Dias (ainda) mais curtos, cidades (cada vez) mais longas? Ritmos urbanos, promessas anacrônicas e a disputa pelo futuro dos lugares

O tempo nas cidades passa cada vez mais rápido.

“Quem impõe um único ritmo a um lugar assina a sentença de morte da pluralidade.”

A Terra acelera e o relógio da cidade atrasa.

Dia 10 de julho foi o mais curto de 2025 até agora, 1,36ms menos do que 24 horas. Parece irrelevante, mas pelo visto, basta um soluço cronológico para chamar a atenção de cientistas e, sobretudo, do imaginário urbano: o que acontece quando o relógio atômico entra em conflito com o tempo vivido nas ruas?

“A cidade não é apenas uma organização espacial; é também uma construção temporal.”

Sim, novamente falarei do tempo, esse compositor de destinos, como já cantava Veloso, mas se até o planeta acelera, fica evidente o questionamento do tempo como linha de produção, linear e único. Já argumentei em artigo recente para o Connected Smart Cities, a existência de múltiplos relógios sobrepostos nas cidades, do mercado, da burocracia, do cuidado, da natureza, do planeta, e planejar lugares como se houvesse apenas um único e absoluto tempo é produzir uma violência invisível, porém impactante.

Cidade de 15 Minutos: promessa em ritmo único, incômodo em tempos variados

Talvez o maior exemplo de temporalidade explicita nas cidades, e o mais conhecido, seja o conceito de Carlos Moreno chamado “Cidade de 15 minutos”. O slogan é sedutor: tudo a quinze minutos de casa, a pé ou de bicicleta. Contudo, uma cidade não é metrônomo; é orquestra. O crono-urbanismo de Moreno supõe um tempo médio e universal, mas o tempo de quem?

Não é preciso muita imaginação para romper o perímetro “ideal” dos 900 segundos. A logística invisível que abastece o mercadinho do bairro continua rodando horas de caminhão; a valorização imobiliária dispara mais rápido do que a renda local com a expansão da malha de transporte público, expulsando quem garantia a vitalidade, e por que não, autenticidade.  Embora seja um crítico feroz a ideia de “qualificação = gentrificação”, é impossível negar sua existência, já vimos acontecer vezes demais para fingir que ela não está lá, a espreita, só esperando uma pequena oportunidade. Ao mesmo tempo que a concentração de trabalho, lazer, educação e moradia num raio tão curto seja quase idílica, principalmente ao pensarmos nas grandes cidades, essa forma “Kronológica” de pensar a cidade, ao invés de encurtar distâncias sociais, pode instalar um cronômetro de gentrificação.

Por que anacrônica?

Porque congela Kronós (tempo linear) acreditando que todos os demais ritmos se encaixarão. Mas o lugar também pulsa em Kairós (o instante propício) e Aiôn (a duração profunda que faz uma cultura enraizar-se). Ao impor compasso único, a cidade-relógio despreza a Singularidade do Lugar, que é a forma que trato a sobreposição de Essência, Alma e Caráter dos lugares, e envelhece rápido, pois pessoas, serviços, economia e planeta, dificilmente compartilham o mesmo relógio.

Urbanismo de “gravidade zero”: The Line

Outro exemplo de “crono-urbanismo”, mais contemporâneo e menos conhecido, provavelmente por sua origem não europeia, é o pretensioso The Line. Se a Cidade de 15 Minutos tenta comprimir o espaço, a Arábia Saudita aposta em anulá-lo. O The Line, é um imponente, e um tanto alienígena, corredor de 170 km, 500 m de altura e 200 m de largura onde nove milhões de habitantes viveriam empilhados entre dois espelhos paralelos. Nesse caso, o percurso some e o presente congela. É o chamado urbanismo de gravidade zero: comprimir o plano de solo, verticalizar funções e conectar tudo por um eixo longitudinal de alta capacidade. Na prática, isso cria um movimento diagonal (vertical + longitudinal) que pretende “achatar” tempos de acesso, como se a soma do elevador com o trem anulasse as fricções do percurso.

