
“America First” x “Brasil Soberano”: Quem Ganha na Crise do Tarifaço?
CAMILA KATO 07.25
As notícias da última semana foram dominadas por uma postagem do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em sua rede social Truth Social, e pelos desdobramentos que se seguiram – além de outros ainda em curso. Em seguida, em uma carta dirigida ao presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, Trump anunciou a imposição de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros. Em seu texto, alegou motivações políticas, citando o ex-presidente Jair Bolsonaro e o Supremo Tribunal Federal (STF).
“A abertura da carta é política: ao justificar a elevação da tarifa sobre o Brasil, Trump citou Jair Bolsonaro e disse ser “uma vergonha internacional” o julgamento do ex-presidente no Supremo Tribunal Federal (STF).”
Fonte: G1
A medida desencadeou um misto de reações, não apenas por parte dos dois países envolvidos, mas também por outros atores, como a China, que se manifestou em defesa do Brasil. Desde que tomou posse, Trump vem ameaçando impor tarifas com percentuais variados a diversos países. Os decretos estão impactando não apenas as relações comerciais, mas também a percepção interna e externa do Brasil e dos EUA.
Em meio a esse choque de estratégias, surge a questão central: qual abordagem de poder está mais preparada para se adaptar ao complexo tabuleiro da geopolítica atual?
Decodificando o Poder: Hard, Soft e Smart Power
Para analisar qual país tem uma estratégia mais adaptável ao futuro geopolítico, é essencial primeiro compreender as ferramentas em jogo. Os conceitos de Hard, Soft e Smart Power, popularizados pelo cientista político Joseph Nye, oferecem uma maneira de avaliar as estratégias de cada nação.
- Hard Power: É a forma mais antiga e direta de influência:a capacidade de um país de influenciar outros por meio do uso de força militar, diplomacia coercitiva e recursos econômicos, para obter resultados estratégicos. Israel exemplifica o Hard Power ao exercer sua influência no mundo com seu poderio militar, cujo sistema de defesa “Iron Dome” se tornou símbolo dessa estratégia.
- Soft Power: É o poder da atração e da persuasão, não da coerção. Um país exerce influência sobre outros, por meio de atrativos culturais, ideológicos ou diplomáticos. A Coreia do Sul é um destaque contemporâneo do Soft Power, ao conquistar influência global com seus ativos culturais. Milhões de pessoas mundialmente consomem músicas “k-pop” e as novelas coreanas, os “doramas”.
- Smart Power: É a habilidade mais sofisticada de todas: a combinação inteligente e contextual de Hard e Soft Power. Uma nação com Smart Power sabe quando usar a diplomacia e quando demonstrar força, adaptando sua abordagem para maximizar sua influência de forma eficaz. A China ilustra perfeitamente essa estratégia ao aliar seu impressionante crescimento militar e econômico com uma vasta influência cultural e diplomática.
Com a compreensão desses conceitos, podemos explorar com mais profundidade as percepções internas e externas do tarifaço entre EUA e Brasil.

Multilateralismo vs. Unilateralismo: Duas Abordagens de Política Externa
O Brasil é reconhecido internacionalmente por sua política externa comprometida com a diplomacia. Atualmente, o país concentra seus esforços em políticas de multilateralismo, diplomacia econômica e ativismo ambiental. Essa agenda o consolidou como uma das principais lideranças do Sul Global. A prova mais recente desse prestígio foi assumir a presidência rotativa dos BRICS em 2025, grupo cujo Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) é presidido pela ex-presidente brasileira Dilma Rouseff, reeleita para o cargo.
A defesa do multilateralismo é bem recebida pelos países emergentes, mas gera desconforto nas potências ocidentais tradicionais, que veem a transição de poder global como uma ameaça. O cenário que antes era dominado pelos Estados Unidos, agora está sofrendo uma reconfiguração para um mundo multipolar, com a ascensão de novos atores globais.
Os Estados Unidos, por sua vez, oscilaram entre unilateralismo e multilateralismo nas últimas décadas, mas quase sempre com viés intervencionista e protecionista, sob o discurso de país “líder do mundo livre”. Com Donald Trump, o país adota um rumo mais focado em hard power, com traços isolacionistas, saindo de acordos multilaterais e afastando parceiros geopolíticos.
A política externa atual é punitiva e ameaça a imagem histórica dos EUA como nação defensora do livre comércio e da democracia. Esse afastamento de relações comerciais diplomáticas está acelerando a busca por alternativas para o dólar em transações internacionais. O slogan “America First” funcionou internamente nas eleições que elegeram o atual presidente, mas falha no cenário externo, pois abandona aliados históricos e isola os EUA num mundo profundamente conectado. Essas medidas ameaçam a influência dos Estados Unidos e incentivam a reorganização do cenário comercial global.
