Tenho que terminar com o meu barbeiro.

EMANNUEL COSTA  09.25

Tenho que terminar com o meu barbeiro. Essa frase tem ecoado na minha cabeça nos últimos meses com o mesmo peso de uma confissão de adultério, o que é um completo absurdo, afinal de contas, eu pago pelo serviço, ele executa. Uma transação capitalista, cotidiana e ordinária.

Mas em algum momento nos últimos cinco anos, essa troca comercial se tornou um relacionamento moderno e sincero, que envolve um rendez-vous por mês sem tempo para DR, apenas uma confiança cega em ficar com o rosto coberto por uma toalha quente enquanto a própria jugular está sob a lâmina afiada de outro homem.

O problema é que toda confiança gera intimidade. O Mika – sim, ele tem um nome, o que só piora a situação – guarda segredos que nem meu terapeuta conhece. Ele sabe, por exemplo, que embora meu fio de cabelo seja fino e liso, após atingir certo comprimento, começa a se rebelar de tal maneira que, de duas uma: ou vira um mullet de ator pornô dos anos 1970, ou me deixa igual o Beiçola.

Em um dos nossos encontros no ano passado, mostrei uma foto de um modelo genérico do Pinterest, alegando que estava na hora de dar uma mudada no visual. Ele, com a sutileza de um diplomata da ONU, disse: “Tipo Old Money, né? É um corte bacana, mas acho que a gente pode dar uma adaptada pra você ter menos trabalho no dia a dia”. Ele me salvou de mim mesmo.

Apesar de tudo isso, tenho que terminar com o meu barbeiro. Estou de mudança para outra cidade, e a tarefa de encontrar um sucessor para o Mika veio se transformando num problema complexo, até virar briefing de projeto na minha já sobrecarregada cabeça de pesquisador:

“Problemática: onde encontrar provedor de serviço capilar que minimize o risco de desastre estético e social, garantindo a continuidade da identidade do usuário?”

A primeira fase da pesquisa, exploratória, foi um desastre. Passei duas últimas semanas na futura nova cidade resolvendo pendências pré-mudança e, em momentos de desespero ou tédio, abri o Google Maps e digitei “barbearia perto de mim”. Por outro lado, durante minhas andanças, analisei friamente toda e qualquer barbearia que cruzou meu caminho, como um crítico de arte avaliando uma obra de gosto duvidoso. Encontrei basicamente duas opções.

A primeira eu chamei de Barber Shop: fachada pretensiosa, frequentemente com nome em inglês, porcelanato xadrez e uma estética que me faz perguntar se ali funciona uma barbearia, um coworking ou a casa do Caio Castro. Nessas, não me arrisquei nem olhar a tabela de preços, apenas conseguia pensar em que desculpas teria que dar para recusar a cerveja artesanal de 40 reais, ou na humilhação de não entender as diferenças entre os tipos de cera para bigode.

O segundo tipo, no extremo oposto desse espectro, chamei de Barbearia Vargas: pequenas salas comerciais, frequentemente no térreo ou sobreloja de edifícios antigos, onde senhores de meia-idade reclamam do casamento e trocam dicas sobre compra de sítio e troca de carro, enquanto uma TV posicionada perigosamente perto do teto transmite algum filme que ninguém assiste de verdade, mas que serve de trilha sonora para o debate sobre qual montadora perde menos valor na tabela FIPE.

Apesar de diferentes em essência, alma e caráter, o problema é que, independentemente da opção, eu sei que assim que eu puxar a porta de vidro, a conversa vai morrer, as cabeças vão virar e eu serei analisado dos pés à cabeça durante três longos segundos. Depois, vou explicar minha ideia para o candidato ao posto de novo barbeiro e receber como resposta um olhar de desprezo silencioso, seguido do único corte que eles dominam: máquina dois dos lados, tesoura em cima e um pós-barba com álcool suficiente para esterilizar um centro cirúrgico.

Na Barber Shop eu corro o risco de estourar o limite do cartão; na Vargas, as chances são de eu sair fantasiado de mim mesmo, só que vinte anos mais velho. Como escolher, então? Cheguei a imaginar alguns testes nos primeiros meses com considerações tabuladas numa planilha.

“Corte excelente, mas o cara não para de falar de política.” –  Risco altíssimo.

“Ótimo papo, mas pensa numa mão pesada.” – Risco existencial.

“Central, barato e rápido.” –  Risco de ser confundido com um recruta do exército.

Mas como todo bom – ou mau, dependendo do referencial – pesquisador, logo me veio o feeling de que algo de errado não estava certo. Oras, se meu cabelo não é produto e essa não é uma pesquisa de mercado, qual o sentido de um critério de análise da qualidade do barbeiro?

Foi aí que me lembrei de uma conversa fiada com o Mika, meses atrás, sobre um projeto musical que ele estava desenvolvendo. Ao sentar na cadeira no mês seguinte, perguntei: “E aí, Mika, gravou?”, ao que ele, todo orgulhoso, passou tanto tempo me mostrando e contando os detalhes das gravações que quase esqueceu de cortar meu cabelo.

A grande catarse deste evento masculino canônico chamado trocar de barbeiro é reconhecer que, antes de procurar um bom prestador de serviço, trata-se de encontrar o diferencial que não consta em nenhuma tabela de preços: a sensação de viver o pequeno ritual mensal que me ancora na cidade, que me faz sentir conhecido e que, de alguma maneira, me enraíza no lugar onde estou.

Em “A Invenção do Cotidiano”, Michel de Certeau diz que caminhar é ter falta de lugar, e o que é o cotidiano, senão viver em constante trânsito – de ideias, desejos e experiências? O que transforma uma cidade, qualquer cidade, em “casa” não é uma boa proposta de emprego, nem a sensação de segurança, nem um agitado semanário cultural, mas esses pequenos oásis de familiaridade – da portaria do prédio do seu amigo que libera sua entrada antes de você tocar o interfone à barbearia onde um cara entende o seu cabelo melhor do que você mesmo. São esses pontos de afeto que, mesmo aparentemente impessoais, nos fazem sentir que pertencemos.

Tenho que terminar com o meu barbeiro, e o corte que me preocupa não é o do cabelo, mas sim do laço com quem me fez sentir em casa durante muito tempo. Eis, enfim, a grande ironia: eu, que ganho a vida tentando entender como as pessoas se conectam com os lugares, agora me vejo no próprio papel de alguém buscando essa conexão.