O efeito é pode parecer sedutor nas belas imagens e vídeos, em seu “showroom-manifesto” em Riade, na Arábia Saudita, uma experiência imersiva bastante impactante, mas podemos discutir se essa abordagem não altera mais do que a geometria, altera a temporalidade do lugar. Ao trocar rua, quarteirão e esquina por plataformas e portas de embarque, o tempo vivido (o do encontro, da pausa, do acaso) cede lugar ao tempo de transferência (espera, fila, transferência). A promessa de “cinco minutos” opera como contabilidade de cronômetro, não como experiência urbana. Ganha-se eficiência de Kronós e perde-se Kairós.

Há ainda a escala e a localização. Trata-se de uma megaestrutura em construção no noroeste saudita. Se internamente, tenta equalizar tempos; externamente, está a centenas de quilômetros dos principais polos regionais. Ou seja: por mais que comprima deslocamentos “dentro”, projeta tempos longos “fora” para cadeias de suprimento, serviços especializados, redes acadêmicas, circuitos culturais. Tudo supostamente deveria ser internalizado nessa “linha-nação” ou, ao aspirar abolir a gravidade do espaço, acabará por esbarrar na gravidade do lugar.

A narrativa temporal de “5, 15, 20 minutos” é um tempo-marca; o canteiro, o cotidiano é um tempo-mundo. Entre um e outro, mora uma pergunta central: igualar os tempos de acesso e deslocamento é o mesmo que qualificar os tempos do lugar? Se a resposta for não, e tudo me indica que seja, então o The Line nos serve não como um novo padrão universal, mas como experimento limite: mostra o que ganhamos (compacidade, baixa motorização, densidade técnica) e o que arriscamos perder (acaso, pluralidade temporal e vínculos com o lugar).

Antifragilidade temporal: quando o URBANSCANNER vira motor de foresight para lugares à prova de futuro

Antifragilidade, nos lugares, não é “aguentar o tranco”; é aprender com ele. No plano temporal, isso significa sair da obsessão por Kronós para orquestrar ritmos, acolher Kairós e Aiôn. O ponto de virada é tratar tempo como infraestrutura viva, e não como resíduo do planejamento. É aqui que a nossa tríade: Place Branding + Placemaking + Strategic Foresight se torna prática.

Enquanto a Antifragilidade temporal dá a direção (lugares que se fortalecem com eventos traumáticos), o método URBANSCANNER oferece uma lente que enxerga oito dimensões de tempos diferentes do mesmo lugar; e o Foresight cria o motor em ciclos contínuos de sentido → exploração→ decisão → experimentação → feedback.

Dimensões do Urbanscanner que analisa as dimensões dos drivers de mudança, sinais e tendências urbanas

Como isso opera, de verdade?

O Sentido (identidade e vocação): mapea conflitos de ritmos (mercado vs. comunidade; logística vs. lazer; turismo vs. cotidiano). Aqui a Singularidade do Lugar protege o que é não negociável.

A Decisão (opcionalidade): em vez de uma “solução ótima”, criar portfólios de opções temporais (janelas, turnos, usos reversíveis, redundâncias).

A Experimentação (projetos e experiências): intervenções temporais que testam novos ritmos (bibliotecas 24h, parques noturnos, mercados de madrugada).

Feedback (aprender rápido): indicadores temporais voltam ao início do ciclo, ajustando políticas e desenho.

URBANSCANNER como painel de observação dos tempos.

Voltando a santíssima Trindade da N/LF, podemos concluir que, enquanto o O Place Branding narra a polirritmia (o porquê, os símbolos, os pactos) e o Placemaking materializa ritmos (onde, quando, com quem), o Foresight garante ciclo longo (como o lugar aprende ao longo dos choques).

Ser lugar à prova de futuro não é caber em um único relógio, é governar relógios múltiplos. Quando o mundo nos rouba milissegundos, respondemos com durações que fazem sentido: não mais um tempo único para todos, mas vários tempos para que o lugar continue sendo um só.

Bibliografia

ESTEVES, Caio. Lugares Futuros: place branding, placemaking e strategic foresight para fortalecer lugares, cidades e países. Homo Urbanus, 2024.

ESTEVES, Caio. O tempo das cidades e os futuros possíveis. Connected Smart Cities, 2025.

IERS – International Earth Rotation and Reference Systems Service. Bulletin A – Earth Rotation Data. 2022.

