

O nosso Urban Trends Report fala sobre as novas formas de vivenciar ambientes urbanos, causados pela mudança demográfica e cultural do mundo. Os espaços intergeracionais são uma tendência necessária para uma sociedade saudável.

Este caso nos aponta um caminho: lugares à prova de futuro passam pela criação de espaços intergeracionais e pela adoção de ferramentas criativas, como a gamificação, para pensar sociedades saudáveis.

Em um mundo que envelhece rapidamente, promover o pertencimento não é apenas um gesto de bondade, mas um movimento essencial para construir sociedades em envelhecimento que sejam não apenas funcionais, mas vibrantes e acolhedoras para todas as idades.

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Fontes: https://www.fnn.jp/articles/gallery/842101
https://www.nippon-foundation.or.jp/journal/2023/89142/health_aging
www.gooddo.jp/magazine/health/low_birthrate_and_aging/39747/
https://www.theguardian.com/world/2025/apr/27/its-done-wonders-trading-card-game-featuring-middle-aged-men-revives-japanese-town
https://www.nippon.com/en/japan-topics/g02544
https://www.tokyoweekender.com/entertainment/middle-aged-man-trading-cards-go-viral-in-japan/#67e2541dad9ce

Mas afinal de contas, o que é comportamento urbano?

O Comportamento Urbano é, portanto, um sistema dinâmico de práticas e experiências. É uma dança contínua, onde as práticas moldam as experiências, e as experiências, por sua vez, legitimam, subvertem ou ressignificam as práticas. Estar atento a ele é o que permite qualquer lugar que queira se comportar como marca, ou qualquer marca que queira incidir sobre um lugar, se tornar conhecido não por sua abordagem genérica e sem personalidade, mas pela sua singularidade. Quando atuamos escutando ativamente o comportamento urbano, como ele é de fato, a conversa muda. O briefing da agência criativa, agora, diria: “Mapeamos as Práticas Cotidianas e vimos que o ponto de encontro orgânico do bairro é a quadra de basquete aos domingos. A Experiência Vivida ali é de comunidade e competição saudável. Nossa campanha não vai interromper isso com uma pop-up store. Vamos investir na reforma da quadra, patrocinar um campeonato e deixar que a marca seja adotada por eles, não imposta a eles.” O relatório da consultoria de tendências apresentaria: “Nosso report identificou uma Experiência Conflituosa clara: os moradores amam a vida de bairro, mas as Práticas de Mercado atuais os forçam a sair da região para acessar serviços básicos. A oportunidade não é vender o ‘hiperlocalismo’ como tendência, mas apresentar um diagnóstico sobre a demanda latente por uma infraestrutura de conveniência que dê suporte às Práticas Cotidianas que já existem.” A incorporadora defenderia o novo empreendimento imobiliário dizendo: “Este projeto nasce de uma Experiência Conflituosa que observamos por meses: é um bairro com uma vida cultural riquíssima, mas sem espaços para ela acontecer. Por isso, mais do que apartamentos, estamos entregando um teatro de arena no térreo, conectado a uma praça aberta ao público. Não estamos vendendo um ‘ecossistema’, estamos oferecendo a infraestrutura para que o ecossistema que já vive aqui possa florescer.” E o gestor público justificaria a obra dizendo: “A reforma da praça central não é um projeto de embelezamento. É uma resposta direta às Práticas Cotidianas dos artesãos locais, que já usavam o espaço de forma improvisada. Ouvimos a Experiência Declarada deles sobre a falta de estrutura e desenhamos quiosques que atendem a essa demanda. O objetivo é dar suporte à vocação econômica que a própria comunidade já criou.” A mudança é sutil, mas definitiva. E o melhor de tudo: não precisa de tradução. O comportamento urbano nos tira da superfície dos modismos e nos aprofunda na identidade dos lugares. Ele nos convida a parar de construir espaços meramente funcionais ou performáticos para começar a cultivar lugares com gravidade própria. Lugares onde as pessoas não apenas consomem. Lugares onde elas pertencem.

Certas expressões são tão repetidas que seu entendimento parece óbvio, embora raramente a gente pare e reflita sobre o que elas, de fato, possam significar. “Comportamento urbano” é um desses casos.

Uma expressão que funciona como carta coringa, um significante vazio, uma espécie de teste de Rorschach do mundo corporativo: cada um projeta nela o que for mais conveniente para a sua própria narrativa.

Para uma agência criativa, “comportamento urbano” é um termo que traduz os modismos das ruas:

“Mapeamos que o novo luxo é a autenticidade. Nossa campanha vai hackear esse novo comportamento urbano com uma pop-up store ‘secreta’ num beco grafitado, dialogando com a Geração Z onde ela realmente está.”

Tradução: assistimos a dois podcasts do Michel Alcoforado e vamos replicar o discurso dele para nosso cliente parecer descolado.

Por sua vez, para uma consultoria de tendências, “comportamento urbano” é uma expressão perfeita para reembalar o presente como se fosse o futuro:

“Nosso report identifica a ascensão do ‘Nomadismo Hiperlocal’ como a última fronteira do comportamento urbano: consumidores estão redescobrindo seus bairros, o que gera um novo set de demandas por conveniência.”

Tradução: descobrimos que as pessoas gostam de ir à padaria a pé e vamos vender este insight como algo revolucionário.

Já para uma incorporadora imobiliária, “comportamento urbano” serve como verniz conceitual para justificar o metro quadrado acima da média:

“Este projeto não vende apartamentos, ele entrega uma curadoria de comportamento urbano. O coworking atende à tendência do anywhere office; o pet place 24h, à humanização dos animais. É um ecossistema completo.”

Tradução: vamos incluir as mesmas amenidades de sempre e chamar de “ecossistema” para agregar valor.

Por último, mas não menos importante, para um gestor público, “comportamento urbano” traz uma sofisticação ao discurso que legitima tomadas de decisão sem a participação da comunidade:

“O novo polo gastronômico dialoga com a vocação da nossa economia criativa, traz o que há de mais moderno no comportamento urbano global para nossa cidade e nos posiciona para atrair investimentos e turistas de alto nível.”

Tradução: a reforma da praça central vai gerar boas fotos, reportagens na mídia e capital político para as próximas eleições.

É claro que os exemplos são fictícios e exagerados. Mas provavelmente você já esteve em uma reunião remotamente parecida com algum desses cenários, não é?

Isso acontece porque, em algum momento, normalizamos pegar uma das forças mais complexas da experiência humana — a forma como damos vida aos espaços que habitamos — e achatá-la até que ela caiba num argumento comercial. Reduzimos a cidade a um ponto de venda, o cidadão a um alvo de campanha e chamamos isso, convenientemente, de comportamento urbano.

É preciso romper este ciclo, com urgência. Essa “confusão” não é meramente conceitual, é um erro que gera lugares e ativações funcionais, mas emocionalmente estéreis.

É hora ajustar as lentes e reivindicar o verdadeiro significado de Comportamento Urbano. E, finalmente, separar quem apenas se apropria de modismos de quem, de fato, decodifica pertencimento.

Comportamento urbano não é sinônimo de consumo

Sem um conceito claro, a ideia de “comportamento urbano” se tornou ampla, e o mercado, pragmático por natureza, não fez uma escolha filosófica, ele pegou um atalho. Recorreu ao que era familiar, acessível e, acima de tudo, mensurável: o consumo.

Cada cartão de crédito passado, cada Uber chamado, cada treino executado no aplicativo, enfim, tudo o que fazemos no nosso dia a dia deixa um rastro de dados. Com o tempo, por pura repetição e pela falta de uma alternativa igualmente clara, essa conveniência se tornou o padrão. O que era para ser apenas um indicador foi promovido a diagnóstico.

O problema dessa substituição é que ela gera uma miopia seletiva e involuntária. Ao adotarmos o mapa do consumo como o mapa do comportamento de um lugar, passamos reto sobre as forças que, de fato, tecem a vida nos lugares.

Eu tive certeza disso em uma das nossas imersões de campo para uma consultoria de City Branding, quando fomos surpreendidos pela quantidade de críticas a uma operação urbana — à época, recém-inaugurada — em um espaço público central da cidade.

De turistas a empresários, não se falava em outra coisa que não fosse a revitalização e otimização daquele espaço para o consumo, com novos quiosques de comida, mobiliário moderno, iluminação com led e todas as amenidades envolvidas nesse tipo de projeto.

O que ouvimos foi: enquanto tudo era novidade, sem problemas. A operação havia resolvido questões sanitárias e de segurança. Durante algum tempo, isso simbolizou a esperança de “novos tempos” para a cidade.

Contudo, após alguns meses, a fragilidade se revelou: não há mais habitués no local como havia antigamente, apenas turistas e passantes. A rotatividade de funcionários é alta. A comida é cara (de fato, era mesmo). As conversas são superficiais. As pessoas tiram a foto e vão embora.

Ou seja, o lugar vive cheio, mas não tem cultura de permanência, muito menos uma “gravidade” própria.

Em contrapartida, na mesma noite em que fomos conhecer essa operação urbana, o que chamou atenção, na verdade, foi a praça vizinha. Já passavam das 22h de um dia de semana, e locais e visitantes de todas as idades dançavam pra lá de animados ao som de uma bandinha que ditava a festa em cima do coreto — sim, num coreto de praça, tal qual se fazia no século retrasado.

Diante do mais clichê dos contrastes — o “antigo raiz” vs. o “moderno gourmet” — eu constatei o que deveria ser uma lei universal para qualquer cidade:

Reduzir comportamento urbano a comportamento de consumo não sustenta um lugar por senso de pertencimento intrínseco (o que é o ideal), mas por um esforço de marketing extrínseco. E o que depende apenas de esforço externo é, por definição, frágil.

Bairros e cidades que desafiam essa “lei” invariavelmente se colocam em uma corrida infinita para se manter interessantes e relevantes. Tornam-se reféns da próxima tendência, do próximo modismo, do próximo evento, da próxima visita de um influencer do Instagram… É o famoso cachorro correndo atrás do próprio rabo.

O erro, portanto, não é olhar para o dado de consumo; afinal, ele é um dos pontos de partida para entender comportamento urbano. O problema é acreditar que ele é o único.

Síndrome do Lugar Genérico

De forma mais profunda, a redução do comportamento urbano ao de consumo é o agente patogênico de uma condição muito mais séria, diria quase pandêmica, que se alastra por cidades mundo afora: o Ctrl+C, Ctrl+V de tendências globais e modelos que “funcionaram” em outros lugares.

A consequência desse processo é o que chamo de Síndrome do Lugar Genérico: a condição na qual um espaço urbano (e aqui podemos falar de ruas, bairros, distritos ou cidades inteiras) perde sua identidade e força de atração intrínseca, tornando-se cronicamente dependente de estímulos externos para se manter relevante.

Essa síndrome está enraizada em dois conceitos populares e queridinhos entre urbanistas, mas bastante problemáticos: “não-lugar” e “autenticidade”. Em outro artigo expliquei em detalhes porque esses conceitos não servem mais para pensarmos a identidade dos lugares, e o que precisamos fazer para superá-los.

Mas ao contrário do que possa parecer, não estou criticando o mercado, apenas reconhecendo o que é um fato: ele é pragmático e sempre vai escolher o caminho mais seguro e mensurável. Desculpa, eu não faço as regras.

