Não existe Não-Lugar. Nem Autenticidade. E está tudo bem.

EMANNUEL COSTA  10.25

Imagine-se no saguão de um aeroporto. Qualquer um. As mesmas cadeiras, as mesmas redes de cafés, as mesmas lojas duty free. Esse espaço, estranhamente familiar e impessoal ao mesmo tempo, poderia estar em qualquer lugar do mundo, não é?

Essa sensação é o que se convencionou chamar de “não-lugar”. O conceito, cunhado pelo antropólogo Marc Augé para descrever espaços de passagem com os quais não criamos laços, popularizou-se e virou um jargão fácil no vocabulário de urbanistas e players do mercado para classificar qualquer ambiente que pareça sem “autenticidade” — de aeroportos a bairros planejados.

De acordo com essa lógica, um não-lugar é, automaticamente, um espaço ruim e deve ser evitado a todo custo. O antídoto? Resgatar e promover sua autenticidade. Mas a popularização desses termos criou uma armadilha: ao virarem rótulos, diagnóstico e remédio prescritivo se tornaram superficiais e estão entregando mais do mesmo, apenas em nova embalagem.

Se não existe não-lugar, existe o quê?

Existe lugar sem lugaridade, tradução que propus em minha tese de Doutorado para o termo Placelessness, cunhado pelo geógrafo Edward Relph nos anos 1970, mas que permanece mais atual do que nunca. A discussão é longa, mas em resumo, um lugar sem lugaridade não é um lugar intencionalmente construído para ser vazio de significado, como a ideia de não-lugar pode sugerir. É apenas um lugar ausente de identidade. Sim, há diferenças.

Pense em um distrito empresarial com seus arranha-céus de vidro que, assim como aeroportos, poderiam estar em qualquer metrópole. Ou em um loteamento que vende o sonho do refúgio perfeito, mas entrega casas idênticas e ruas desertas. Ao serem projetados para priorizar eficiência e escala, esses lugares já nascem sem uma lugaridade, ou seja, sem identidade própria.

A situação é ainda mais complicada quando a lugaridade é apagada de lugares que, em algum momento do tempo, já tiveram identidade forte.É o que acontece em centros históricos, onde fachadas seculares são engolidas por letreiros chamativos de redes de farmácias e lojas de “Tudo por 10”. A “casca” da história permanece, mas a identidade do lugar se esvai a cada novo comércio inaugurado.

Claro, não se pode ignorar que nem sempre há necessidade ou tempo de criar conexões profundas com esses lugares. Mas presumir que eles são “naturalmente” desprovidos desse potencial é um julgamento superficial que está custando caro para muitos empreendimentos e destinos, porque a questão central não é a ausência de significado, mas de intenção.

A diferença que muda o jogo

Ironicamente, quem nos ajuda a entender essa diferença é uma das maiores fontes inspiradoras para criação de lugares sem lugaridade do mundo: Hollywood.

Em O Terminal, o personagem de Tom Hanks fica preso em um aeroporto, inicialmente retratado como um não-lugar por excelência. Forçado a habitá-lo, o protagonista transforma o espaço, através de pequenos rituais diários — como tomar banho, aprender um novo idioma e criar laços com funcionários — que não tem nada de “autênticos” em relação ao que se espera daquele espaço, mas que são profundamente intencionais. Ao fim do filme, o aeroporto deixa de ser um espaço “sem afeto” para se tornar o lugar do protagonista no mundo.

Já em Amor Sem Escalas, George Clooney interpreta a personificação da vida nesses ditos “não-lugares”. Ele passa mais tempo em aeroportos e quartos de hotel do que em casa; sua identidade é a própria transitoriedade. Tudo parece “autêntico” na superfície, porém o conflito do personagem revela que o problema nunca foi o aeroporto ou o hotel, mas a relação intencionalmente desapegada que ele mantinha com os espaços.

São dois lados da mesma moeda: ao contrário da ideia de não-lugar, lugares sem lugaridade não pressupõem uma sentença automática de vazio. A lição a ser tirada é que o potencial para criar significado em um espaço não depende do que ele é ou foi projetado para ser, mas do que fazemos com ele.

O problema é que não basta ser autêntico, precisa parecer que é autêntico

A origem dessa “pequena” confusão reside em um momento bastante singular da experiência humana. Em um mundo cada vez mais saturado de opções, como aponta o filósofo Gilles Lipovetsky, a busca por “ser si mesmo” se tornou a grande ética do nosso tempo, o zeitgeist do comportamento que está presente no que vestimos, comemos e, principalmente, nos lugares que habitamos e visitamos.

Traduzindo: os lugares viraram reféns da projeção dos anseios e desejos coletivos sobre a experiência urbana. Bairros planejados não vendem mais casas com bom custo-benefício, prometem “vida conectada à natureza”; destinos turísticos não se contentam mais com bom serviço de hospitalidade, oferecem pacotes de “imersão cultural”.

Na prática? Os empreendimentos continuam entregando o mesmo paisagismo padronizado de 20 anos atrás, e as experiências turísticas continuam genéricas e caricatas (apenas ficaram mais caras).

E nada disso acontece por má intenção. Muito pelo contrário, é somente o reflexo de anos errando o investimento de intenção na hora de planejar o lugar. Afinal de contas, se o diagnóstico inicial — “não podemos ser um não-lugar!” — é incompleto, o remédio da “autenticidade” é, consequentemente, parte do mesmo problema.

Mas se tudo é autêntico, então nada é autêntico

Quando a bússola da intenção aponta para a “autenticidade” como um produto em si, o resultado é a produção de lugares — o Placemaking, de fato — ainda mais vazios de significado. Do ponto de vista estético,podem até agradar. Contudo, no filtro da experiência, essa conta não fecha.

É um ciclo vicioso: o mercado identifica os códigos estéticos do que é “autêntico” — o tijolo aparente, a madeira de demolição, a história “resgatada” — e os replica à exaustão. O propósito original se perde e só resta a casca. A busca incessante por diferenciação competitiva está nos aprisionando em um paradoxo: quanto mais tentamos fugir do genérico, mais genéricos nos tornamos.

A grande ironia é que, no fim das contas, um aeroporto funcional, honesto em seu propósito de ser um espaço de passagem eficiente, se torna mais “autêntico” do que o bairro projetado para simular uma vivência que ele não é capaz de entregar. O aeroporto não promete uma experiência transformadora, mas tampouco sua função desabona a possibilidade de passageiros, tripulações e funcionários desenvolverem algum tipo de identificação com aquele lugar.

O problema, portanto, não está no afeto projetado, mas na obsessão por um ideal de autenticidade que, de tão replicado, se tornou uma miragem. Não vivemos uma crise de criatividade; vivemos uma crise de propósito.

Afinal, não existe não-lugar; existe espaço à espera de lugar, porque todo metro quadrado, quando habitado pela intenção humana, gera significado.

E, da mesma forma, não existe autenticidade; existe ação com intenção, porque a identificação não pode ser copiada pela estética, apenas sentida na experiência.

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Referências:

Augé, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.

Lipovetsky, Gilles. La consagración de la autenticidad. Barcelona: Anagrama, 2024.

Relph, Edward. Place and Placelessness. Londres: Pion, 1976.