MORENO, Carlos; ALLAM, Zaheer. “The 15-Minute City: Creating Sustainable and Inclusive Urban Environments.” Smart Cities, 2021.

“America First” x “Brasil Soberano”: Quem Ganha na Crise do Tarifaço?

Donald Trump e Lula usando bonés com frases patrióticas, em eventos distintos.

As notícias da última semana foram dominadas por uma postagem do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua rede social Truth Social, e pelos desdobramentos que se seguiram – além de outros ainda em curso. Em seguida, em uma carta dirigida ao presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, Trump anunciou a imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Em seu texto, alegou motivações políticas, citando o ex-presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF).

“A abertura da carta é política: ao justificar a elevação da tarifa sobre o Brasil, Trump citou Jair Bolsonaro e disse ser “uma vergonha internacional” o julgamento do ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).”

Fonte: G1

A medida desencadeou um misto de reações, não apenas por parte dos dois países envolvidos, mas também por outros atores, como a China, que se manifestou em defesa do Brasil. Desde que tomou posse, Trump vem ameaçando impor tarifas com percentuais variados a diversos países. Os decretos estão impactando não apenas as relações comerciais, mas também a percepção interna e externa do Brasil e dos EUA.

Em meio a esse choque de estratégias, surge a questão central: qual abordagem de poder está mais preparada para se adaptar ao complexo tabuleiro da geopolítica atual?

Decodificando o Poder: Hard, Soft e Smart Power

Para analisar qual país tem uma estratégia mais adaptável ao futuro geopolítico, é essencial primeiro compreender as ferramentas em jogo. Os conceitos de Hard, Soft e Smart Power, popularizados pelo cientista político Joseph Nye, oferecem uma maneira de avaliar as estratégias de cada nação.

  • Hard Power: É a forma mais antiga e direta de influência:a capacidade de um país de influenciar outros por meio do uso de força militar, diplomacia coercitiva e recursos econômicos, para obter resultados estratégicos. Israel exemplifica o Hard Power ao exercer sua influência no mundo com seu poderio militar, cujo sistema de defesa “Iron Dome” se tornou símbolo dessa estratégia.
  • Soft Power: É o poder da atração e da persuasão, não da coerção. Um país exerce influência sobre outros, por meio de atrativos culturais, ideológicos ou diplomáticos. A Coreia do Sul é um destaque contemporâneo do Soft Power, ao conquistar influência global com seus ativos culturais. Milhões de pessoas mundialmente consomem músicas “k-pop” e as novelas coreanas, os “doramas”.
  • Smart Power: É a habilidade mais sofisticada de todas: a combinação inteligente e contextual de Hard e Soft Power. Uma nação com Smart Power sabe quando usar a diplomacia e quando demonstrar força, adaptando sua abordagem para maximizar sua influência de forma eficaz. A China ilustra perfeitamente essa estratégia ao aliar seu impressionante crescimento militar e econômico com uma vasta influência cultural e diplomática.

Com a compreensão desses conceitos, podemos explorar com mais profundidade as percepções internas e externas do tarifaço entre EUA e Brasil.

Reunião do BRICS Brasil 2025 com delegações internacionais em mesa de conferência, sob o lema “Cooperating for an inclusive and sustainable world”.
FOTO: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Multilateralismo vs. Unilateralismo: Duas Abordagens de Política Externa

O Brasil é reconhecido internacionalmente por sua política externa comprometida com a diplomacia. Atualmente, o país concentra seus esforços em políticas de multilateralismo, diplomacia econômica e ativismo ambiental. Essa agenda o consolidou como uma das principais lideranças do Sul Global. A prova mais recente desse prestígio foi assumir a presidência rotativa dos BRICS em 2025, grupo cujo Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) é presidido pela ex-presidente brasileira Dilma Rouseff, reeleita para o cargo.

A defesa do multilateralismo é bem recebida pelos países emergentes, mas gera desconforto nas potências ocidentais tradicionais, que veem a transição de poder global como uma ameaça. O cenário que antes era dominado pelos Estados Unidos, agora está sofrendo uma reconfiguração para um mundo multipolar, com a ascensão de novos atores globais.

Os Estados Unidos, por sua vez, oscilaram entre unilateralismo e multilateralismo nas últimas décadas, mas quase sempre com viés intervencionista e protecionista, sob o discurso de país “líder do mundo livre”. Com Donald Trump, o país adota um rumo mais focado em hard power, com traços isolacionistas, saindo de acordos multilaterais e afastando parceiros geopolíticos.