Em vez de espernear, prefiro revelar quais são os sintomas claros e observáveis dessa síndrome, para então, apontar um caminho possível:

Sintoma 1: Aceleração da Obsolescência Cultural.

Lugares construídos sobre a espuma das tendências de consumo — o bar de drinks autorais, o coworking com estética industrial, o food park em contêineres — têm um ciclo de vida cada vez mais curto. A inauguração traz um pico de dopamina social, mas meses depois, a novidade envelhece e outra “tendência” (que, na verdade, é só modismo passageiro) surge, obrigando lugares a se adequarem depressa a um novo ciclo.

Isso acontece principalmente em lugares que não são construídos sobre uma cultura real, mas sobre uma estética que pode ser facilmente copiada e descartada. O sistema é perito em pegar os símbolos de uma cultura ou de um espírito do tempo — o industrial, o boêmio, o retrô etc. — e transformá-los em produto de consumo.

E, como qualquer produto de consumo, ele é projetado para o ciclo vicioso de novidade, saturação e descarte.

Sintoma 2: Erosão da Gravidade Local.

Um lugar saudável gera sua própria energia, ou para usar um termo do momento, sua “aura”. Ele tem uma gravidade que atrai e retém pessoas organicamente. Um lugar genérico, não; ele depende de respiração artificial e injeções constantes e cada vez maiores de esforço externo — portanto, sem identidade — para simular vida.

Em lugares sem gravidade própria, a rua só tem movimento quando há um festival. O comércio só “bomba” em época de liquidação. Os restaurantes só enchem em horário comercial.

Retire os estímulos externos de um lugar sem gravidade própria e o que resta é o silêncio, no melhor dos casos, ou a sensação de insegurança, no pior.

Sintoma 3: A Crise do Pertencimento Passivo.

O sintoma final e mais profundo é a transformação dos habitantes em usuários. É quando a relação das pessoas com o lugar se torna puramente transacional, de espectador mesmo.

As pessoas “usam” o espaço — para comprar, tirar uma foto etc. —, mas não se conectam a ele. Não há apropriação, nem rituais que nasçam da comunidade. O resultado é uma crise de pertencimento que condiciona as pessoas a consumir uma autenticidade encenada, em vez de construir uma experiência memorável.

Essa é a diferença fundamental entre ter usuários e ter habitués. Um usuário extrai valor. Um habitué cria valor.

Se o lugar onde você mora, trabalha, estuda, investe ou encontra amigos depois do expediente apresenta um ou mais desses sintomas, ele está acometido pela síndrome do lugar genérico. Pragmaticamente falando, essa síndrome se traduz em perdas bastante tangíveis:

Para o Capital Privado, ela se manifesta como Risco de Relevância. Um dos principais riscos de um ativo imobiliário é que ele se torne invisível ou não tenha vantagem competitiva, consequentemente se desvalorizando. A pergunta a ser feita aqui é: você quer construir um legado, ou gerar passivo futuro?

Para o Poder Público, a síndrome se manifesta como Déficit de Confiança. Investimentos que não geram pertencimento são vistos pela população como projetos de fachada, desconectados da vida real. O resultado é a erosão do bem mais valioso de uma gestão: a legitimidade.

Para o Impacto Social, ela se manifesta como Rejeição Sistêmica. Projetos ou ativações de marca que visam engajamento de comunidades em lugares genéricos falham porque não há um tecido social ao qual se ancorar. É simples como tentar cultivar uma planta em solo estéril.

Em suma, não há montante de investimentos ou boa intenção que resolva o desafio da complexa relação entre pessoas e lugares utilizando apenas o mapa do consumo. É hora de apresentar o mapa correto.

Para decodificar o Comportamento Urbano

Não adianta ter o melhor GPS do mundo quando se está navegando na direção errada. Cidades não são objetos estáticos, nem tampouco o cotidiano cabe em uma planilha ou em um código de programação.

Para entender, mapear e trabalhar com comportamento urbano, é preciso entendê-lo como um sistema vivo que opera em duas camadas: as Práticas Urbanas, e as Experiências Urbanas:

As Práticas Urbanas são as ações, movimentos e decisões — grandes e pequenas, planejadas ou espontâneas — que dão forma e função ao espaço urbano. Na maioria dos casos, se enquadram em três tipos:

  1. Práticas de Mercado: São as forças do capital em ação. A incorporadora que ergue um empreendimento. A varejista que ancora um fluxo. A startup que otimiza uma conveniência. Seus agentes operam na lógica da escala, eficiência e retorno financeiro, construindo a infraestrutura funcional da vida urbana.
  2. Práticas Institucionais: São as forças do planejamento e da regulação. As políticas de zoneamento que ditam o que pode ou não ser construído. Os investimentos em infraestrutura e os eventos culturais oficiais que tornam o turismo uma atividade econômica. Elas criam a moldura dentro da qual a vida urbana se desenrola.
  3. Práticas Cotidianas: São as forças da apropriação e do encontro. O terreno baldio que vira um atalho informal para os pedestres. A rua de bares que se torna o ponto de encontro após o trabalho. A cadeira na calçada que transforma o privado em público. É a vida real pulsando nas brechas do que foi planejado pelo Mercado e pelas Instituições.

Se as Práticas produzem o “corpo” de um lugar, as Experiências Urbanas, por sua vez, formam a sua “consciência”. Elas definem o fluxo de percepções, afetos e narrativas que transformam tijolo e asfalto em memória e identidade. Também podem ser compreendidas em três tipos gerais:

  1. Experiência Declarada: É a sabedoria do lugar. Relatórios não a captam porque ela não está nos dados, mas na boca do povo. É o bar conhecido não pelo nome-fantasia, mas pelo nome do garçom que trabalha lá há 20 anos. É o tratamento de boas-vindas que o motorista de aplicativo dá ao turista recém-chegado.
  2. A Experiência Vivida: É a camada do não-dito, a verdade etnográfica. É a esquina que é melhor evitar depois das 22h. A linguagem corporal das pessoas em uma fila. A energia de um espaço que o torna convidativo ou hostil. É o que nós sabemos sobre um lugar antes que a mente consiga articular o pensamento.
  3. A Experiência Conflituosa: É onde a verdadeira oportunidade finalmente se revela. A frustração de uma ciclovia que não se conecta com o trajeto real das pessoas. A sensação de insegurança que perdura até mesmo em espaços vigiados e supostamente seguros.

O Comportamento Urbano é, portanto, um sistema dinâmico de práticas e experiências. É uma dança contínua, onde as práticas moldam as experiências, e as experiências, por sua vez, legitimam, subvertem ou ressignificam as práticas.

Estar atento a ele é o que permite qualquer lugar que queira se comportar como marca, ou qualquer marca que queira incidir sobre um lugar, se tornar conhecido não por sua abordagem genérica e sem personalidade, mas pela sua singularidade.

Quando atuamos escutando ativamente o comportamento urbano, como ele é de fato, a conversa muda.

O briefing da agência criativa, agora, diria:

“Mapeamos as Práticas Cotidianas e vimos que o ponto de encontro orgânico do bairro é a quadra de basquete aos domingos. A Experiência Vivida ali é de comunidade e competição saudável. Nossa campanha não vai interromper isso com uma pop-up store. Vamos investir na reforma da quadra, patrocinar um campeonato e deixar que a marca seja adotada por eles, não imposta a eles.”

O relatório da consultoria de tendências apresentaria:

“Nosso report identificou uma Experiência Conflituosa clara: os moradores amam a vida de bairro, mas as Práticas de Mercado atuais os forçam a sair da região para acessar serviços básicos. A oportunidade não é vender o ‘hiperlocalismo’ como tendência, mas apresentar um diagnóstico sobre a demanda latente por uma infraestrutura de conveniência que dê suporte às Práticas Cotidianas que já existem.”

A incorporadora defenderia o novo empreendimento imobiliário dizendo:

“Este projeto nasce de uma Experiência Conflituosa que observamos por meses: é um bairro com uma vida cultural riquíssima, mas sem espaços para ela acontecer. Por isso, mais do que apartamentos, estamos entregando um teatro de arena no térreo, conectado a uma praça aberta ao público. Não estamos vendendo um ‘ecossistema’, estamos oferecendo a infraestrutura para que o ecossistema que já vive aqui possa florescer.”

E o gestor público justificaria a obra dizendo:

“A reforma da praça central não é um projeto de embelezamento. É uma resposta direta às Práticas Cotidianas dos artesãos locais, que já usavam o espaço de forma improvisada. Ouvimos a Experiência Declarada deles sobre a falta de estrutura e desenhamos quiosques que atendem a essa demanda. O objetivo é dar suporte à vocação econômica que a própria comunidade já criou.”

A mudança é sutil, mas definitiva. E o melhor de tudo: não precisa de tradução.

O comportamento urbano nos tira da superfície dos modismos e nos aprofunda na identidade dos lugares. Ele nos convida a parar de construir espaços meramente funcionais ou performáticos para começar a cultivar lugares com gravidade própria.

Lugares onde as pessoas não apenas consomem.

Lugares onde elas pertencem.

MANIFESTO CONTRACOLONIAL: Por um novo léxico dos futuros urbanos

Mapa invertido da América Latina por Joaquín Torres-García, simbolizando a inversão epistemológica e o protagonismo do Sul Global.

Durante meia década, fui sócio de uma das mais relevantes consultorias globais de place branding. Aprendi muito, claro. Aprendi como trabalhar globalmente da mesma forma que comprovei como nós, brasileiros, somos seduzidos pelo que vem de fora. Aliás, isso está longe de ser uma novidade. Esse fenômeno acontece em diferentes escalas e muitas vezes nem nos damos conta. É preciso sair da pequena cidade para só então ser reconhecido após “vencer” na cidade grande, ainda que não se saiba exatamente o que isso quer dizer. Crescemos com a ideia de que o “importado” é sempre melhor, talvez fruto de tempos imemoriais em que o mundo ainda não globalizado tinha produções locais e as indústrias nacionais ditavam o que se tinha acesso. Mas isso não necessariamente reflete a realidade, a ideia de que os outros, produtos, serviços ou pessoas são melhores.

É preciso ter uma vivência mínima fora do país, ou com pessoas de fora do país, para entender não só a nossa potência, mas a nossa identidade, nossas características culturais, nossa singularidade. Não deveria ser assim, deveria bastar olharmos para o lado, para nossa diversidade, mas não.

Somos adestrados a gostar de filósofos franceses e alemães, profissionais norte-americanos, músicos britânicos, mas poucas vezes somos incentivados a olhar para dentro, como se não fossemos cultos o suficiente, intelectuais o suficiente, eficientes o suficiente e vejam só, criativos o suficiente. E isso perdura, incrivelmente. Por outro lado, o Norte, também tenta manter sua posição, reforçando a sensação já impregnada, aquela ideia irritante do complexo de vira-lata. Pergunte a um acadêmico ou pesquisador sobre a dificuldade de reconhecimento pelas suas descobertas ou a dificuldade de publicar numa revista científica de peso, como se nós, o agora chamado “sul global” não fosse capaz de produzir conhecimento ou a um profissional sobre a dificuldade de ser lembrado por qualquer coisa que não seja estritamente restrita ao Brasil ou a América Latina. Não precisamos ir tão longe, quanto atores brasileiros conseguem papéis além do traficante latino ou da mulher sedutora?