Percepção Interna: Polarização vs. União
Apesar da polarização política que marca o Brasil nos últimos anos, o “tarifaço” do Trump desencadeou um fenômeno interessante: a união (ainda que temporária) de setores tradicionalmente antagônicos. A carta dos EUA, ao mencionar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro e o STF, tentou capitalizar sobre a polarização interna, mas o tiro saiu pela culatra. A agressão criou um consenso raro em defesa dos interesses econômicos nacionais.
“Entidades da indústria e da agropecuária brasileira manifestaram preocupação com o anúncio e disseram que as taxas ameaçam empregos. A Confederação Nacional da Indústria, por exemplo, afirmou que não há qualquer fato econômico que justifique uma medida desse tamanho.”
Fonte: G1
Os efeitos tarifários assustaram e mobilizaram os maiores agentes econômicos exportadores brasileiros. Setores como mineração e agropecuária, historicamente conservadores, viram-se diretamente afetados. Esse cenário contribuiu para um ambiente propício para o fortalecimento do discurso nacionalista, contra a ingerência estrangeira. O discurso de união em torno da soberania brasileira foi ecoado pelo governo, pelos veículos de mídia, e pela população nas redes sociais. Enquanto no Brasil a medida gerou união, nos EUA ela causou um aprofundamento da polarização. A política externa de Trump, por vezes descrita como caótica, alimenta uma crise de confiança institucional. As tarifas são celebradas por sua base eleitoral que vê o protecionismo como uma vitória, mas até aliados estão com dificuldades de compreender quais seriam os benefícios a longo prazo. A popularidade interna da guerra tarifária está em declínio, e aponta para um crescente isolamento.

O Futuro Está na Adaptabilidade do Smart Power
O Hard Power dos Estados Unidos é a espinha dorsal de sua política externa há quase um século. Ele se manifesta não apenas através do maior orçamento militar do mundo e de sua presença em todos os continentes, mas também por meio de um robusto poder de coerção econômica. O domínio do dólar, o controle sobre o sistema financeiro internacional e a aplicação frequente de sanções e tarifas, como a que vemos agora contra o Brasil, são as ferramentas preferidas para impor sua vontade e disciplinar tanto adversários quanto aliados. É um poder imenso, mas que, quando usado de forma unilateral, gera ressentimento e resistência.
O Hard Power do Brasil, em contraste, não reside na força militar, mas em sua posição como uma superpotência de commodities e um pilar da segurança alimentar e ambiental do planeta. Sua capacidade de ser um dos maiores exportadores de alimentos, minérios e energia confere ao país uma alavancagem estrutural significativa. Ameaçar a economia brasileira significa ameaçar cadeias de suprimentos globais vitais. Esse poder não é usado para invadir ou coagir, mas como um lastro de importância estratégica que o torna um parceiro indispensável e, portanto, um ator que não pode ser facilmente isolado ou punido sem graves consequências globais.
Por décadas, o Soft Power dos EUA foi talvez seu ativo mais valioso. O “sonho americano” foi exportado globalmente através dos filmes de Hollywood, da música pop, da liderança de grandes marcas globais (como Coca-Cola e Apple), e do prestígio de suas universidades. Esses ativos projetaram valores de liberdade, inovação e oportunidade – o jeito americano de se viver – mantendo a imagem dos EUA no imaginário global.
O Soft Power do Brasil é multifacetado e crescente. Ele se projeta através de sua cultura vibrante e universalmente reconhecida — do Carnaval ao futebol, da Bossa Nova ao Funk. Seu cinema alcança novos patamares de prestígio, como visto com o filme “Ainda Estou Aqui”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Mais pragmaticamente, seu Soft Power é exercido através de sua diplomacia. A liderança brasileira em pautas ambientais, a defesa do multilateralismo, o modelo do SUS como referência em saúde pública e seu papel como voz influente do Sul Global conferem ao país uma autoridade moral e um poder de atração que geram alianças e confiança internacionais.
Teoricamente, os EUA possuem todos os ingredientes para um Smart Power eficaz. Contudo, a administração atual demonstra uma incapacidade de combinar seus vastos recursos de Hard e Soft Power. A estratégia “America First” é a antítese do Smart Power, pois emprega o Hard Power (“tarifaço”) de uma forma que destrói ativamente seu Soft Power (reputação como parceiro confiável e líder do livre comércio).
O Smart Power brasileiro surge como uma boa resposta ao Hard Power estadounidense. A resposta não é uma escalada simétrica, mas uma combinação inteligente de suas forças. Ele utiliza seu Hard Power econômico como um escudo, mobilizando setores produtivos internos e evidenciando os custos da ação americana para o próprio mercado global. Simultaneamente, aciona seu profundo Soft Power diplomático para construir uma coalizão de apoio, fortalecer laços com os BRICS e o Sul Global, e posicionar os EUA como um ator isolado e disruptivo. Essa capacidade de harmonizar poder econômico com credibilidade diplomática é a definição de Smart Power em ação.
Foto de Capa: The White House, United States Government Work / Ricardo Stuckert/PR