A política externa atual é punitiva e ameaça a imagem histórica dos EUA como nação defensora do livre comércio e da democracia. Esse afastamento de relações comerciais diplomáticas está acelerando a busca por alternativas para o dólar em transações internacionais. O slogan “America First” funcionou internamente nas eleições que elegeram o atual presidente, mas falha no cenário externo, pois abandona aliados históricos e isola os EUA num mundo profundamente conectado. Essas medidas ameaçam a influência dos Estados Unidos e incentivam a reorganização do cenário comercial global.

Percepção Interna: Polarização vs. União

Apesar da polarização política que marca o Brasil nos últimos anos, o “tarifaço” do Trump desencadeou um fenômeno interessante: a união (ainda que temporária) de setores tradicionalmente antagônicos. A carta dos EUA, ao mencionar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro e o STF, tentou capitalizar sobre a polarização interna, mas o tiro saiu pela culatra. A agressão criou um consenso raro em defesa dos interesses econômicos nacionais.

“Entidades da indústria e da agropecuária brasileira manifestaram preocupação com o anúncio e disseram que as taxas ameaçam empregos. A Confederação Nacional da Indústria, por exemplo, afirmou que não há qualquer fato econômico que justifique uma medida desse tamanho.”

Fonte: G1

Os efeitos tarifários assustaram e mobilizaram os maiores agentes econômicos exportadores brasileiros. Setores como mineração e agropecuária, historicamente conservadores, viram-se diretamente afetados. Esse cenário contribuiu para um ambiente propício para o fortalecimento do discurso nacionalista, contra a ingerência estrangeira. O discurso de união em torno da soberania brasileira foi ecoado pelo governo, pelos veículos de mídia, e pela população nas redes sociais. Enquanto no Brasil a medida gerou união, nos EUA ela causou um aprofundamento da polarização. A política externa de Trump, por vezes descrita como caótica, alimenta uma crise de confiança institucional. As tarifas são celebradas por sua base eleitoral que vê o protecionismo como uma vitória, mas até aliados estão com dificuldades de compreender quais seriam os benefícios a longo prazo. A popularidade interna da guerra tarifária está em declínio, e aponta para um crescente isolamento.

Bandeira do Brasil formada com frutas e hortaliças em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília.
FOTO: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O Futuro Está na Adaptabilidade do Smart Power

O Hard Power dos Estados Unidos é a espinha dorsal de sua política externa há quase um século. Ele se manifesta não apenas através do maior orçamento militar do mundo e de sua presença em todos os continentes, mas também por meio de um robusto poder de coerção econômica. O domínio do dólar, o controle sobre o sistema financeiro internacional e a aplicação frequente de sanções e tarifas, como a que vemos agora contra o Brasil, são as ferramentas preferidas para impor sua vontade e disciplinar tanto adversários quanto aliados. É um poder imenso, mas que, quando usado de forma unilateral, gera ressentimento e resistência.

O Hard Power do Brasil, em contraste, não reside na força militar, mas em sua posição como uma superpotência de commodities e um pilar da segurança alimentar e ambiental do planeta. Sua capacidade de ser um dos maiores exportadores de alimentos, minérios e energia confere ao país uma alavancagem estrutural significativa. Ameaçar a economia brasileira significa ameaçar cadeias de suprimentos globais vitais. Esse poder não é usado para invadir ou coagir, mas como um lastro de importância estratégica que o torna um parceiro indispensável e, portanto, um ator que não pode ser facilmente isolado ou punido sem graves consequências globais.

Por décadas, o Soft Power dos EUA foi talvez seu ativo mais valioso. O “sonho americano” foi exportado globalmente através dos filmes de Hollywood, da música pop, da liderança de grandes marcas globais (como Coca-Cola e Apple), e do prestígio de suas universidades. Esses ativos projetaram valores de liberdade, inovação e oportunidade – o jeito americano de se viver – mantendo a imagem dos EUA no imaginário global.