Isso tudo foi me incomodando, me incomodando, até me irritar completamente.

Lembro de um episódio, em uma apresentação de projeto no interior de Minas Gerais, onde, ao ler um slide, que aliás eu mesmo tinha feito, e olhar para a audiência, percebi que todos estavam com um sorriso irônico. Reli rapidamente o slide e entendi. Era um texto ridículo (para mim supernormal, até então, mas ainda sim ridículo). O título exato do slide era “Needstates de acordo com o Zeitgeist”.

Aos poucos, fui me sentindo como se estivéssemos tentando traduzir o mundo a partir de uma língua que não nos pertence. Uma língua técnica, limpa, otimizada e profundamente colonizada. Place branding, placemaking, strategic foresight. Estratégia, diagnóstico, imagem, valor percebido, tudo no singular. Tudo com cara de “pitch”. Tudo com sotaque anglófono.

Retrato próximo de um homem mais velho com barba e chapéu, olhando diretamente para a câmera com expressão serena e profunda.
Antônio Bispo dos Santos/ Nêgo Bispo.

Aí veio a mudança e, com ela, veio Nêgo Bispo

Participo de diversos eventos no Brasil e no resto do mundo. Teoricamente para “levar a palavra”, mas na verdade viajo mesmo para comer, conhecer novas cidades e, eventualmente, novas pessoas, necessariamente nessa ordem. Num desses eventos enormes, conheci numa mesma tacada Claudio Nascimento, e nos nossos cafés da manhã intermináveis, ele, meio despretensiosamente, me falou uma frase que respondeu a quase tudo o que pensava naquele momento: Somos começo, meio e começo. É simples e genial.

Havia sido então apresentado a Nêgo Bispo. O nome não me era estranho, mais tarde, de volta a SP, vi que de fato tinha o clássico “A Terra Dá, A Terra Quer” de onde o Claudio extraíra a citação. Tenho a mania de comprar livros compulsivamente, mesmo sabendo que precisaria de umas três vidas para lê-los todos, e ainda assim continuo comprando-os. Me reconforto com a Antibiblioteca de Umberto Eco citada por Taleb, onde se sabe que os livros não lidos servem para demonstrar a eterna ignorância de quem passará a vida inteira lendo e ainda assim morrerá ignorante, qualquer um que tem uma biblioteca em casa, e ainda não está aposentado, sabe do que estou falando.

O livro de Bispo subiu então algumas posições na minha pilha da cabeceira. São três, organizadas por urgência, a da direita, mais próxima a luminária, os livros das obsessões do momento, quase todos sobre o tempo. À esquerda, os menos prioritários (lá estava o Nêgo Bispo), mas que precisam ser lidos em breve. A terceira pilha, junto ao bloco de post-its e as canetas marca-texto, ficam aqueles que foram lidos recentemente e cujas anotações são importantes para algum artigo ou capítulo que estou escrevendo naquele momento.

Meses se passaram e participava de um podcast, em outro evento, que terminou numa sessão de terapia, onde resgatei o filósofo brasileiro. Ali então estava decidido, ele pularia para o primeiro da lista. Aquelas curtas cem páginas, me impactaram como pouca coisa havia impactado até então. Uma aparente simplicidade argumentativa e estilística traz uma profundidade abissal de conceitos e reflexões.

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“É preciso adestrar a língua do colonizador.” Nêgo Bispo

Essa frase me pegou. Não apenas pelo que diz, mas pelo que exige. Adestrar a língua do colonizador não é só tomar consciência de seu uso, é criar fissuras, desobedecer a sua lógica, propor outros arranjos de palavras e, com elas, outros mundos. É tensionar os sentidos herdados, desprogramar a gramática que nos formata, desformatar a ideia de futuro que ela embute.

Linguagem não é apenas um instrumento, é uma forma de ordenar o mundo, de decidir o que merece nome e o que segue invisível. Foi nesse momento que percebi: minha própria atuação estava presa a esse léxico dominante. Era preciso romper.

Claro que nenhuma ruptura é assim tão simples, afinal, eu mesmo sou descendente de eurocritãos colonizadores, meu bisavô paterno espanhol, meu avô materno português. Minha primeira reação foi pensar: quem sou eu para falar de colonialismo ou contracolonialismo? Mas aí me lembrei que, antes de tudo, sou brasileiro, uma nacionalidade que não é nem branca para os norte-americanos e nem ocidental para partes da Europa, ou seja, nascer nesse nosso caldeirão de culturas, raças, etnias, ainda que homem e branco, me dá sim alguma legitimidade para falar, pelo menos, dessa colonização em uma esfera mais global.

Essa ruptura foi mais que uma decisão de carreira, foi um gesto político, epistêmico e simbólico. Deixar a sociedade numa consultoria global que operava dentro das lógicas do Norte Global significava renunciar a uma estrutura reputacional poderosa. Mas também significava abrir espaço para construir algo mais alinhado com os territórios que de fato mais importam para mim: os do Sul, e por que não, contracolonizar os territórios do Norte.

Fundar a N/Lugares Futuros foi, portanto, mais que empreender. Foi recomeçar desde outro lugar, com outro ritmo, outro sotaque, outra língua. Um lugar onde place branding, placemaking e foresight pudessem ser não só combinados, mas reinventados a partir de outras referências, outras urgências, outros léxicos.

Foi nesse processo que percebi que os termos que ainda usamos para pensar os lugares estão contaminados por uma lógica colonial. Place branding se traduz na visão comum em “valor de marca” como se o lugar fosse apenas um produto ou serviço. Placemaking parte do “fazer” e, geralmente, de quem tem o poder de fazer, ou da comunidade, que unida, tenta corrigir justamente o que as pessoas que têm poder não conseguem ou querem fazer. Place Strategic foresight remete a previsões calculadas, como se o futuro fosse um projeto a ser gerenciado.

A língua amarra, rapta, nos faz reféns de leituras que não necessariamente dão conta da nossa complexidade, da nossa identidade.

Mas e se os lugares forem mais do que marcas?
E se os lugares não forem feitos, mas revelados, cuidados, engajados?
E se os futuros não forem previsões, mas disputas? Territórios a serem descolonizados?

Como diria Boaventura de Sousa Santos, “não há justiça social sem justiça cognitiva”. E sem justiça cognitiva, seguimos pensando o mundo com conceitos que não o explicam, apenas o reproduzem. Place branding não dá conta do que fazemos quando identificamos a singularidade de um lugar, sua história, seu afeto, sua complexidade. Não estará na hora de criar alternativas locais? Identificando, enraizando, narrando. Verbos ativos, contínuos, processuais.

Placemaking, do mesmo modo, carrega o peso da intervenção: alguém faz o lugar. Mas e se, em vez disso, lugarizarmos? E se o lugar não for feito, mas cuidadosamente reconhecido, regenerado, trazido à presença? Termos como cuidando, tecendo, convivendo fazem mais sentido para o que realmente importa.

E o foresight? Estratégico para quem? Baseado em que tempo? Futuro de quem?
Aqui, a sugestão é futurando, descolonizando os futuros e sentindo os tempos. Porque não se trata apenas de reconhecer tendências, mas de cultivar imaginários plurais e inclusivos. Não se trata de adaptar o presente a um futuro inevitável, mas de abrir frestas para explorar futuros possíveis.

“A colonização também é feita pelo verbo.” Nêgo Bispo

E quando importamos essas estruturas sem questionamento, estamos apenas replicando o mesmo projeto colonial, agora com nomes novos, mas com a mesma epistemologia por trás. O branding vira só marketing. O futuro vira só plano. O lugar vira só ativo. E as pessoas viram só público-alvo.

Mas os lugares que mais nos comovem e os que mais precisam ser trabalhados estão fora desse radar. Estão nos lugares tradicionais, nos quilombos, nas periferias urbanas, nas cidades médias esquecidas, nos rincões dos biomas ameaçados, nos saberes da tradição oral. Lugares onde o tempo não é linear. Onde a identidade não é logotipo. Onde o futuro é compartilhado na roda, não na planilha. O Brasil é muito mais do que seus grandes centros.

Mapa-múndi com classificação da UNCTAD, destacando países desenvolvidos (Norte Global) em azul e países em desenvolvimento (Sul Global) em vermelho.
Sul Global/ Norte Global. Fonte: Wikipedia

Assumir-se como uma consultoria do sul global é mais que um posicionamento geopolítico. É um ato de engajamento radical. Um compromisso com ritmos outros, formas outras, lógicas outras. É recusar o modelo único de cidade ideal. É saber que a cidade do futuro não será uma, será muitas. E que essas muitas já existem. À sua maneira, aos seus tempos.

Ao desenvolvermos nossa própria metodologia, o urbanscanner, que substitui o tradicional STEEP, ampliamos o olhar para dimensões que não cabem nos modelos clássicos: percepção, cultura, urbanidade, ambiente. Criamos também o Urbanscope, um observatório de tendências que ouve o que as pessoas dizem, sentem e buscam, e não apenas o que os dados frios indicam.

Tudo isso nasce do incômodo com o que está dado. E dá vontade de criar uma outra forma de pensar os lugares: não a partir de cima, mas a partir de dentro. Não a partir do centro, mas a partir da borda.

E o incômodo se estabelece novamente ao perceber que tudo o que fizemos nesse novo momento, “escrituralmente” como diria Bispo, representa a mesma colonização. É preciso mudar tudo, é preciso mudar a nossa própria forma como vemos (e chamamos) a mudança.

Vivemos um ponto de inflexão

Soluções que antes vinham do Norte agora parecem obsoletas. O que parecia vanguarda virou obviedade. E o que antes era invisibilizado começa a ganhar centralidade: o cuidado, a interdependência, a regeneração, o comum, a confluência.

Talvez seja hora de deixar de lado o inglês estratégico e buscar uma língua nossa, híbrida, macunaímica, insurgente e generosa. Uma língua que saiba nomear os futuros a partir de onde estamos. Que saiba dizer o que sentimos. Que crie palavras como quem cria mundos.

Como escreveu Nêgo Bispo, “nós, povos do sul, temos muito o que ensinar ao mundo, e precisamos começar ensinando a falar.”

Este não é um artigo com respostas, longe disso. É um convite, fruto de enorme ansiedade, a todos que trabalham com cidades, lugares, marcas-lugar e futuros: que palavras temos usado sem questionar? Que métodos temos repetido sem perceber? Que futuros temos desenhado, e para quem?

Talvez esteja na hora de começarmos tudo de novo.

Mas dessa vez, com uma língua nossa.

Como seriam, afinal, os futuros com os nossos sotaques?

Não existe Não-Lugar. Nem Autenticidade. E está tudo bem.

Saguão de aeroporto movimentado ao entardecer, com painéis de voos e pessoas circulando com malas sob luz dourada.

Imagine-se no saguão de um aeroporto. Qualquer um. As mesmas cadeiras, as mesmas redes de cafés, as mesmas lojas duty free. Esse espaço, estranhamente familiar e impessoal ao mesmo tempo, poderia estar em qualquer lugar do mundo, não é?

Essa sensação é o que se convencionou chamar de “não-lugar”. O conceito, cunhado pelo antropólogo Marc Augé para descrever espaços de passagem com os quais não criamos laços, popularizou-se e virou um jargão fácil no vocabulário de urbanistas e players do mercado para classificar qualquer ambiente que pareça sem “autenticidade” — de aeroportos a bairros planejados.

