
As notícias da última semana foram dominadas por uma postagem do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua rede social Truth Social, e pelos desdobramentos que se seguiram – além de outros ainda em curso. Em seguida, em uma carta dirigida ao presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, Trump anunciou a imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Em seu texto, alegou motivações políticas, citando o ex-presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF).
“A abertura da carta é política: ao justificar a elevação da tarifa sobre o Brasil, Trump citou Jair Bolsonaro e disse ser “uma vergonha internacional” o julgamento do ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).”
Fonte: G1
A medida desencadeou um misto de reações, não apenas por parte dos dois países envolvidos, mas também por outros atores, como a China, que se manifestou em defesa do Brasil. Desde que tomou posse, Trump vem ameaçando impor tarifas com percentuais variados a diversos países. Os decretos estão impactando não apenas as relações comerciais, mas também a percepção interna e externa do Brasil e dos EUA.
Em meio a esse choque de estratégias, surge a questão central: qual abordagem de poder está mais preparada para se adaptar ao complexo tabuleiro da geopolítica atual?
Decodificando o Poder: Hard, Soft e Smart Power
Para analisar qual país tem uma estratégia mais adaptável ao futuro geopolítico, é essencial primeiro compreender as ferramentas em jogo. Os conceitos de Hard, Soft e Smart Power, popularizados pelo cientista político Joseph Nye, oferecem uma maneira de avaliar as estratégias de cada nação.
- Hard Power: É a forma mais antiga e direta de influência:a capacidade de um país de influenciar outros por meio do uso de força militar, diplomacia coercitiva e recursos econômicos, para obter resultados estratégicos. Israel exemplifica o Hard Power ao exercer sua influência no mundo com seu poderio militar, cujo sistema de defesa “Iron Dome” se tornou símbolo dessa estratégia.
- Soft Power: É o poder da atração e da persuasão, não da coerção. Um país exerce influência sobre outros, por meio de atrativos culturais, ideológicos ou diplomáticos. A Coreia do Sul é um destaque contemporâneo do Soft Power, ao conquistar influência global com seus ativos culturais. Milhões de pessoas mundialmente consomem músicas “k-pop” e as novelas coreanas, os “doramas”.
- Smart Power: É a habilidade mais sofisticada de todas: a combinação inteligente e contextual de Hard e Soft Power. Uma nação com Smart Power sabe quando usar a diplomacia e quando demonstrar força, adaptando sua abordagem para maximizar sua influência de forma eficaz. A China ilustra perfeitamente essa estratégia ao aliar seu impressionante crescimento militar e econômico com uma vasta influência cultural e diplomática.
Com a compreensão desses conceitos, podemos explorar com mais profundidade as percepções internas e externas do tarifaço entre EUA e Brasil.

Multilateralismo vs. Unilateralismo: Duas Abordagens de Política Externa
O Brasil é reconhecido internacionalmente por sua política externa comprometida com a diplomacia. Atualmente, o país concentra seus esforços em políticas de multilateralismo, diplomacia econômica e ativismo ambiental. Essa agenda o consolidou como uma das principais lideranças do Sul Global. A prova mais recente desse prestígio foi assumir a presidência rotativa dos BRICS em 2025, grupo cujo Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) é presidido pela ex-presidente brasileira Dilma Rouseff, reeleita para o cargo.
A defesa do multilateralismo é bem recebida pelos países emergentes, mas gera desconforto nas potências ocidentais tradicionais, que veem a transição de poder global como uma ameaça. O cenário que antes era dominado pelos Estados Unidos, agora está sofrendo uma reconfiguração para um mundo multipolar, com a ascensão de novos atores globais.
Os Estados Unidos, por sua vez, oscilaram entre unilateralismo e multilateralismo nas últimas décadas, mas quase sempre com viés intervencionista e protecionista, sob o discurso de país “líder do mundo livre”. Com Donald Trump, o país adota um rumo mais focado em hard power, com traços isolacionistas, saindo de acordos multilaterais e afastando parceiros geopolíticos.
A política externa atual é punitiva e ameaça a imagem histórica dos EUA como nação defensora do livre comércio e da democracia. Esse afastamento de relações comerciais diplomáticas está acelerando a busca por alternativas para o dólar em transações internacionais. O slogan “America First” funcionou internamente nas eleições que elegeram o atual presidente, mas falha no cenário externo, pois abandona aliados históricos e isola os EUA num mundo profundamente conectado. Essas medidas ameaçam a influência dos Estados Unidos e incentivam a reorganização do cenário comercial global.
Percepção Interna: Polarização vs. União
Apesar da polarização política que marca o Brasil nos últimos anos, o “tarifaço” do Trump desencadeou um fenômeno interessante: a união (ainda que temporária) de setores tradicionalmente antagônicos. A carta dos EUA, ao mencionar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro e o STF, tentou capitalizar sobre a polarização interna, mas o tiro saiu pela culatra. A agressão criou um consenso raro em defesa dos interesses econômicos nacionais.
