Como falar de futuros numa sociedade que não consegue se relacionar com o passado?

Caio Esteves  12.24

Maio de 2024 foi marcado por uma demonstração inequívoca das mudanças climáticas, quando vimos, atônitos e impotentes, o Rio Grande do Sul ser engolido pelas águas. Pessoas perderam tudo, seus bens, suas casas, suas vidas. Ainda abalados pelo momento trágico do Sul do país, corremos o risco de achar que se trata de um evento isolado, imprevisível, ou ainda, como li recentemente, que o futuro tinha chegado ao Rio Grande do Sul, ledo engano.

Não foi a primeira, e, infelizmente, não será a última vez que no deparamos com eventos climáticos extremos. Muitos especialistas ouvidos pelos mais diferentes órgãos de imprensa são categóricos ao enfatizar que esse tipo de evento (não necessariamente chuvas e inundações) será ainda mais constante, no que vem sendo chamado de “novo normal do clima” ou “novo normal climático”. Me incomoda o fato de não só acharmos “normal”, mas principalmente o fato de acharmos “novo”. Nutro uma profunda desconfiança pelo termo “novo”. Com poucas exceções ele serve como maquiagem para ideias e práticas comuns ou ultrapassadas, que precisam passar por um “reposicionamento”. Não precisamos nem voltar a 1941, no que seria até esse ano a maior enchente de Porto Alegre, basta voltarmos a 2023, onde eventos climáticos extremos causaram a morte de 75 pessoas, também no Rio Grande do Sul. Ou seja, nada disso é novo (nem mesmo a recorrência) ou normal, ou ainda local. O mundo muda constantemente, por óbvio, o clima por sua vez acompanha essas mudanças no chamado antropoceno, era geológica caracterizada pelo impacto da humanidade na natureza, ou, de acordo com o criador do termo, Paul Crutzen:

“Considerando esses e vários outros crescentes impactos das atividades humanas na terra e na atmosfera, que acontecem em todas as escalas possíveis – inclusive global –, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central da humanidade na geologia e na ecologia propondo o uso do termo Antropoceno para a época geológica atual.”

A data de início do antropoceno não é consenso entre pesquisadores, que divergem da origem – período que deixamos a vida nômade e começamos a nos fixar nos primeiros vilarejos –, até outros que acreditam que tudo começou com a revolução industrial, ou seja, essas mudanças não são de hoje.

Mas se nada disso é novo, por que sofremos os impactos destruidores desses eventos até hoje? Não existe uma única resposta para isso, porém existem várias pistas em diversas esferas diferentes, que passam pela incapacidade da gestão pública de pensar de forma estratégica no longo prazo, pela nossa visão de cidade, pela ideia que defende que sustentabilidade e progresso são conceitos antagônicos, chegando ao extremo do negacionismo climático que não só nega as mudanças climáticas como constantemente inventa alguma teoria da conspiração absurda pra justificar o evento, que embora hilárias de tão ridículas, causam um enorme desserviço aos desavisados.

Mas e o futuro nisso tudo?

A Lilia Porto, aqui do O Futuro das Coisas, no prefácio do meu livro mais recente, usou um termo que fez muito sentido, e explica muito do momento atual extremo, “presentismo”, ou nossa amarra nos eventos de hoje, do presente. Lembrei da Lilia em absolutamente todas as diversas entrevistas que dei durante esse mês sombrio, justamente por ter lançado um livro sobre o futuro dos lugares semanas antes de começar esse pesadelo. Na quase totalidade das entrevistas a preocupação era com a reconstrução, o que fazer, como reorganizar a infraestrutura, ou seja, quase sempre o ponto de partida era o hardware. Claro que diante de tragédias essa é uma preocupação absolutamente legítima, mas será que devemos nos preocupar “só” com isso?” Minha resposta era, e continua sendo, não.

Fui obrigado a criar uma ordem de atuação para minimamente contribuir para o debate em que o ponto de partida era o ontem, porque não viram, porque não fizeram, porque deixaram e assim por diante. O ponto de partida, embora incrivelmente óbvio, parecia esquecido, era preciso dar toda a assistência às pessoas antes de qualquer outro movimento. Abrigo, comida, atendimento médico, psicológico, roupas, produtos de higiene, ou seja, condições mínimas de dignidade.