De acordo com essa lógica, um não-lugar é, automaticamente, um espaço ruim e deve ser evitado a todo custo. O antídoto? Resgatar e promover sua autenticidade. Mas a popularização desses termos criou uma armadilha: ao virarem rótulos, diagnóstico e remédio prescritivo se tornaram superficiais e estão entregando mais do mesmo, apenas em nova embalagem.

Se não existe não-lugar, existe o quê?

Existe lugar sem lugaridade, tradução que propus em minha tese de Doutorado para o termo Placelessness, cunhado pelo geógrafo Edward Relph nos anos 1970, mas que permanece mais atual do que nunca. A discussão é longa, mas em resumo, um lugar sem lugaridade não é um lugar intencionalmente construído para ser vazio de significado, como a ideia de não-lugar pode sugerir. É apenas um lugar ausente de identidade territorial. Sim, há diferenças.

Pense em um distrito empresarial com seus arranha-céus de vidro que, assim como aeroportos, poderiam estar em qualquer metrópole. Ou em um loteamento que vende o sonho do refúgio perfeito, mas entrega casas idênticas e ruas desertas. Ao serem projetados para priorizar eficiência e escala, esses lugares já nascem sem uma lugaridade, ou seja, sem identidade própria.

A situação é ainda mais complicada quando a lugaridade é apagada de lugares que, em algum momento do tempo, já tiveram identidade territorial forte. É o que acontece em centros históricos, onde fachadas seculares são engolidas por letreiros chamativos de redes de farmácias e lojas de “Tudo por 10”. A “casca” da história permanece, mas a marca-lugar se esvai a cada novo comércio inaugurado.

Claro, não se pode ignorar que nem sempre há necessidade ou tempo de criar conexões profundas com esses lugares. Mas presumir que eles são “naturalmente” desprovidos desse potencial é um julgamento superficial que está custando caro para muitos empreendimentos e destinos, porque a questão central não é a ausência de significado, mas de intenção.

A diferença que muda o jogo

Ironicamente, quem nos ajuda a entender essa diferença é uma das maiores fontes inspiradoras para criação de lugares sem lugaridade do mundo: Hollywood.

Montagem com cenas dos filmes “O Terminal” (Tom Hanks segurando passagem no aeroporto) e “Amor sem Escalas” (George Clooney em saguão de check-in).

Em O Terminal, o personagem de Tom Hanks fica preso em um aeroporto, inicialmente retratado como um não-lugar por excelência. Forçado a habitá-lo, o protagonista transforma o espaço, através de pequenos rituais diários — como tomar banho, aprender um novo idioma e criar laços com funcionários — que não tem nada de “autênticos” em relação ao que se espera daquele espaço, mas que são profundamente intencionais. Ao fim do filme, o aeroporto deixa de ser um espaço “sem afeto” para se tornar o lugar do protagonista no mundo.

Já em Amor Sem Escalas, George Clooney interpreta a personificação da vida nesses ditos “não-lugares”. Ele passa mais tempo em aeroportos e quartos de hotel do que em casa; sua identidade é a própria transitoriedade. Tudo parece “autêntico” na superfície, porém o conflito do personagem revela que o problema nunca foi o aeroporto ou o hotel, mas a relação intencionalmente desapegada que ele mantinha com os espaços.

São dois lados da mesma moeda: ao contrário da ideia de não-lugar, lugares sem lugaridade não pressupõem uma sentença automática de vazio. A lição a ser tirada é que o potencial para criar significado em um espaço não depende do que ele é ou foi projetado para ser, mas do que fazemos com ele. E é aqui que entra o Place Branding, uma estratégia que pode transformar qualquer lugar, mesmo que inicialmente sem identidade, em um espaço repleto de significado e autenticidade.

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O problema é que não basta ser autêntico, precisa parecer que é autêntico

A origem dessa “pequena” confusão reside em um momento bastante singular da experiência humana. Em um mundo cada vez mais saturado de opções, como aponta o filósofo Gilles Lipovetsky, a busca por “ser si mesmo” se tornou a grande ética do nosso tempo, o zeitgeist do comportamento que está presente no que vestimos, comemos e, principalmente, nos lugares que habitamos e visitamos.

Traduzindo: os lugares viraram reféns da projeção dos anseios e desejos coletivos sobre a experiência urbana. Bairros planejados não vendem mais casas com bom custo-benefício, prometem “vida conectada à natureza”; destinos turísticos não se contentam mais com bom serviço de hospitalidade, oferecem pacotes de “imersão cultural”.

Na prática? Os empreendimentos continuam entregando o mesmo paisagismo padronizado de 20 anos atrás, e as experiências turísticas continuam genéricas e caricatas (apenas ficaram mais caras).

E nada disso acontece por má intenção. Muito pelo contrário, é somente o reflexo de anos errando o investimento de intenção na hora de planejar a marca-lugar. Afinal de contas, se o diagnóstico inicial — “não podemos ser um não-lugar!” — é incompleto, o remédio da “autenticidade” é, consequentemente, parte do mesmo problema.

Plataforma de metrô lotada com pessoas embarcando e desembarcando em horário de pico, refletindo a rotina urbana e os fluxos metropolitanos.

Mas se tudo é autêntico, então nada é autêntico

Quando a bússola da intenção aponta para a “autenticidade” como um produto em si, o resultado é a produção de lugares — o Placemaking, de fato — ainda mais vazios de significado. Do ponto de vista estético,podem até agradar. Contudo, no filtro da experiência, essa conta não fecha.

É um ciclo vicioso: o mercado identifica os códigos estéticos do que é “autêntico” — o tijolo aparente, a madeira de demolição, a história “resgatada” — e os replica à exaustão. O propósito original se perde e só resta a casca. A busca incessante por diferenciação competitiva está nos aprisionando em um paradoxo: quanto mais tentamos fugir do genérico, mais genéricos nos tornamos.

A grande ironia é que, no fim das contas, um aeroporto funcional, honesto em seu propósito de ser um espaço de passagem eficiente, se torna mais “autêntico” do que o bairro projetado para simular uma vivência que ele não é capaz de entregar. O aeroporto não promete uma experiência transformadora, mas tampouco sua função desabona a possibilidade de passageiros, tripulações e funcionários desenvolverem algum tipo de identificação com aquele lugar.

O problema, portanto, não está no afeto projetado, mas na obsessão por um ideal de autenticidade que, de tão replicado, se tornou uma miragem. Não vivemos uma crise de criatividade; vivemos uma crise de propósito.

Afinal, não existe não-lugar; existe espaço à espera de lugar, porque todo metro quadrado, quando habitado pela intenção humana, gera significado.

E, da mesma forma, não existe autenticidade; existe ação com intenção, porque a identificação não pode ser copiada pela estética, apenas sentida na experiência.

* * *

Referências:

Augé, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.

Lipovetsky, Gilles. La consagración de la autenticidad. Barcelona: Anagrama, 2024.

Relph, Edward. Place and Placelessness. Londres: Pion, 1976.

Tenho que terminar com o meu barbeiro.

cadeira giratória e o senso de pertencimento.

Tenho que terminar com o meu barbeiro. Essa frase tem ecoado na minha cabeça nos últimos meses com o mesmo peso de uma confissão de adultério, o que é um completo absurdo, afinal de contas, eu pago pelo serviço, ele executa. Uma transação capitalista, cotidiana e ordinária.

Mas em algum momento nos últimos cinco anos, essa troca comercial se tornou um relacionamento moderno e sincero, que envolve um rendez-vous por mês sem tempo para DR, apenas uma confiança cega em ficar com o rosto coberto por uma toalha quente enquanto a própria jugular está sob a lâmina afiada de outro homem.

O problema é que toda confiança gera intimidade. O Mika – sim, ele tem um nome, o que só piora a situação – guarda segredos que nem meu terapeuta conhece. Ele sabe, por exemplo, que embora meu fio de cabelo seja fino e liso, após atingir certo comprimento, começa a se rebelar de tal maneira que, de duas uma: ou vira um mullet de ator pornô dos anos 1970, ou me deixa igual o Beiçola.

Em um dos nossos encontros no ano passado, mostrei uma foto de um modelo genérico do Pinterest, alegando que estava na hora de dar uma mudada no visual. Ele, com a sutileza de um diplomata da ONU, disse: “Tipo Old Money, né? É um corte bacana, mas acho que a gente pode dar uma adaptada pra você ter menos trabalho no dia a dia”. Ele me salvou de mim mesmo.

Apesar de tudo isso, tenho que terminar com o meu barbeiro. Estou de mudança para outra cidade, e a tarefa de encontrar um sucessor para o Mika veio se transformando num problema complexo, até virar briefing de projeto na minha já sobrecarregada cabeça de pesquisador:

“Problemática: onde encontrar provedor de serviço capilar que minimize o risco de desastre estético e social, garantindo a continuidade da identidade do usuário?”

A primeira fase da pesquisa, exploratória, foi um desastre. Passei duas últimas semanas na futura nova cidade resolvendo pendências pré-mudança e, em momentos de desespero ou tédio, abri o Google Maps e digitei “barbearia perto de mim”. Por outro lado, durante minhas andanças, analisei friamente toda e qualquer barbearia que cruzou meu caminho, como um crítico de arte avaliando uma obra de gosto duvidoso. Encontrei basicamente duas opções.

A primeira eu chamei de Barber Shop: fachada pretensiosa, frequentemente com nome em inglês, porcelanato xadrez e uma estética que me faz perguntar se ali funciona uma barbearia, um coworking ou a casa do Caio Castro. Nessas, não me arrisquei nem olhar a tabela de preços, apenas conseguia pensar em que desculpas teria que dar para recusar a cerveja artesanal de 40 reais, ou na humilhação de não entender as diferenças entre os tipos de cera para bigode.

O segundo tipo, no extremo oposto desse espectro, chamei de Barbearia Vargas: pequenas salas comerciais, frequentemente no térreo ou sobreloja de edifícios antigos, onde senhores de meia-idade reclamam do casamento e trocam dicas sobre compra de sítio e troca de carro, enquanto uma TV posicionada perigosamente perto do teto transmite algum filme que ninguém assiste de verdade, mas que serve de trilha sonora para o debate sobre qual montadora perde menos valor na tabela FIPE.

Apesar de diferentes em essência, alma e caráter, o problema é que, independentemente da opção, eu sei que assim que eu puxar a porta de vidro, a conversa vai morrer, as cabeças vão virar e eu serei analisado dos pés à cabeça durante três longos segundos. Depois, vou explicar minha ideia para o candidato ao posto de novo barbeiro e receber como resposta um olhar de desprezo silencioso, seguido do único corte que eles dominam: máquina dois dos lados, tesoura em cima e um pós-barba com álcool suficiente para esterilizar um centro cirúrgico.

Na Barber Shop eu corro o risco de estourar o limite do cartão; na Vargas, as chances são de eu sair fantasiado de mim mesmo, só que vinte anos mais velho. Como escolher, então? Cheguei a imaginar alguns testes nos primeiros meses com considerações tabuladas numa planilha.

“Corte excelente, mas o cara não para de falar de política.” –  Risco altíssimo.

“Ótimo papo, mas pensa numa mão pesada.” – Risco existencial.

“Central, barato e rápido.” –  Risco de ser confundido com um recruta do exército.