“Entidades da indústria e da agropecuária brasileira manifestaram preocupação com o anúncio e disseram que as taxas ameaçam empregos. A Confederação Nacional da Indústria, por exemplo, afirmou que não há qualquer fato econômico que justifique uma medida desse tamanho.”
Fonte: G1
Os efeitos tarifários assustaram e mobilizaram os maiores agentes econômicos exportadores brasileiros. Setores como mineração e agropecuária, historicamente conservadores, viram-se diretamente afetados. Esse cenário contribuiu para um ambiente propício para o fortalecimento do discurso nacionalista, contra a ingerência estrangeira. O discurso de união em torno da soberania brasileira foi ecoado pelo governo, pelos veículos de mídia, e pela população nas redes sociais. Enquanto no Brasil a medida gerou união, nos EUA ela causou um aprofundamento da polarização. A política externa de Trump, por vezes descrita como caótica, alimenta uma crise de confiança institucional. As tarifas são celebradas por sua base eleitoral que vê o protecionismo como uma vitória, mas até aliados estão com dificuldades de compreender quais seriam os benefícios a longo prazo. A popularidade interna da guerra tarifária está em declínio, e aponta para um crescente isolamento.

O Futuro Está na Adaptabilidade do Smart Power
O Hard Power dos Estados Unidos é a espinha dorsal de sua política externa há quase um século. Ele se manifesta não apenas através do maior orçamento militar do mundo e de sua presença em todos os continentes, mas também por meio de um robusto poder de coerção econômica. O domínio do dólar, o controle sobre o sistema financeiro internacional e a aplicação frequente de sanções e tarifas, como a que vemos agora contra o Brasil, são as ferramentas preferidas para impor sua vontade e disciplinar tanto adversários quanto aliados. É um poder imenso, mas que, quando usado de forma unilateral, gera ressentimento e resistência.
O Hard Power do Brasil, em contraste, não reside na força militar, mas em sua posição como uma superpotência de commodities e um pilar da segurança alimentar e ambiental do planeta. Sua capacidade de ser um dos maiores exportadores de alimentos, minérios e energia confere ao país uma alavancagem estrutural significativa. Ameaçar a economia brasileira significa ameaçar cadeias de suprimentos globais vitais. Esse poder não é usado para invadir ou coagir, mas como um lastro de importância estratégica que o torna um parceiro indispensável e, portanto, um ator que não pode ser facilmente isolado ou punido sem graves consequências globais.
Por décadas, o Soft Power dos EUA foi talvez seu ativo mais valioso. O “sonho americano” foi exportado globalmente através dos filmes de Hollywood, da música pop, da liderança de grandes marcas globais (como Coca-Cola e Apple), e do prestígio de suas universidades. Esses ativos projetaram valores de liberdade, inovação e oportunidade – o jeito americano de se viver – mantendo a imagem dos EUA no imaginário global.
O Soft Power do Brasil é multifacetado e crescente. Ele se projeta através de sua cultura vibrante e universalmente reconhecida — do Carnaval ao futebol, da Bossa Nova ao Funk. Seu cinema alcança novos patamares de prestígio, como visto com o filme “Ainda Estou Aqui”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Mais pragmaticamente, seu Soft Power é exercido através de sua diplomacia. A liderança brasileira em pautas ambientais, a defesa do multilateralismo, o modelo do SUS como referência em saúde pública e seu papel como voz influente do Sul Global conferem ao país uma autoridade moral e um poder de atração que geram alianças e confiança internacionais.
Teoricamente, os EUA possuem todos os ingredientes para um Smart Power eficaz. Contudo, a administração atual demonstra uma incapacidade de combinar seus vastos recursos de Hard e Soft Power. A estratégia “America First” é a antítese do Smart Power, pois emprega o Hard Power (“tarifaço”) de uma forma que destrói ativamente seu Soft Power (reputação como parceiro confiável e líder do livre comércio).
O Smart Power brasileiro surge como uma boa resposta ao Hard Power estadounidense. A resposta não é uma escalada simétrica, mas uma combinação inteligente de suas forças. Ele utiliza seu Hard Power econômico como um escudo, mobilizando setores produtivos internos e evidenciando os custos da ação americana para o próprio mercado global. Simultaneamente, aciona seu profundo Soft Power diplomático para construir uma coalizão de apoio, fortalecer laços com os BRICS e o Sul Global, e posicionar os EUA como um ator isolado e disruptivo. Essa capacidade de harmonizar poder econômico com credibilidade diplomática é a definição de Smart Power em ação.
Foto de Capa: The White House, United States Government Work / Ricardo Stuckert/PR