Mas isso não é tão simples quanto pode parecer, ainda que o Estado conte com toda a ajuda que vem recebendo do país inteiro, e aqui fica o apelo, se você ainda não ajudou, faça isso o quanto antes, da forma que puder, o item abrigo merece particular atenção. Quadras de esportes e escolas não foram feitos para abrigar pessoas (guarde essa informação) e é preciso entender que levará bastante tempo para reconstruir as cidades afetadas. Uma comparação feita constantemente é com o furacão Katrina que devastou Nova Orleans em 2005. Também em termos comparativos, Nova Orleans demorou 10 anos para se reerguer. Isso significa que, provavelmente, outros eventos climáticos extremos ocorrerão antes da reconstrução total das cidades, portanto é preciso pensar em formas de abrigar as pessoas durante o processo de reconstrução, em projetos que, por si só, sejam resistentes a novas investidas do clima extremo.

A próxima etapa que elenquei, é um conjunto de duas frentes que ocorrem de forma paralela, uma olhando para o hoje e outra para o amanhã, ou melhor, os amanhãs. Olhar para o presente, após as condições mínimas de vida, é olhar para a reconstrução propriamente dita.

Reconstruir como?

Alguém disse certa vez que repetir a mesma ação esperando diferentes resultados seria a definição de loucura. É importante entendermos o que mudou nas últimas décadas e aplicar o conhecimento adquirido na reconstrução das cidades; por mais que o tempo não esteja a nosso favor, é essencial pensarmos sobre os novos modelos de cidade, a nova visão de cidade que se quer. Antes que alguém me ataque de academicismos frente ao desastre, já adianto que essa discussão também já está em curso e, portanto, também não é uma solução vinda do futuro.

Adaptabilidade e dinamismo são prerrogativas da cidade antifrágil, virtudes que se aplicam não só ao pensarmos no clima, mas nas diferentes dimensões que impactam a cidade.

As cidades esponja, são exemplos dessa adaptabilidade. Esse modelo de cidade, criado por Kongjian Yu, tomou conta dos noticiários por motivos óbvios, a ideia central da cidade esponja é justamente a absorção do excesso de água a partir de várias ferramentas e sistemas. Mas uma característica marcante na ideia de cidades esponja é justamente a adaptabilidade. Quadras-piscina-parques alagáveis são alguns dos bons exemplos de adaptabilidade no que se refere a esse modelo de cidade. As quadras/ praças piscina, por exemplo, são utilizadas para esporte e lazer e ao início/ previsão de chuvas, transformam-se em grandes reservatórios, que uma vez escoados, voltam a se comportar como praças e quadras. Os parques alagáveis também são uma ideia adaptável, com passarelas podem ser utilizados durante os períodos de alagamento e posteriormente utilizados em toda a sua extensão, também no nível do solo.

Será que a chuva excessiva ou a seca persistente são os únicos desafios climáticos que nos aguardam?

Aqui, chegamos finalmente na exploração dos futuros. Me parece inevitável olhar para a pluralidade dos futuros frente a necessidade da reconstrução das cidades. Sim, ao partirmos da adaptabilidade, diminuiremos os riscos de novas tragédias, mas a pergunta talvez seja, adaptabilidade a que? Quem responder, “a chuvas”, se restringiu a um acontecimento do passado, que pode sim se repetir, mas será que só sofreremos de enchentes? Mesmo no Rio Grande do Sul, o desafio será lidar com o excesso de água? Sempre?