O Soft Power do Brasil é multifacetado e crescente. Ele se projeta através de sua cultura vibrante e universalmente reconhecida — do Carnaval ao futebol, da Bossa Nova ao Funk. Seu cinema alcança novos patamares de prestígio, como visto com o filme “Ainda Estou Aqui”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Mais pragmaticamente, seu Soft Power é exercido através de sua diplomacia. A liderança brasileira em pautas ambientais, a defesa do multilateralismo, o modelo do SUS como referência em saúde pública e seu papel como voz influente do Sul Global conferem ao país uma autoridade moral e um poder de atração que geram alianças e confiança internacionais.

Teoricamente, os EUA possuem todos os ingredientes para um Smart Power eficaz. Contudo, a administração atual demonstra uma incapacidade de combinar seus vastos recursos de Hard e Soft Power. A estratégia “America First” é a antítese do Smart Power, pois emprega o Hard Power (“tarifaço”) de uma forma que destrói ativamente seu Soft Power (reputação como parceiro confiável e líder do livre comércio).

O Smart Power brasileiro surge como uma boa resposta ao Hard Power estadounidense. A resposta não é uma escalada simétrica, mas uma combinação inteligente de suas forças. Ele utiliza seu Hard Power econômico como um escudo, mobilizando setores produtivos internos e evidenciando os custos da ação americana para o próprio mercado global. Simultaneamente, aciona seu profundo Soft Power diplomático para construir uma coalizão de apoio, fortalecer laços com os BRICS e o Sul Global, e posicionar os EUA como um ator isolado e disruptivo. Essa capacidade de harmonizar poder econômico com credibilidade diplomática é a definição de Smart Power em ação.

Foto de Capa: The White House, United States Government Work / Ricardo Stuckert/PR

Juventude e futuros: Qual é a preocupação e como está sendo solucionada? 

“Vista aérea de um grupo de estudantes uniformizados caminhando em um ambiente escuro e urbano, com iluminação parcial no chão.

Quem nunca ouviu que os jovens são o futuro da nação? É uma fala muito comum, mas será que, ao fazer essa afirmação estamos pensando em quais são as possibilidades de futuro e se estamos preparando a juventude para eles?  Primeiro é importante entender quem compõem a juventude, quais lugares ocupam e como se percebem (ou são percebidos) na sociedade.  

A juventude é definida em três etapas: 1) jovem adolescente, são aqueles de 15 a 17 anos; 2) jovens jovens, de 18 a 24 anos; e por fim 3) jovens adultos, de 25 a 29 anos. Diferente da noção de criança e adolescente instituída pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em que é analisado o desenvolvimento psicológico dos indivíduos, a noção sobre juventude se relaciona também com aspectos sociais e econômicos, ou com a ideia de que são responsáveis e possuem certo nível de independência, ou seja, estão passando pelo processo de amadurecimento e reconhecimento de si na sociedade, ou seja, estão encontrando seu lugar no mundo. 

Mas de que maneira as guerras, crises econômicas e climáticas e todo o senso de escassez e incertezas afetam a juventude?  

“Com o avanço da pandemia, a situação se tornou ainda mais grave, ampliando os índices de jovens sem oportunidades de trabalho e também da evasão escolar, com uma parcela significativa da população sofrendo impactos em seu processo educacional. Todo este contexto tem forte influência no desenvolvimento da população jovem. Caso este cenário não seja revertido, o Brasil vive o risco de ter uma geração perdida e pode desperdiçar a oportunidade de alavancar o seu crescimento utilizando como força motriz a maior população de jovens da sua história” 

Abramo (2024) nos mostra que existe uma ausência de perspectiva de futuro para os jovens que é percebido pelos nem nem (nem estuda, nem trabalha). Basicamente, o que analisamos é um esgotamento da juventude que, se quer, consegue vislumbrar um futuro e sonhar com mudanças significativas e positivas em seu contexto social. 

Em contrapartida, existe uma parcela da juventude sendo capturada pelos conselhos de coachs e pela ideia de que o enriquecimento é fácil, que seguir com os estudos não é uma boa ideia, que o pensamento consegue transformar realidades e que as universidades não servem pra nada, afinal ninguém ganha dinheiro enquanto está estudando, mas gasta com mensalidade, materiais, alimentação, transporte etc. 

