Futuros e ancestralidade – como conectar tempos e conhecimentos
LETICIA CARVALHO 12.25
Acredito que, assim como eu, vocês ficaram com alguns questionamentos a partir da leitura do Manifesto Contracolonial do Caio Esteves, portanto este artigo tem o objetivo de continuar pensando o colonialismo e o contracolonialismo, os passados e futuros e como tudo isso pode (ou não) dialogar.
Eu parto do princípio de que é fundamental compreender os passados (no plural porque é ingênuo imaginar que exista só uma história) e questionar como o imperialismo e colonialismo impactaram e impactam a nossa percepção de mundo. Como se deu o processo de priorização das ideias e concepções europeias? Como a percepção de mundo deles se tornou a real, a verdadeira, a única?
Uma das justificativas utilizadas pelos colonizadores era a necessidade de ‘salvar’ e ‘civilizar’ os povos que viviam nas terras descobertas, afinal naquele contexto aos dominadores era relacionado o conhecimento, as monarquias e a igreja julgavam o que era certo e errado, devido e indevido, belo e feio, civilizado e primitivo. Essas oposições eram utilizadas para justificar a colonização, mas não se privaram aos séculos XVI e XVII, os discursos foram aprimorados no decorrer da história.
Durante o período Vargas, a educação pública brasileira foi moldada para retirar da população pobre, negra e indígena suas singularidades e aspectos culturais com a justificativa de que era necessária certa erudição para alcançar o desenvolvimento. Neste ponto, faz-se necessário lembrar qual era o contexto geopolítico da época, teorias eugênicas eram a base do nazismo e fascismos, recebendo apoio e respaldo científico. Mas como o Brasil, país conhecido pela miscigenação alcançaria o desenvolvimento se o problema era a falta de erudição e civilização?
O processo de escolarização foi orientado para a negação e apagamento de saberes tradicionais
Os dirigentes da educação pública no Brasil na primeira metade do século XX não impediram alunos de cor de frequentarem suas escolas. Ao contrário, entre 1917 e 1945, eles se empenharem em uma série de expansões do sistema escolar e em projetos de reforma que visavam a tornar as escolas públicas acessíveis aos brasileiros pobres e não brancos que, na virada do século, eram, em sua ampla maioria, excluídos da escola. Esses educadores buscavam ‘aperfeiçoar a raça’ – criar uma ‘raça brasileira’ saudável, culturalmente europeia, em boa forma física e nacionalista. (DAVILA, 2006, p. 21)
Esse processo de apagamento é conhecido como epistemicídio (BOAVENTURA, 2010), e foi assim que, por anos, acreditamos que o que era produzido fora era melhor e que precisávamos que alguém de fora legitimasse os nossos saberes para serem aceitáveis.
Mas, qual seria o bom lugar? Existe um lugar ideal? Quem poderia definir?
Nos últimos dias, a fala do chanceler alemão Friedrich Merz sobre o alívio e contentamento de jornalistas alemães por retornarem à Alemanha gerou certo burburinho nas grandes mídias. Por que tratar Belém com tanto desdém? Quais foram os parâmetros analisados? O que o faz crer que pode avaliar, em tom de superioridade, a cultura do outro?

É incômodo observar como ideias comuns nos sécs. XI e XII continuam sendo expostas como rotineiras, como pessoas de países que exploraram, minimizaram e inferiorizaram outras culturas e países se sentem no direito de se colocar como superiores e detentores do saber.
E é para gerar incômodo!
Concordar e legitimar essas ‘opiniões’ é expor um total desconhecimento de como os passados impactam os futuros, como tratar uma versão dos fatos como a única possível altera a percepção que uma sociedade tem de si e como esse processo de violência continua consegue destruir histórias, saberes e percepções de mundo.
Só para deixar claro, eu sei que todo lugar tem defeitos. Mas, por aqui buscamos as soluções ao invés dos apontamentos.
E agora, José? O que fazer? Por qual caminho seguir?
Recentemente vi um vídeo da Bárbara Carine, Professora Doutora na UFBA, em que ela dizia sobre a importância em abraçar os diversos saberes, valorizar os marcos temporais e compreender como o conhecimento de povos originários, africanos, da diáspora e de europeus.
Portanto é importante compreender como se deu a elaboração desses conhecimentos, como contribuíram e contribuem para nossa formação, quais foram os marcos e arranjos históricos para chegarmos onde estamos.
Não podemos nos render a comodidade se queremos melhorar. Para solucionar dores e problemas latentes precisamos de soluções inovadoras que se adaptem a realidade e potencialidades de cada lugar, por isso é válido retomar aos saberes ancestrais e conectar os conhecimentos.
Futuros preferíveis, projetos inovadores
Muitos confundem inovação com ideias mirabolantes, inimagináveis ou até mesmo estapafúrdias. Mas, falar de inovação e, em especial, de projetos inovadores é falar de ideias que ainda não foram testadas e que se transformam em soluções adequadas à realidade dos lugares, pensando suas dores e potencialidades.
Os lugares possuem suas especificidades e isso deve ser valorizado ao invés negado! Afinal, a negação nos colocou nesta posição.
Portando, para conectar os passados com futuros preferíveis (as vezes, sou bastante otimista e esperançosa) é preciso passar por um processo de compreensão de mundo, uma espécie de chá de revelação social e histórico, pela necessidade de compreender e aceitar as múltiplas versões do nosso passado, a diversidade de impactos para o presente e a pluridade de futuros.
Pensar o contracolonialismo não é negar os marcos civilizatórios e a influência das ideias europeias e ocidentais, é conectar, de forma crítica e analítica, como esses processos foram impostos a nós e quais conhecimentos e saberes foram suprimidos no decorrer do processo.
Percebe que aqui estou falando de adição e não de subtração?
É hora de somar toda a nossa diversidade de passados, explorando suas possibilidades, saberes e capacidade de inovação para a construção de futuros. Futuros que não repitam os erros do passado, sem mais do mesmo, sem tampar o sol com a peneira. Futuros com soluções para os problemas que tornam a vida nos lugares penosas, para que as pessoas tenham seu direito à cidade assegurados.
Afinal, não é possível pensar em soluções para os lugares, sem colocar as pessoas no centro da questão.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula G. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945). Trad. Claudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Editora Unesp, 2006. 400p.