Mas como todo bom – ou mau, dependendo do referencial – pesquisador, logo me veio o feeling de que algo de errado não estava certo. Oras, se meu cabelo não é produto e essa não é uma pesquisa de mercado, qual o sentido de um critério de análise da qualidade do barbeiro?

Foi aí que me lembrei de uma conversa fiada com o Mika, meses atrás, sobre um projeto musical que ele estava desenvolvendo. Ao sentar na cadeira no mês seguinte, perguntei: “E aí, Mika, gravou?”, ao que ele, todo orgulhoso, passou tanto tempo me mostrando e contando os detalhes das gravações que quase esqueceu de cortar meu cabelo.

A grande catarse deste evento masculino canônico chamado trocar de barbeiro é reconhecer que, antes de procurar um bom prestador de serviço, trata-se de encontrar o diferencial que não consta em nenhuma tabela de preços: a sensação de viver o pequeno ritual mensal que me ancora na cidade, que me faz sentir conhecido e que, de alguma maneira, me enraíza no lugar onde estou.

Em “A Invenção do Cotidiano”, Michel de Certeau diz que caminhar é ter falta de lugar, e o que é o cotidiano, senão viver em constante trânsito – de ideias, desejos e experiências? O que transforma uma cidade, qualquer cidade, em “casa” não é uma boa proposta de emprego, nem a sensação de segurança, nem um agitado semanário cultural, mas esses pequenos oásis de familiaridade – da portaria do prédio do seu amigo que libera sua entrada antes de você tocar o interfone à barbearia onde um cara entende o seu cabelo melhor do que você mesmo. São esses pontos de afeto que, mesmo aparentemente impessoais, nos fazem sentir que pertencemos.

Tenho que terminar com o meu barbeiro, e o corte que me preocupa não é o do cabelo, mas sim do laço com quem me fez sentir em casa durante muito tempo. Eis, enfim, a grande ironia: eu, que ganho a vida tentando entender como as pessoas se conectam com os lugares, agora me vejo no próprio papel de alguém buscando essa conexão.

Se você está pensando em como tornar seu lugar mais preparado para o futuro, com estratégia, identidade e participação real, podemos começar essa conversa. Saiba mais sobre a N/ Lugares Futuros ou entre em contato.

Além do Leão de Ouro: por que é melhor investir em ativações urbanas autênticas do que em marketing (literalmente) de fachada

Imagem conceitual gerada por IA representando os elementos essenciais do placemaking autêntico: pessoas, significado e atividades integrados em um espaço urbano vibrante, em contraste com abordagens superficiais de marketing de lugares.

Na semana passada, a publicidade brasileira foi surpreendida após a revelação – já comprovada e admitida pelas partes envolvidas – de que o case vencedor do Leão de Ouro no Festival de Cannes deste ano, na categoria “experiência de marca e ativação”, foi construído através de uma campanha de engajamento falsa. Mas o que isso tem a ver com lugares? 

A “campanha” envolveu uma ativação urbana durante o carnaval em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Banners estampando “Esse anúncio bancou o aluguel desse apê no carnaval” teriam sido pendurados em sacadas e fachadas de apartamentos alugados por turistas, levando a acreditar que a experiência envolvia uma integração orgânica da marca à celebração do carnaval e conexão autêntica com as pessoas e os lugares da festa.

A ilusão, porém, durou pouco. A “ativação” era uma encenação: números inflados e, principalmente, engajamento fake com as pessoas, que mais beirou a manipulação do que a conexão genuína. O resultado? Provável cassação do prêmio e crise de credibilidade não só para os envolvidos, mas para o setor de maneira geral.

Banners promocionais controversos em sacadas de apartamentos durante o carnaval brasileiro, que renderam um Leão de Ouro em Cannes mas revelaram-se como marketing de fachada com engajamento artificial, exemplificando ativações urbanas sem autenticidade.

Foto: Reprodução/vídeo apresentado em Cannes. Fonte: UOL 

Aqui na N/ Lugares Futuros a gente fala sobre Place Branding e não Place Marketing. Mas para além de diferenças conceituais e de abordagem, este caso especificamente enseja uma reflexão comum a marcas, agências, governos e enfim, todos aqueles que trabalham interagindo diretamente com lugares e pessoas: o verdadeiro valor de uma ativação urbana está no espetáculo efêmero, ou é sobre construir legado e referência? 

A pergunta é retórica e vocês já sabem a resposta, claro. Mas pensar um pouquinho sobre isso é fundamental para entender a longevidade e a relevância de qualquer iniciativa. Afinal de contas, ninguém quer investir tempo e energia em algo que se desfaz no primeiro sopro, certo?


A ilusão do impacto: quando ativações falham em gerar valor de marca

Embora não seja uma novidade disruptiva, usar espaços urbanos para comunicar mensagens de marca pode, sim, gerar inovação e valor – se executado da maneira correta, logicamente. 

Em Bruxelas, por exemplo, o Carrefour montou uma loja pop-up para fazer a ativação do seu marketplace de produtos de segunda mão – uma plataforma online exclusiva para vender e comprar coisas usadas. A ação, que foi a primeira do tipo no varejo de alimentos europeu, incentivou o desapego, promoveu consumo consciente e permitiu que compradores e vendedores acumulassem os famosos pontos para trocar em compras de mercado.

Mas por que uma das maiores supermercadistas do mundo incentiva a venda de produtos usados que ela mesma comercializa? A resposta é simples: porque não é sobre vender, mas se conectar com o público. E para isso, o Carrefour (o europeu, pelo menos) entendeu que a presença urbana era fundamental para fortalecer o vínculo com as pessoas e ratificar o posicionamento desejado.

Loja pop-up do Carrefour em Bruxelas para ativação do marketplace de produtos de segunda mão, demonstrando uma ativação urbana autêntica que conecta a marca com valores de sustentabilidade e engajamento comunitário real.

Foto: Divulgação da ativação urbana de Bruxelas. Fonte: Carrefour

Quando uma marca decide ativar um espaço urbano, ela não está apenas ocupando aquele lugar por tempo determinado, mas entrando na vida das pessoas e se envolvendo com suas rotinas, dores e desejos. Se essa entrada é feita com propósito, o impacto é duradouro. Mas se não há compromisso real com os envolvidos, o que resta é a sensação de estar enganando ou ter sido enganado – como os turistas que se depararam com banners dizendo que uma marca fez algo que ela, na verdade, não fez. 

Quem já leu o nosso Relatório de Tendências Urbanas ou explorou algum dos nossos serviços da Urbanscope sabe: diversos cases como este do Carrefour mostram que investir na relação entre lugares e marcas só é bom negócio se as experiências criadas ficarem na memória, gerarem conversa e, principalmente, deixarem alguma transformação positiva para as pessoas que se relacionam com o lugar. Ou seja, ativar espaços urbanos não é apenas sobre executar uma estratégia de marca – e, definitivamente, não é sobre fazer ação de marketing à lá Bangu. Com lugares, o buraco é mais embaixo.


Além do Hype: o poder transformador do Placemaking


A verdadeira ativação de espaços urbanos é muito mais do que gerar visibilidade imediata e burburinho. É um ato de Placemaking: o processo de transformação urbana que busca não apenas tornar os espaços mais atrativos, mas qualificá-los para que se tornem vibrantes, vivos e com muito mais utilidade para quem os usa. Não tem segredo, apenas método:

Lugares vibrantes = pessoas + significado + atividades.

A essa altura, você provavelmente já concorda comigo que pendurar banner, além de poluir visualmente a paisagem e, em alguns casos, infringir leis municipais, não produz engajamento efetivo nenhum com as pessoas do lugar – nem mesmo em caráter temporário. 

É claro que marcas de consumo não precisam necessariamente revitalizar uma praça para justificar uma ação estratégica. Contudo, seja carnaval ou procissão de santo, é necessário entender o que as pessoas estão celebrando e ajudá-las a tornar esse momento ainda mais memorável. Além de criar pertencimento, isso dá um empurrãozinho muito bem-vindo no comércio local. Talvez não seja suficiente para conquistar leões em Cannes, mas é tiro e queda para fidelizar pessoas.

Em outras palavras, para que um espaço seja ativado com propósito é preciso engajar as pessoas antes, durante e depois do processo. Quer entender como sua estratégia pode ressoar de verdade em um lugar? Converse com a comunidade. Ela é a verdadeira expert.

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O Legado da Autenticidade: Marcas e Lugares à Prova de Futuro

Eu não tenho dúvidas de que as partes envolvidas vão superar este episódio. Mas a lição que fica se estende a todo mundo: na era da desinformação e da desconfiança institucional em escala planetária, a autenticidade é um ativo estratégico inegociável (apesar de que, se tudo agora é autêntico, então nada mais é autêntico…, mas este é assunto para outro post). 

Seja uma marca, uma agência criativa ou um governo, todos têm uma escolha a fazer: continuar apostando em estratégias artificiais e rasas de exploração da imagem do lugar, ou investir no que realmente traduz a singularidade desse lugar? Antes de uma “campanha que deu errado”, o que este episódio revela é uma falha estrutural na compreensão do que gera valor em um mundo que exige transparência, propósito e conexão genuína.

Pense na sua cidade, no seu projeto, na sua marca. Você está investindo no próximo espetáculo, ou na construção de um legado para os lugares e as pessoas?

Promptable Places: a nova fronteira para cidades e regiões na era da inteligência artificial

Tela de um smartphone mostrando ícones de aplicativos de inteligência artificial, incluindo Character.AI, Copilot, Claude, Perplexity, Gemini, ChatGPT e DeepSeek

Quantas decisões sobre a experiência urbana são tomadas a partir de uma conversa com a inteligência artificial? Seja para planejar uma viagem, pesquisar um bairro para morar ou pedir recomendações sobre um novo restaurante, as pessoas recorrem — cada vez mais — às IAs generativas: ChatGPT, Copilot, DeepSeek e tantas outras que sugerem, comparam, descrevem e até recomendam “esse” ou “aquele” destino, em questão de segundos.  

Mas aqui está o ponto crucial: quando as IAs são perguntadas sobre um lugar, o que elas retornam? Uma resposta precisa, assertiva e nuançada? Ou um retrato genérico, por vezes desatualizado, que perpetua clichês, reforça estereótipos e frequentemente fornece informações erradas? 

Se você abrir uma aba nova no navegador e fizer uma consulta agora sobre o seu lugar, meu palpite é que cairá na segunda opção. 

Ok, vou ser sincero. Na verdade, não é um palpite. É uma constatação interna do nosso time da Urbanscope, que nos levou a uma conclusão ainda mais importante e urgente para cidades e regiões de todos os tamanhos: a necessidade de se tornarem Promptable Places. 

Neste artigo, vamos mostrar o que é essa nova competência e por que ela está se tornando fundamental e urgente na agenda urbana. 

O que são “Promptable Places”? 

Falamos da urgência, mas o que realmente é um Promptable Place? Em linhas gerais, entendemos que um lugar é “Promptable” ou promptável” quanto mais ele for capaz de ser compreendido, descrito e representado de maneira fiel por IAs generativas.  

Se você fez a consulta ao ChatGPT e ele soube responder a população exata ou citar os 5 principais pontos turísticos da sua cidade, não se empolgue; é o mínimo. Não estamos falando disso. 