Ou seja, temos grupos opostos e que não dialogam. Assim como as políticas públicas pensadas para a juventude porque elas não conseguem compreender as mazelas, dúvidas e incertezas que os assolam. Pelo contrário, existe uma tentativa resolver os prováveis problemas do futuro com ideias do passado e do presente. 

E, de que maneira esse abismo geracional se apresenta? 

Infelizmente, a dificuldade de diálogo entre as gerações é muito comum porque existe um apego ao passado, a ideia de que a vida precisa continuar como sempre foi. Então quando as ideias e o modo de fazer se transformam ou se adaptam à novas necessidades há uma descrença. 

Desta maneira, a juventude consegue se colocar em diferentes lugares, mas não necessariamente é respeitada e têm suas opiniões validadas em todos eles, a ausência ou a pouca experiência prática em certas situações é utilizada como justificativa para deslegitimar as percepções e ideias dos jovens, porque a experiência o know-how pra algumas pessoas é mais importante e legítimo do que o conhecimento teórico ou científico. 

Por isso é tão comum, em alguns momentos ouvirmos que a juventude está perdida, que os jovens não trabalham como antes, que não se importam com nada ou o famoso “na minha época era diferente”, mas é importante ter em mente que as demandas atuais também são diferentes. 

Desejar que os comportamentos se repitam seria um grande erro! 

O excesso de telas, todas as crises (ambiental, climática e econômica) e todas as revoluções tecnológicas são exemplos de situações que se transformaram em problemas gravíssimos e afetam toda a população, em todas as idades. Essas mudanças evidenciam que as vivências, necessidades e problemas de hoje não são os mesmos do passado e tentar resolver os problemas dos futuros com soluções do passado não faz sentido, em especial para crianças e jovens que serão mais afetadas. 

A ausência da juventude na elaboração de projetos e políticas públicas escancaram a gravidade da situação. 

Temos como exemplo a Reforma no Ensino Médio, uma proposta muito interessante porque tenta aproximar a escola e seus conhecimentos das vivências e realidades da juventude. Entretanto, as disciplinas eletivas não geram interesse na juventude, os profissionais da educação não receberam o preparo pras disciplinas que são ministradas, a carga horária não se adequa a realidade de jovens da escola pública, existe uma diminuição da carga horária das disciplinas ‘normais’ e em cidades pequenas com uma ou duas escolas de ensino médio não há poder de escolha. 

Sendo assim, o abismo com a juventude aumentou. 

Por fim, é importante pensar a juventude e os futuros com um olhar ampliado. É essencial que tenhamos em mente que os futuros serão habitados mais pela juventude que por nós, portanto eles precisam, pelo menos, idealizar as múltiplas possibilidades que os aguardam e ser parte atuante nos processos. 

Referências: ABRAMO, Helena. Políticas Públicas de Juventude: reconstrução em pauta. Mapas e caminhos de políticas públicas de juventude: qual é a bússola de reconstrução? Ação Educativa, São Paulo, 2024 
Foto de Capa: Pixabay.

A Geração Beta vem aí: como criar lugares à prova de futuro para eles?

Geração Beta usando óculos de Realidade Aumentada em ambiente urbano futurista, ilustrando a fusão entre mundo físico e digital nas cidades do futuro

A partir de 2025, testemunharemos a emergência de uma nova geração que desafiará tudo o que entendemos sobre comportamento urbano, identidade e pertencimento: a Geração Beta. Nascidos entre 2025 e 2039, estes indivíduos constituirão 16% da população global até 2035 e não apenas serão os responsáveis por conduzir o mundo para o próximo século, mas também os primeiros a viver em um mundo onde a distinção entre físico e digital simplesmente não existirá.

Imagine um cotidiano em que:

· A inteligência artificial e a realidade aumentada são tão naturais quanto uma ligação telefônica.

· Viver simultaneamente nos mundos físico e digital é a norma, não a exceção.

· As interações sociais fluem naturalmente entre espaços tangíveis e virtuais sem nenhuma sensação de ruptura.

Diante deste cenário, uma pergunta crucial se impõe: que tipos de lugares precisamos construir para acolher essas novas formas de interação e pertencimento de uma geração que habitará simultaneamente o físico e o digital?

