
Sim, eu sei e vocês sabem. Já prometi uma dúzia de vezes nunca mais abordar esse assunto que sempre imaginei esgotado, ao menos desde o esgotamento de “Place Branding” meu primeiro livro de 2016 que, felizmente, desapareceu das prateleiras alguns anos depois e hoje é disputado no mercado paralelo pela meia dúzia de três ou quatro estudantes que insistem, desavisados, em abordar em seus trabalhos de conclusão de curso o tema das marcas-lugar.
Mas então por que voltar nisso a essa altura do campeonato? Infelizmente motivos não faltam. O primeiro, e provavelmente o mais poderoso, é o apetite insaciável do mercado global, Brasil incluído obviamente, por termos e ideias que possam ser ruminados e digeridos ao seu bel-prazer, seja pela “atratividade” do termo, seja pela possibilidade de distorcê-lo ao seu bel-prazer sem que ninguém se desse conta.
O segundo motivo, uma inquietação antiga, mas verbalizada de forma mais ativa e ativista recentemente, é a nossa dificuldade em lidar com o termo anglófono de forma eficiente. Os problemas começam antes do place branding, com o termo maldito “branding”. Quando comecei essa jornada, era comum, ao colocarmos branding nos mecanismos de busca (então incipientes…Google se existia ninguém usava por aqui) aparecer um cavalo ou boi sendo marcado a ferro quente, algo que bizarramente também foi incorporado pelo universo das modificações corporais, que criou um evento traumático, quando em uma visita a Galeria do Rock em SP, vi estampado nos estúdios de tatuagem, que então dominavam a Galeria, a seguinte placa: “Fazemos Branding”. Ali eu percebi que teria uma dura batalha pela frente.
O óbvio se concretizou, tudo virou branding, assim como até hoje tudo virou design (até porque talvez tudo seja design mesmo, mas essa é outra encrenca para outro artigo). Design gráfico, publicidade, eventos, e claro, marketing, tudo isso virou branding.
E essa é a armadilha a qual estamos expostos quando usamos termos que não são nossos, afinal, dá para criticar alguém que não sabe que diabos é “branding”? é de comer esse negócio?
No recente glossário “Identidade, Lugares & Futuros” que soltamos pela consultoria e pode ser baixado aqui, e que carinhosamente chamamos de dicionário “placebrandês, placemakês, futurês/ português”, sugerimos algumas alternativas, ainda não comprovadas, para alguns termos, entre eles o place branding. O que saiu, foi o ainda sofrível aos ouvidos, talvez por décadas de colonização cultural, “Singularizando”, uma ideia que substituiria o “marcando lugares”, uma tradução igualmente sofrível e com muito mais ruído. Afinal singularizar é autoexplicativo.
Branding é o que mesmo?
Antes de falar de place branding propriamente, vamos voltar a Galeria do Rock. Afinal o que é branding? Explico, não é design gráfico, não é marca gráfica, não é publicidade, e embora muitos considerem academicamente o branding como parte do universo de conhecimento do marketing (eu tenho sérias restrições a essa ideia), não é marketing.
Branding é a identidade de uma marca, o que ela representa, e não como ela é representada graficamente, por exemplo. Branding está antes de tudo daquilo que é normalmente confundido com marca, é o ponto de partida, de emissão, não de chegada ou recepção. Branding constrói, ou como prefiro, identifica e reforça, a identidade de uma empresa, pessoa e por que não, lugar. Branding alinha, organiza, cria estratégia, unicidade, diferenciação, e o mais importante e diferenciador, vem de dentro.

Mas afinal, qual a diferença?
Se branding é identidade e vem de dentro, marketing, por sua vez, alinha oferta e demanda, e vem de fora. Isso vale tanto para o mercado corporativo quanto para os lugares.
Place Branding – Olha para dentro
Place Marketing – Olha para fora.
Existe um sem o outro? Até existe. Funciona bem? Não, não funciona bem. São a mesma coisa? Definitivamente não!
Mas se é tão simples assim essa diferença porque tanta dificuldade? Simples, porque olhar para dentro dá um trabalho danado e muita gente vem olhando para fora, dizendo que faz place branding.
O que é olhar para dentro?
Se você, assim como eu, já passou por anos de terapia e nem precisa ter sido freudiana-lacaniana, vai saber que olhar para dentro dói. Dói não só o processo, mas, principalmente, as descobertas ao longo do caminho. Sem querer desanimar ninguém, especialmente você, potencial cliente que, desavisadamente, lê esse artigo, processos sérios de place branding são doloridos, qualquer outro caminho é tratamento com Floral de Bach.
Olhar para dentro de um lugar é, necessariamente, engajar todos os envolvidos com ele, todos! Não é só workshop com o cliente, seja ele prefeitura, governo estadual e federal ou até mesmo empreendedores imobiliários, é engajar comunidade, e, engajar comunidade é, necessariamente, gerenciar conflito e ouvir uma boa dose daquilo que não se quer (que os governos/ clientes não queriam até então).
Atentem para o verbo engajar e não escutar. Confesso quando vejo o termo “escutar” me dá até um calafrio. Escutar é passivo demais, descompromissado demais, remete automaticamente as audiências públicas que não levam a lugar nenhum e por isso mesmo ninguém dá a menor bola.
Olhar para dentro é engajar, colaborar, cocriar. É criar compromisso, posição, e não transformar tudo em caixa de sugestões com papeizinhos que ninguém nunca lerá.