A virada de chave é bastante simples: se as pessoas quiserem apenas obter a informação de maneira objetiva e passiva, continuarão utilizando o Google e as redes sociais para realizar suas buscas rotineiras de sempre. Contudo, a promessa e a performance das IAs generativas (gostando ou desconfiando delas, o que é um outro debate) estão conduzindo a experiência digital para um novo nível, que conecta a curiosidade do usuário a respostas hiper personalizadas, diálogos abertos e possibilidade de descobertas inesperadas. 

O que está em jogo não é mais apenas ter estratégias de promoção digital de um destino através de branded content ou tráfego orgânico e pago, por mais bem definidas que sejam. Estamos falando sobre uma nova possibilidade de comunicar um lugar através do seu pertencimento, história, oportunidades e aspirações.  

E se isso parece Black Mirror demais para você, bem, preciso lhe dizer que esse trem já partiu e estamos na era onde a primeira impressão – e, em muitos casos, a decisão final também – sobre inúmeros aspectos da vida cotidiana é influenciada (para dizer o mínimo) pelo “juízo” das máquinas, isto é, pelos algoritmos. 

Neste cenário, tornar-se “promptável” não será modismo passageiro, mas a nova fronteira da estratégia de posicionamento dos lugares. Condicionar a geração de respostas sobre um lugar com base em sua essência, identidade cultural e oportunidades únicas — aquilo que chamamos por aqui de singularidade — é garantir que as IAs generativas ajudem a construir e compartilhar uma percepção autêntica sobre a sua cidade ou região. 

Cartaz em superfície enferrujada com mensagens irônicas sobre inteligência artificial, incluindo o texto: 'Hello and welcome, I am an artificial intelligence. I wish I have some real intelligence & empathy like real people do. And funny? Forget about it.' acompanhado de ilustrações de um robô e o logotipo 'AI' em rosa.
Fonte: Unsplash 

Por que a “promptabilidade” importa agora?

Se você entendeu o conceito, talvez esteja se perguntando: por que isso deveria ser uma prioridade? Por que essa palavra estranha não é uma moda, mas uma questão urgente?  

Vamos aos dados: 

  1. A IA é o novo filtro de confiança em massa: segundo uma pesquisa da Zendesk, 68% dos consumidores globais têm maior probabilidade de interagir e confiar em IAs generativas “humanizadas”. Considerando que a reputação de um lugar pode ser formada ou destruída na velocidade de um prompt, certamente é difícil controlar a primeira impressão, mas é possível influenciar como a IA responde sobre um lugar.  
  2. Narrativas genéricas têm um custo (alto): um estudo da Adobe com 3 mil pessoas revelou que 72% dos entrevistados acreditam que, por mais poderosa que seja, a IA generativa nunca igualará a criatividade humana. Quem usa ferramentas como o ChatGPT sabe: elas repetem padrões de respostas genéricas como ninguém. Ou seja, quanto menos “promptável” o lugar, maior o risco de respostas rasas, mal interpretadas ou cheias de estereótipos. Genericidade gera ruído, e ruído custa caro. 
  3. Nossa tomada de decisão é cada vez mais algorítmica: um levantamento da consultoria Bain & Company apontou que 80% dos usuários de internet já usam textos de IA em pelo menos 40% de suas buscas no Google, o que representa uma queda de 25% no tráfego orgânico. De restaurantes a pontos turísticos, as escolhas e sugestões são moldadas cada vez mais por máquinas, em vez de humanos. Neste caso, convém perguntar: quem está definindo a narrativa do seu lugar hoje, a sua estratégia de posicionamento ou dados aleatórios que a IA encontra na internet? 
  4. O impacto é exponencial e difícil de reverter: o tradicional relatório anual de tendências da Accenture revelou que 62% dos consumidores globais priorizam confiança ao interagir com marcas — justamente no momento onde conteúdos gerados por IA inundam redes e buscas. O problema? Uma visão superficial ou distorcida criada por IA não se limita a uma resposta: ela se multiplica, viraliza e cria uma narrativa negativa que pode ser impossível de corrigir. Quando a autenticidade é questionada, remediar o estrago talvez não seja uma opção disponível.
Pessoa digitando em um laptop aberto na página inicial do ChatGPT, exibindo a pergunta 'What can I help with?' em modo escuro.
Fonte: Unsplash

Os cinco pilares de um promptable place 

A promptabilidade é crucial. Mas como, na prática, um lugar se torna mais “perguntável” de forma autêntica pela IA? Embora não exista fórmula mágica, identificamos cinco pilares fundamentais que sustentam essa capacidade:  

  1. Posicionamento de marca-lugar: quem é você na fila do pão? Qual é a singularidade do seu lugar? Por que ele é único no mundo? Isso precisa estar claro, bem definido e, acima de tudo, acessível. Não adianta a sua história ser incrível se ela está guardada em documentos arquivados ou, pior, é compartilhada entre poucos e não é apropriada por todos. A narrativa local precisa ser viva, fácil de encontrar e contada de forma que tanto humanos quanto algoritmos consigam entender. Sem uma estratégia de posicionamento à prova de futuro, as partes não se conectam. 
  2. A informação é rainha, mas precisa ser confiável e processável: IAs generativas como o ChatGPT se alimentam de dados abertos e disponíveis publicamente. Se os dados sobre o seu lugar são desatualizados, incompletos, escondidos em PDFs não pesquisáveis ou simplesmente incorretos, adivinha o que a IA vai retornar para um potencial visitante, morador ou investidor? A qualidade e a acessibilidade da informação são a espinha dorsal da promptabilidade. 
  3. As versões da sua história precisam “bater”: pouco adianta ter um novo logotipo, ou comunicação alinhada nas redes sociais se as avaliações no Trip Advisor, os posts de influenciadores, as notícias na mídia local e os comentários de moradores e turistas no Instagram contam histórias diferentes. A IA cruza informações de múltiplas fontes que, se forem inconsistentes, geram confusão na interpretação da máquina e diluem a mensagem. O posicionamento de marca-lugar precisa ecoar em todos os canais onde ele é requerido.  
  4. Ser promptável não é ser simplista: Lugares são complexos e cheios de camadas, histórias, interesses e sentimentos. Mas a IA, por padrão, sempre tende ao genérico. O desafio está em “ensinar” ou “mostrar” a singularidade. Quanto mais camadas de senso de pertencimento você fornecer, menor será a chance de uma resposta superficial. 
  5. Lugares mudam o tempo todo (e a IA precisa saber disso): sua cidade inaugurou um novo parque tecnológico? Recebeu uma chancela da UNESCO? As métricas de atração de talento estão em alta? Conte isso para o mundo, exaustivamente. Ser promptável também significa refletir essa evolução e não deixar a IA ficar presa a uma foto antiga do lugar. 

Importante: não se trata de um checklist, mas de áreas de atuação estratégica que exigem atenção contínua. Assim como a gestão de marca-lugar, a promptabilidade é um processo ininterrupto, não um projeto com data para acabar. 

Seu lugar está pronto para ser promptável? 

A forma como descobrimos, percebemos e escolhemos lugares está sendo radicalmente transformada pela inteligência artificial. Não é mais uma questão de “se”, nem de “quando”, mas de “como” a IA se tornará a principal porta de entrada para a experiência urbana. Ignorar essa realidade não é uma opção. 

Cidades, regiões e destinos que entenderem e agirem agora para garantir que sua identidade e oportunidades sejam fielmente representadas pelos algoritmos sairão na frente da construção ativa de sua reputação e relevância na nova economia da atenção digital, atraindo investimentos, talentos e visitantes alinhados com sua verdadeira essência. 

Tornar-se um Promptable Place exige visão de futuro, estratégia adaptativa e olhar atento aos cinco pilares. De narrativas claras a dados confiáveis, escaláveis e atualizáveis, o trabalho é contínuo – mas a recompensa também. 

O futuro da percepção e procura da sua cidade está sendo escrito agora, por prompts e respostas de IAs generativas. Mas o seu lugar está preparado para ser não apenas encontrado, como verdadeiramente compreendido e representado pela inteligência artificial?

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Se você está pensando em como tornar seu lugar mais preparado para o futuro, com estratégia, identidade e participação real, podemos começar essa conversa. Entre em contato.

Cristo não é a salvação: reflexões sobre marcas-lugar

Imagem do rosto do cristo redentor no rio de janeiro

O município gaúcho de Encantado, que recentemente inaugurou uma estátua de Cristo, maior que a do Rio de Janeiro, acredita que a grandiosidade da obra atrairá turistas e impulsionará a economia local. Exemplos como esse não são incomuns mundo afora. Durante muito anos acreditou-se que os marcos simbólicos, que vão de estátuas à arquitetura de “grife” seriam suficientes para transformar um lugar não só em um destino, mas como em uma “marca-lugar”.

Embora a inauguração de um marco como esse possa, de fato, chamar a atenção do público e da mídia em um primeiro momento, é um erro comum acreditar que o simples “hardware” – ou seja, a infraestrutura física – é capaz de, por si só, transformar um lugar. Há tempos venho reforçando que um lugar deve ser abordado a partir de três dimensões essenciais para seu fortalecimento e reconhecimento e que, para que um lugar ser percebido como desejado e memorável, é preciso muito mais do que monumentos imponentes, ou seja, é preciso ir além do Hardware.

O que é marca-lugar?

O place branding, expertise responsável pela criação de marcas-lugar, envolve uma série de práticas e estratégias para identificar, comunicar e reforçar a identidade única de uma cidade, região ou país. Ao contrário do que muitos pensam, ela não se resume a um logotipo, um slogan ou a uma grande obra arquitetônica. Defendo que a criação e gestão de uma marca-lugar deve ser centrada naquilo que a cidade realmente é e no que ela oferece de singular, para então conectar esses atributos com as expectativas e desejos de seus públicos prioritários. Essa “singularidade” é, por sua vez, o coração de uma marca-lugar, o sentimento, a ideia, o ideal, que aquele lugar é capaz de promover e entregar. Há muito tempo uma marca deixou de ser simplesmente uma promessa, e se transformou na entrega dessa promessa. É preciso falar e influenciar, mas principalmente, é preciso fazer.

Hardware, software e peopleware

Se uma marca-lugar é muito mais do que seus elementos construídos e atributos físicos, o que mais a compõe? No meu primeiro livro, “Place Branding” de quase dez anos atrás, abordo os lugares através de três dimensões fundamentais: Hardware, Software e Peopleware.

  1. Hardware: Refere-se às estruturas físicas – prédios, monumentos, parques, estradas, museus etc. Sem dúvida, o hardware é essencial para oferecer condições básicas de funcionamento e até para atrair um primeiro olhar de curiosos e visitantes.
  2. Software: Diz respeito ao que faz a cidade “acontecer”, suas atividades, sua programação de eventos, o uso ativo dos espaços públicos e, em última instância, as políticas e programas que ativam a cidade.
  3. Peopleware: É o fator humano que determina se a experiência de visita será marcante ou não. Esse conceito engloba a cultura local, o acolhimento, a hospitalidade. Sem as pessoas e suas histórias, nenhum monumento – por mais grandioso que seja – consegue criar uma identidade forte.

Um Hardware bem-feito, resumido a um monumento, pode até se transformar em um cartão postal, porém sem uma estratégia de desenvolvimento humano e cultural (o “peopleware”) e uma visão viva, ativa e integrada (o “software”), esse monumento corre o risco de se tornar apenas um fundo para fotos, sem reter os visitantes por tempo suficiente a ponto de impactar a economia local.