Do analógico ao digital: rumo à Geração Beta

Como um millennial nascido nos anos 80, minha experiência de vida sempre abrangeu duas realidades complementares, porém distintas. A infância foi 100% analógica: para conversar com amigos, era preciso combinar um encontro com alguma antecedência ou tentar a sorte de ir, meio de surpresa, à casa de alguém e tocar a campainha. Já enquanto adolescente, testemunhei e fiz parte da revolução das comunicações e das redes sociais: através de Orkut, MSN e até mesmo mensagens SMS, era possível socializar por horas sem sair de casa ou marcar encontros presenciais com maior assertividade e precisão de tempo.

A revolução da internet foi determinante para a minha geração, mas a linha entre o físico e o virtual sempre foi clara. Agora, para a Geração Beta, essa distinção será obsoleta. Navegar entre realidades será tão instintivo quanto um pássaro alterna o voar e o pousar.

Esta mudança não diminui a importância do espaço físico. Pelo contrário, adiciona novas camadas à nossa compreensão de identidade e comunidade. A questão é: como preparar nossos ambientes urbanos para essa nova realidade?

4 Cenários para Cidades da Geração Beta

É uma pergunta impossível de responder de maneira prescritiva, porque como dizemos por aqui, pensar no futuro singular é pensar no passado. No entanto, podemos explorar alguns cenários bastante iminentes, com base em tudo que sabemos por enquanto. Longe de ser uma lista definitiva, aqui estão algumas possibilidades principais:

1. Flexibilidade como Norma

Esqueça a hegemonia da funcionalidade do espaço. Em vez disso, os lugares serão definidos por sua capacidade adaptativa, ou seja, pela habilidade de se reinventar continuamente, conforme as demandas das comunidades que os habitam. Parece algo muito disruptivo agora, mas para os Betas, esse será o mínimo esperado de um espaço verdadeiramente útil e relevante: menos funções pré-determinadas e mais possibilidades de uso e exploração.

2. Cotidiano Aumentado

Se a premissa de comportamento da Geração Beta é transitar fluidamente entre os mundos físico e digital, precisamos assumir de partida que as experiências em realidade aumentada estarão muito além de smart glasses individuais e totens interativos em espaços públicos: as cidades deverão responder em tempo real às necessidades, emoções e interações de seus moradores e visitantes. A questão não é se viveremos em um mundo aumentado, mas como utilizaremos esta tecnologia para criar espaços tão responsivos quanto as possibilidades digitais que os envolverão.

3. Pertencimento Desterritorializado

Os Betas serão a primeira geração para quem o senso de pertencimento não poderá ser medido apenas pelo limite territorial do bairro e da cidade. O melhor amigo poderá estar a um oceano de distância física e, no entanto, ser tão parte do dia a dia quanto um colega de turma da escola presencial (se é que ela ainda vai existir nos moldes como a conhecemos hoje…). Essa mudança de paradigma incide em, desde já, pensar nos lugares menos como pontos num mapa e mais como destinos de comunidades intencionais.

4. Sustentabilidade Integrada

Quando os Betas chegarem à fase adulta, uma das pautas globais em alta será a comemoração do centenário da Conferência de Estocolmo (1972), considerada o primeiro grande fórum de discussão ambiental da história. Até lá, a sustentabilidade não será mais um ideal em debate, mas a própria essência do modo de vida urbano. Para essa geração, a incorporação de tecnologias regenerativas nos ambientes construídos deverá ser tão óbvia quando a necessidade de um projeto hidráulico ou elétrico.

O segredo reside em ser adaptável aos futuros incertos

Mas, se todos esses cenários são incertos por definição, a própria ideia de preparar lugares para lidar com futuros diferentes não é paradoxal?

Não, porque como dissemos, o objetivo não é prever ou prescrever cada detalhe do futuro (aliás, o nome disso é futurologia, e definitivamente essa não é a especialidade da casa!!!), mas trabalhar a capacidade de adaptação e antecipação do lugar frente às incertezas.

Mais do que a promessa de uma mudança demográfica e comportamental, a chegada da Geração Beta é uma oportunidade e um convite para reavaliarmos como estamos projetando e interagindo com os lugares que habitamos. Quanto mais cedo um bairro, cidade ou região entender sua posição neste processo e agir, mais preparado estará para lidar com as muitas incertezas e crises que aparecerão pelo caminho.

Foto de Capa: Pixabay.