Quem não se lembra do evento extremo em Dubai, que registrou em abril de 2024, em 24 horas o equivalente a um ano de chuvas, deixando a cidade alagada, na maior intensidade de chuvas desde o começo das medições 75 anos atrás. Alguém consegue imaginar Dubai embaixo d’água? Nem sempre o histórico de previsões se sustenta, ou seja, nem sempre, ou quase nunca, soluções do passado dão conta de resolver problemas que venham do futuro, mesmo esse não sendo o caso do Rio Grande do Sul. Ao pensarmos em reconstrução é preciso pensar além do que está dado e isso aponta para o que considero a terceira etapa desse processo de reconstrução. Primeiro, a qualidade mínima de vida. Em segundo, uma abordagem de presente, reconstruindo as cidades, de forma adaptável e dinâmica, ainda que de forma provisória, e paralelamente, a exploração dos diferentes futuros, não só referentes aos desafios climáticos, mas também econômicos, sociais, ambientais em amplo espectro. Essa exploração pode contribuir de forma significativa para a reconstrução definitiva (entendendo que no mundo contemporâneo ser definitivo deixou de ser uma qualidade) das cidades afetadas e ainda uma forma de antecipar os desafios das diferentes cidades de um país continental como o nosso.

Soluções extremas para tempos extremos

O exemplo mais extremo de adaptação climática é, certamente, o pequeno país-arquipélago de Tuvalu, no Pacífico-Sul, que corre o risco de desaparecer com o aumento do nível dos oceanos. Por mais que se fale no hardware, na reconstrução das casas, dos edifícios, um dos principais problemas do abrigamento e da realocação é a perda da memória. Shakespeare diria “O que é a cidade senão as pessoas?” e emendo com “O que são as pessoas sem suas memórias?” Os lares, os lugares têm um grande efeito na construção do imaginário e da memória, tanto individual como coletiva. O projeto “Futuro Agora” de Tuvalu propõe a migração da nação para a nuvem, ao criar uma versão digital de si mesmo, transferindo uma existência física para uma virtual.

Numa eventual diáspora completa, esse seria o lugar em que os tuvaluanos poderiam “retornar” ao seu país, ou, até mesmo, para os nascidos no “exílio”, possam aprender sobre ele. Tuvalu quer ‘migrar’ para o metaverso para sobreviver ao clima (apublica.org)

Além da manutenção do reconhecimento da soberania de Tuvalu como país e da influência na conscientização das outras nações sobre as mudanças climáticas, o projeto pretende preservar a cultura do povo, mantida no ambiente virtual.

O projeto de Tuvalu aponta para um aspecto importante de qualquer reconstrução ou realocação, aspecto que vai muito além de cimento ou tijolos, de segurança física. Mudar as pessoas de lugar, reconstruindo ou não, envolve uma dimensão emocional, algo que Simone Weil chamou de enraizamento e que detalhei em artigo para O Futuro das Coisas, e que complementa esse artigo no que se refere as características culturais envolvidas no movimento de grandes populações.

“O enraizamento, ou melhor, o reenraizamento, ouso dizer, se dá a partir da cultura. Após a lente da necessidade física é preciso usar a lente da cultura, da identidade.” Esteves, Caio

Se o reenraizamento se dá a partir da cultura e identidade, é essencial que a comunidade atingida seja ouvida no processo de reconstrução e realocação. Todos presenciamos a importância da vitalidade comunitária, nas imagens e relatos de centenas de salvamentos e resgates nas últimas semanas. Essa comunidade, ainda que sofrida, impactada profundamente pela tragédia recente, é a principal interessada na reconstrução e por isso mesmo, a única fonte viável de informação sobre a cultura local, seus arranjos, suas atividades e necessidades.

O futuro se construirá a partir do presente e ignorar as características culturais e identitárias da comunidade seria ignorar o seu próprio direito a um futuro digno e legítimo. Futuros são coletivos, cocriados e vão muito além de tijolos, cimento ou concreto. Reconstruir cidades não é só reconstruir prédios, é reconstruir a própria comunidade, mais forte, mais igualitária, mais preparada para enfrentar os desafios que lhes aguardam.

* Esse artigo é dedicado a toda a população do Rio Grande do Sul, em especial para minhas amigas Betina Sulzbach e Fê Bock que trouxeram para a tragédia uma dimensão pessoal de algo que, para muitos pode (incrivelmente) parecer distante.

Texto Extraído do Site: O Futuro das Coisas.
Foto de Capa Gerada por IA.