Exemplos que confirmam essa visão

Cidades de todo o mundo já investiram fortunas em projetos arquitetônicos ambiciosos que, depois de inaugurados, se tornaram verdadeiros “elefantes brancos” por falta de estratégias de uso, programação cultural ou articulação com a comunidade. No contexto brasileiro, há casos de cidades que construíram grandes estádios ou centros de convenção esperando atrair visitantes e fomentar o desenvolvimento. Contudo, muitos desses locais enfrentam dificuldades em se manter ao longo dos anos justamente por não terem estabelecido parcerias sólidas, calendários de eventos contínuos e uma identidade capaz de despertar o desejo de retorno. Ou seja, é preciso pensar o software antes do hardware.

Não são poucos os exemplos de lugares que se transformaram em pontos de atratividade sem serem pensados para isso originalmente, ou seja, passaram por uma ocupação espontânea (ou não), mas o fato é que se tornaram mais atrativos do que o projeto original reservava para eles. Beco do Batman em São Paulo, Tempelhof Field em Berlim, High Line em Nova Iorque, Feira do Largo da Ordem em Curitiba… exemplos não faltam para, em maior ou menor escala, provar o ponto de que o que acontece é tão, ou mais, importante do que onde acontece.

Um homem anda de longboard em uma pista de asfalto, sendo impulsionado por um pequeno paraquedas de tração com listras vermelhas, brancas e pretas. Ele usa capacete verde, mochila e roupas de frio. À esquerda da imagem, uma mulher empurra um carrinho de bebê, vestida com casaco preto e capuz. O cenário ao fundo mostra uma área aberta com grama e construções distantes sob um céu nublado.

Marca-lugar e identidade viva

Sempre reforço a ideia de que o desenvolvimento de uma marca-lugar forte depende de um alinhamento contínuo entre o que a cidade é, o que ela diz que é e o que as pessoas efetivamente experimentam ali. Dizer que uma cidade é acolhedora, inovadora ou culturalmente rica precisa corresponder a experiências reais para o visitante. Caso contrário, cria-se um descompasso que, no longo prazo, prejudica a reputação e a credibilidade do lugar criando um sentimento ainda pior que o desconhecimento, a frustração.

Nesse sentido, a inauguração de um monumento gigante pode servir como ponto de partida para colocar a cidade no mapa do turismo. Porém, sem boas práticas de governança, sem serviços de qualidade (hotéis, restaurantes, transporte, segurança) e, principalmente, sem a participação ativa da comunidade local, a estátua dificilmente se converterá em um ícone de um destino relevante e amado. Turistas do mundo todo são cada vez mais guiados pela autenticidade, um único “landmark” é facilmente superado por uma experiência mais ampla e autêntica, a gastronomia local, uma história bem contada, uma comunidade hospitaleira e a possibilidade de interagir com a cultura local.

Planejamento e participação da comunidade

Um dos pontos que sempre destaco é a necessidade de planejamento participativo. Quando a comunidade local se sente parte do processo de construção ou fortalecimento da marca-lugar, ela tende a cuidar melhor do patrimônio, a receber bem os visitantes e a desenvolver produtos e serviços ligados às tradições e saberes locais. Por outro lado, quando a iniciativa é pensada de forma impositiva, sem ouvir os anseios e ideias da população, corre-se o risco de criar algo artificial, sem conexão real com a história e a cultura do lugar.

Ou seja, a comunidade é essencial ao processo de construção de uma marca-lugar, não só como fonte primária de informação, mas principalmente como, termo que meio que saiu de moda, embaixadores do lugar. É preciso que a comunidade entenda realmente a sua função nesse ecossistema e o quanto ele depende e retorna para ela. Para isso, transparência nos processos de governança também é um item essencial que caminha lado-a-lado com o engajamento da comunidade.

Cidades que apostam em monumentos emblemáticos, mas negligenciam a participação efetiva da comunidade, e tudo o que acontece nela, tem maior propensão a cultivar um distanciamento entre moradores e visitantes, impactando profunda e determinantemente (de forma negativa, obviamente) a experiência dos visitantes e dificultar a consolidação do destino no imaginário coletivo.

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Conclusão

Para que um lugar se torne uma marca-lugar forte, não basta investir em grandes estruturas físicas. É fundamental trabalhar o “software” e “peopleware”, de forma integrada ao hardware (quando necessário) para que juntas, essas três dimensões possam oferecer experiências acolhedoras, únicas e autênticas. Um monumento pode sim ser a centelha de uma transformação positiva, mas isso só deverá acontecer se estiver aliado a uma estratégia ampla e sistêmica que valorize a história local e coloque as pessoas no centro do processo.

Portanto, quando uma cidade inaugura uma estátua de Cristo, maior que a do Rio, ela pode até chamar a atenção em um primeiro momento. Mas, se não houver esforço coletivo para gerar experiências marcantes, conteúdo cultural relevante e um verdadeiro sentimento de pertencimento, o monumento corre o risco de se tornar apenas, quando muito, mais uma “selfie” no roteiro de viagem, sem maior impacto no desenvolvimento local e sem fortalecer a marca-lugar a longo prazo. O verdadeiro desafio está em criar conexões humanas e culturais que façam o visitante querer voltar e o morador sentir orgulho do lugar em que vive.

Se você está pensando em como tornar seu lugar mais preparado para o futuro, com estratégia, identidade e participação real, podemos começar essa conversa. Saiba mais sobre a N/ Lugares Futuros ou entre em contato.

A Política da boa vizinhança 

Vista externa noturna de um prédio residencial com janelas de vidro iluminadas, mostrando detalhes da vida cotidiana em diversos apartamentos.

O que é ser um bom vizinho? 

É ser prestativo e deixar quem mora ao lado confortável, sabendo que algum dia poderá contar com seus préstimos? É salvar alguém de um perrengue inesperado, mesmo sem saber direito o nome da pessoa e tendo trocado apenas duas palavras? É ser educado e discreto a ponto de passar despercebido? Ou é ser aquele vizinho tão presente que já faz parte da família? 

Muitas são as atitudes que podem qualificar o que é ser um bom vizinho, mas uma regra com certeza é premissa para todas elas: na política da boa vizinhança, quem chega depois respeita quem veio primeiro. 

1. OXXO, O VIZINHO DE TODOS NÓS 

Loja de conveniência OXXO iluminada durante a noite, com destaque para o letreiro vermelho e branco e uma promoção de água mineral 2x$26 no topo da entrada.

Resolvi trazer neste artigo a reflexão sobre um vizinho um tanto espalhafatoso, polêmico e onipresente em vários bairros da cidade, pelo menos para quem mora no estado de São Paulo. 

A rede mexicana OXXO desembarcou no Brasil em 2020 e, neste ano, completa cinco anos de operação no país com um crescimento expressivo. 

Foi assim: de um dia para o outro, piscamos os olhos e a paisagem das nossas esquinas mudou. As fachadas vermelhas e amarelas alardearam: “Oi, somos seus novos vizinhos e somos muitos.” Não faltaram memes reforçando a mudança na paisagem. 

Meme humorístico com pintura clássica editada. Um alienígena com o logo da loja OXXO na cabeça é segurado por uma figura feminina, com os dizeres: “Meu Deus, uma esquina. Me solta que eu vou inaugurar”.

Desde a inauguração da primeira unidade em Campinas, no interior paulista, a marca expandiu numa velocidade quase que exponencial, com uma média de uma loja a cada dois dias.  

São 600 lojas espalhadas pelo estado de São Paulo, incluindo a capital, o interior e a Baixada Santista. O modelo de negócio, baseado em se fixar em lugares de grande concentração e fluxo de pessoas, começou com o marketing “aberto 24 horas por dia”, mas recentemente mudou a estratégia e, segundo os estrategistas de marketing, decidiu aproximar a marca da sua vizinhança.

A ideia de explicar a pronúncia “Ó quis sô” e aproximar a marca do dia a dia da vizinhança é boa, mas estratégias à parte, qual é o real impacto da proliferação de “Ó quis sôs” pelos bairros de São Paulo? 

Podemos elencar alguns dos principais: 

  • Fechamento de pequenos comércios: A concorrência com a OXXO pode levar ao fechamento de vendinhas e mercadinhos de bairro, que não conseguem competir com a estrutura e os preços da rede. No México, estimativas indicam que, a cada loja OXXO aberta, entre cinco e sete pequenos comércios fecham. 
  • Monocultura comercial e perda de identidade local: O crescimento massivo da OXXO pode levar à padronização do comércio, reduzindo a diversidade e descaracterizando bairros que antes tinham estabelecimentos únicos e familiares. 
  • Concorrência desleal: A OXXO se beneficia de poder de compra e logística eficiente, garantindo preços mais baixos e estoque variado, algo que pequenos comerciantes não conseguem igualar. Além disso, existem questionamentos sobre possíveis benefícios fiscais e subsídios que facilitam a rápida expansão da rede. 
  • Evasão de renda da comunidade: Diferente das vendinhas de bairro, que reinvestem o dinheiro localmente, a OXXO faz parte de um grande conglomerado (FEMSA), e o lucro gerado é direcionado para fora das comunidades onde opera. 
  • Impacto nas relações sociais: Os mercadinhos de bairro geralmente estabelecem laços com a vizinhança, oferecendo fiado, atendimento personalizado e um senso de comunidade. Com a substituição por lojas padronizadas e impessoais, essa dinâmica social é, sem dúvida, enfraquecida. 
  • Precarização das condições de trabalho: Relatos indicam que a OXXO opera com equipes reduzidas, exigindo que poucos funcionários desempenhem múltiplas funções, como caixa, reposição de estoque e limpeza. Além disso, há denúncias sobre baixos salários, alta rotatividade e falta de benefícios comparáveis aos de supermercados maiores, o que pode resultar em sobrecarga e instabilidade para os trabalhadores.
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2. PODERIA SER BEM DIFERENTE

Recentemente, escrevi um artigo sobre o pacote da hospitalidade japonesa e citei as Konbinis, as famosas lojas de conveniência.

Sem dúvida, elas são um guia prático de como a hospitalidade, a valorização da identidade local e a preservação da cultura do país podem se manifestar numa cidade. 

Se traçarmos um paralelo com a rede OXXO, podemos perceber de maneira bem clara o quanto elas, apesar de serem entendidas como lojas de conveniência, são completamente distintas. Isso fica claro no primeiro segundo em que entramos em cada uma delas. Nos “Ó quis sôs” da vida, o que encontramos são produtos genéricos de qualidade duvidosa e, o pior, por um preço igualável a qualquer hipermercado. Como diria minha mãe: “…que vantagem Maria leva?”. Trata-se puramente de uma relação de necessidade de emergência X presença física. Poderia ser o OXXO, poderia ser um posto de combustíveis, poderia ser uma vending machine, ou seja, a relação de vizinhança no sentido afetivo da palavra não existe. É só uma questão de praticidade momentânea, não há nenhum laço estabelecido. 