Como é esse negócio de engajar?
Por mais que se queira, não existe uma fórmula mágica para isso. Num recente podcast para o Instituto Caldeira contei como foi educativa a minha experiência com o engajamento da comunidade e, como tudo que eu achava que sabia, bom…eu achava.
Não existe fórmula para engajamento, existe sim, um conjunto de ferramentas disponíveis, e uma certeza de que engajar a comunidade e interessados é uma necessidade. No fim, engajamento comunitário é muito mais uma visão, um paradigma, do que um método específico.
O importante é lembrar sempre que não queremos escutar, queremos engajar, envolver, cocriar. Passaria um artigo inteiro explicando as diferenças entre esse termos, mas a melhor forma que descobri décadas atrás e que uso até hoje, é o Espectro da Participação do IAP2, que detalha a diferença entre os termos que compõem o engajamento.
Ou seja, use o método que for mais eficiente e amigável para o lugar trabalhado, tenha a humildade de saber que você não sabe, de antemão, o que funcionará ou não em determinado lugar, o que deu super certo num pode ser catastrófico em outro.
Mas sempre se pergunte: Estarei eu engajando ou simplesmente ouvindo? Isso é uma consulta ou uma cocriação? Essas são as questões que, de fato, farão diferença no seu processo.
Mas e o place marketing?
Aqui você já entendeu. Se não se olhou para dentro, se o que foi realizado foi todo olhando para fora, para o “mercado”, para os desejos e necessidades de governos e empresários, ou ainda, uma identidade visual, me desculpe, mas você fez qualquer coisa, menos place branding. E está tudo bem, desde que você use o termo certo para o processo certo. Não é incomum, em reuniões, e talvez, por isso mesmo eu seja proibido de participar da maioria delas, eu dizer para um possível cliente que ele não precisa da gente. Se o cliente já TEM CERTEZA de tudo, se ele SABE EXATAMENTE o que o lugar dele é e representa PARA TODO MUNDO, então ele não precisa de place branding, ele só precisa olhar para fora, já que ele, capaz de transitar por todas as bolhas e realidades do lugar, assim como mapear a percepção externa de audiências estratégicas, só precisa mesmo de divulgação e promoção.
Place Branding é para quem tem dúvidas, não para quem tem certezas. Claro, no mundo volátil de hoje, só os lugares pretensiosos ou tolos tem certeza do que quer que seja, principalmente porque, se não bastasse a inocência de achar que se sabe tudo de determinado lugar, saberá de tudo por quanto tempo? A realidade imutável de hoje será imutável amanhã ou depois de amanhã?

Incerteza não é um problema. É o ponto de partida.
Vivemos num mundo que deixou de ser previsível, linear e incremental há bastante tempo. Ainda assim, seguimos tratando cidades, territórios, regiões e países como se fossem projetos com briefing fechado, prazo definido e entrega final. Como se identidade fosse algo estático. Como se vocação fosse eterna. Como se o futuro fosse apenas uma extrapolação bem-comportada do passado recente.
Não é.
E é justamente aí que a confusão entre place branding e place marketing se torna não apenas conceitual, mas perigosa. Porque vender certezas em um mundo estruturalmente incerto é, no mínimo, irresponsável. No máximo, um desserviço ao próprio lugar.
Place branding sério não nasce da certeza. Nasce da dúvida bem formulada.
Dúvida sobre quem somos, mas também sobre quem podemos vir a ser.
Dúvida sobre o que nos trouxe até aqui, mas também sobre o que pode nos impedir de seguir adiante.
Dúvida sobre as narrativas dominantes, e abertura para narrativas emergentes, periféricas, incômodas.
É por isso que insistimos: place branding não é o fim do processo. É o início.
Mas hoje, isso não basta.
Porque olhar para dentro, engajar, cocriar e singularizar um lugar sem considerar os futuros possíveis é como fazer terapia ignorando que o paciente vai continuar vivendo no mundo real, com crises climáticas, colapsos institucionais, transformações tecnológicas, rearranjos demográficos e mudanças profundas de valores.
É aqui que entra o place strategic foresight.
Não como futurologia, não como previsão, não como exercício de imaginação descolada da realidade. Mas como prática estratégica de ampliação de horizonte, de leitura de sinais fracos, de mapeamento de incertezas críticas e, sobretudo, de construção de opcionalidades.
Enquanto o place marketing pergunta “como vender melhor o que já somos”,
o place branding pergunta “quem somos de fato”.
E o place strategic foresight acrescenta a pergunta que quase ninguém quer fazer:
quem precisamos nos tornar para continuar existindo com sentido?
Quando alinhados, place branding e place strategic foresight deixam de ser ferramentas e passam a ser postura. Uma postura que aceita que identidade não é essência fixa, mas processo vivo. Que entende que singularidade não é slogan, é tensão contínua. E que reconhece que o futuro não se controla, mas pode, sim, ser preparado, ensaiado, cultivado.
Lugares à prova de futuro não são os que têm todas as respostas.
São os que constroem boas perguntas, cedo o suficiente.
jurando que não voltaríamos a ele:
Place branding não é sobre promover ou comunicar.
É sobre criar sentido em meio à incerteza.
Todo o resto é marketing.






