 3. VITALIDADE COMUNITÁRIA 

O comércio local desempenha um papel fundamental na vitalidade comunitária, influenciando diretamente a economia, a identidade cultural e a coesão social de uma região. Aqui na consultoria, tratamos esse tema como uma das 12 dimensões da cidade antifrágil. Falar de priorizar o comércio local é falar de: 

  • Fortalecimento da economia local: As vendinhas, padarias, quitandas, mercadinhos, empórios do bairro geram ganhos para toda a comunidade, contribuindo para a circulação de dinheiro dentro da região e estimulando o desenvolvimento econômico sustentável. 
  • Preservação da identidade cultural: O comércio local é um pilar para o fortalecimento da identidade comunitária. Ao apoiar negócios locais, os consumidores contribuem para a preservação das tradições, culturas e valores que definem a comunidade. Esses comércios oferecem produtos e serviços que refletem as particularidades regionais, diferenciando a comunidade de outras e fortalecendo o senso de pertencimento e coesão social. 
  • Criação de empregos e melhoria da qualidade de vida: Apoiar o comércio local é mais do que uma prática econômica; é um investimento na saúde e prosperidade da comunidade. Negócios locais são responsáveis por uma parcela significativa dos empregos formais, contribuindo para a redução do desemprego e melhoria da qualidade de vida dos moradores. 
  • Estímulo à inovação e sustentabilidade: Comerciantes locais, devido ao seu conhecimento íntimo da comunidade, são mais adaptáveis às necessidades específicas dos clientes. Essa proximidade permite a oferta de produtos e serviços inovadores e personalizados. Além disso, a valorização do comércio local pode promover práticas sustentáveis de produção e consumo, reduzindo a necessidade de transporte de mercadorias por longas distâncias e, consequentemente, a pegada de carbono. 
  • Fortalecimento do senso de pertencimento: Comerciantes locais frequentemente participam ativamente de eventos comunitários e contribuem para o fortalecimento dos laços e da convivência social. A presença de feiras livres, por exemplo, mantém viva a relação humana direta, essencial para a construção de uma comunidade unida e resiliente. 

Em síntese, o comércio local é uma das ferramentas mais poderosas para a saúde e vitalidade de uma comunidade. Ele impulsiona a economia, preserva a cultura, cria empregos, estimula a inovação e fortalece os laços sociais. 

Na pandemia, os pequenos comércios foram duramente afetados por não estarem preparados e equipados tecnologicamente para tempos de distanciamento compulsório. Muitos não aguentaram e tiveram que fechar as portas. Mas, por outro lado, os que resistiram tiveram um papel fundamental. Esses sim foram nossos verdadeiros vizinhos: nos acolheram, nos acalentaram e nos possibilitaram o exercício mínimo do senso de comunidade em tempos tão difíceis. 

O OXXO que me perdoe, mas nada substitui uma saudação calorosa do tipo: “Dona Mariane, seu cereal preferido chegou, tá separado aqui!” 

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Futuros das cidades e as mudanças climáticas: o impacto da retirada dos EUA do Acordo de Paris.   

Homem de terno escuro e gravata vermelha, sentado na mesa presidencial do Salão Oval da Casa Branca, com os braços cruzados e expressão séria. Ao fundo, cortinas douradas, a bandeira dos Estados Unidos e o selo presidencial.

Em janeiro de 2025, Trump anunciou novamente a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris, repetindo sua decisão de 2020, revertida por Biden após 77 dias. A nova retirada tem um grande impacto global. Sendo os EUA uma das maiores economias do mundo e um dos principais emissores de gases de efeito estufa (GEE), a decisão representa um retrocesso significativo nos esforços internacionais para conter a crise climática e impacta diretamente o futuro das cidades, uma vez que agrava problemas urbanos derivados das mudanças climáticas. 

Trump adota uma postura negacionista em relação às mudanças climáticas e acredita que o Acordo de Paris prejudica a economia dos EUA. Ele demonstra pouca preocupação com o aquecimento global, o que se reflete em sua política energética, fortemente baseada em fontes não renováveis, especialmente o petróleo. 

Sua abordagem traça um caminho para os EUA que vai na contramão da crescente preocupação global com a agenda ambiental. Os impactos das mudanças climáticas já são cada vez mais evidentes, manifestando-se em ondas de calor, chuvas intensas, enchentes e queimadas. 

O Acordo de Paris é um tratado internacional adotado em 2015 durante a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP21), em Paris, com o objetivo de combater as mudanças climáticas. Ele foi assinado por quase todos os países do mundo e representa um compromisso global para limitar o aumento da temperatura média do planeta bem abaixo de 2°C, preferencialmente 1,5°C, em relação aos níveis pré-industriais. 

O que é a COP?  

A Conferência das Partes (COP) é o principal evento global sobre mudanças climáticas, realizado anualmente sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). Durante a COP, líderes mundiais, cientistas, ONGs e o setor privado discutem estratégias e acordos para combater a crise climática. 

A próxima COP 30 será realizada no Brasil, na cidade de Belém, em 2025. Essa escolha tem grande relevância porque: 

  • Amazônia como epicentro climático: desempenha papel crucial na regulação climática global e na absorção de carbono. 
  • Pressão para políticas de conservação: reforça a necessidade de medidas mais eficazes para proteger a Amazônia e combater o desmatamento. 
  • Visibilidade internacional: destaca o Brasil nas discussões ambientais, impulsionando políticas públicas e investimentos em sustentabilidade. 

Mas por que o Acordo de Paris é importante? 

  • Reduz o impacto das mudanças climáticas: busca mitigar efeitos do aquecimento global, como secas, tempestades, elevação do nível do mar e perda de biodiversidade. 
  • Estabelece metas claras de redução de emissões: os países signatários devem apresentar Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), revisadas a cada cinco anos. Durante a COP 30, os países devem apresentar suas NDCs atualizadas. 
  • Fomenta o financiamento climático: prevê US$ 100 bilhões anuais para ajudar países em desenvolvimento a implementar políticas climáticas e desenvolver economias sustentáveis. 
  • Promove a transição para energias limpas: incentiva investimentos em energias renováveis, eficiência energética e tecnologias sustentáveis. 
  • Garante cooperação global: é um compromisso coletivo de quase todos os países, promovendo esforços conjuntos para reduzir emissões. 
  • Pressiona governos e empresas a agir: influencia políticas públicas e práticas empresariais, incentivando a adoção de estratégias sustentáveis e inovações ecológicas. 

Importante: o acordo não impõe obrigações, sendo responsabilidade de cada país estruturar suas políticas públicas para cumprir as NDCs acordadas. 

​​Relatório da Lacuna de Emissões do PNUMA 

O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) é a principal autoridade ambiental da ONU. Desde 2010, anualmente lança um documento sobre as emissões de GEE no globo. Suas análises foram essenciais para embasar as negociações internacionais que culminaram no Acordo de Paris durante a COP21

Atualmente analisa a diferença entre as emissões globais de GEE e as metas estabelecidas no Acordo de Paris, de limitar o aquecimento global a 1,5°C ou 2°C.  

O relatório de 2024 destaca que as emissões continuam em ascensão, colocando em risco as metas do acordo. Para limitar o aquecimento a 1,5°C, seria necessária uma redução de 42% até 2030 e 57% até 2035. Abaixo é destacado os principais emissores de gases de efeito estufa: 

Tabela que destaca os principais emissores de gases de efeito estufa
Fonte: PNUMA, 2024 

Apesar de alguns países terem reduzido suas emissões, os níveis globais ainda são elevados, podendo resultar em um aquecimento de até 3,1°C até o fim do século, com impactos devastadores, como ondas de calor extremas, aumento do nível do mar, secas severas e crises econômicas e ambientais. O relatório reforça a urgência de medidas mais ambiciosas para evitar danos irreversíveis. 

Então qual o impacto da saída dos EUA do Acordo de Paris 

Sendo o segundo maior emissor de GEE do mundo, sua saída reduz a pressão internacional por cortes de emissões, enfraquecendo ainda mais os esforços globais de mitigação climática, especialmente porque o Acordo de Paris é um compromisso voluntário, não uma obrigação.  

Isso pode ampliar a lacuna de emissões e dificultar ainda mais o alcance das metas climáticas estabelecidas. Ainda mais, com os EUA planejando intensificar os investimentos em fontes de energia não renováveis nos próximos anos, aumentando ainda mais as emissões de GEE. 

Diante da incerteza global e do agravamento das mudanças climáticas, torna-se cada dia mais indispensável pensar em cidades e territórios à prova de futuros. 

Como as cidades podem e devem agir? 

O impacto das mudanças climáticas já é visível em muitas cidades brasileiras, e a tendência é que esse cenário se agrave ainda mais, dado os rumos globais que o problema vem tomando, como a saída dos EUA do Acordo de Paris.  

Um exemplo recente é Voçoroca, no Maranhão, que decretou estado de calamidade pública devido ao avanço da erosão, ameaçando mais de 1.200 pessoas. Da mesma forma, as enchentes no Rio Grande do Sul e as ondas de calor recordes destacam a necessidade urgente de adaptação das cidades aos eventos climáticos extremos. Esses casos evidenciam como a falta de planejamento territorial e de infraestrutura resiliente pode agravar os impactos climáticos e colocar comunidades inteiras em risco. 

Imagem aérea mostra uma enorme cratera de erosão próxima a um bairro residencial com casas de telhado vermelho, evidenciando o risco geológico iminente para a comunidade.
Credito: www.folhape.com.br

Para enfrentar esses desafios, o primeiro passo é compreender como a rede de espaços públicos das cidades está ajudando ou Para enfrentar esses desafios, o primeiro passo é compreender como a rede de espaços públicos das cidades está ajudando ou piorando os impactos climáticos. Um exemplo inspirador vem de Andernach, na Alemanha, onde o espaço público foi transformado em uma cidade comestível, promovendo segurança alimentar e resiliência climática. Desde 2010, a cidade substituiu áreas verdes ornamentais por hortas e pomares acessíveis à população, reduzindo ilhas de calor, melhorando a permeabilidade do solo e tornando os espaços urbanos mais adaptáveis a eventos climáticos extremos. A iniciativa também fortalece a biodiversidade e incentiva a participação comunitária na gestão ambiental. 

Como podemos analisar se os espaços urbanos são à prova de futuros? 

Estamos desenvolvendo um documento com Critérios para Lugares à Prova de Futuro, que será disponibilizado ainda este ano, para auxiliar cidades na análise e adaptação de seus espaços urbanos. O documento parte de critérios urbanísticos e ambientais para analisar redes de espaços públicos e identificar deficiências, orientando cidades a avançarem em direção à antifragilidade. Um de seus eixos centrais é o de mudanças climáticas, que avalia como os espaços públicos podem promover resiliência e adaptação, uma vez que são peça-chave na mitigação dos impactos das mudanças climáticas. 

A ideia é não apenas diagnosticar, mas também demonstrar como os espaços públicos podem ser protagonistas na mitigação e adaptação às mudanças climáticas, ajudando a construir territórios mais equilibrados, diversos e antifrágeis. 


Fontes:  
PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE (PNUMA). Relatório sobre a Lacuna de Emissões 2024: Chega de calor… por favor! Nairobi: PNUMA, 2024. Disponível em: unep.org
Imagem1- Saul Loeb/AFP – Donald Trump 
Imagem2- Folha de Pernambuco.

Se você está pensando em como tornar seu lugar mais preparado para o futuro, com estratégia, identidade e participação real, podemos começar essa conversa. Saiba mais sobre a N/ Lugares Futuros ou entre em contato.