Cristo não é a salvação: reflexões sobre marcas-lugar

CAIO ESTEVES  04.25

O município gaúcho de Encantado, que recentemente inaugurou uma estátua de Cristo, maior que a do Rio de Janeiro, acredita que a grandiosidade da obra atrairá turistas e impulsionará a economia local. Exemplos como esse não são incomuns mundo afora. Durante muito anos acreditou-se que os marcos simbólicos, que vão de estátuas à arquitetura de “grife” seriam suficientes para transformar um lugar não só em um destino, mas como em uma “marca-lugar”. Embora a inauguração de um marco como esse possa, de fato, chamar a atenção do público e da mídia em um primeiro momento, é um erro comum acreditar que o simples “hardware” – ou seja, a infraestrutura física – é capaz de, por si só, transformar um lugar. Há tempos venho reforçando que um lugar deve ser abordado a partir de três dimensões essenciais para seu fortalecimento e reconhecimento e que, para que um lugar ser percebido como desejado e memorável, é preciso muito mais do que monumentos imponentes, ou seja, é preciso ir além do Hardware.

O que é marca-lugar?

O place branding, expertise responsável pela criação de marcas-lugar, envolve uma série de práticas e estratégias para identificar, comunicar e reforçar a identidade única de uma cidade, região ou país. Ao contrário do que muitos pensam, ela não se resume a um logotipo, um slogan ou a uma grande obra arquitetônica. Defendo que a criação e gestão de uma marca-lugar deve ser centrada naquilo que a cidade realmente é e no que ela oferece de singular, para então conectar esses atributos com as expectativas e desejos de seus públicos prioritários. Essa “singularidade” é, por sua vez, o coração de uma marca-lugar, o sentimento, a ideia, o ideal, que aquele lugar é capaz de promover e entregar. Há muito tempo uma marca deixou de ser simplesmente uma promessa, e se transformou na entrega dessa promessa. É preciso falar e influenciar, mas principalmente, é preciso fazer.

Hardware, software e peopleware

Se uma marca-lugar é muito mais do que seus elementos construídos e atributos físicos, o que mais a compõe? No meu primeiro livro, “Place Branding” de quase dez anos atrás, abordo os lugares através de três dimensões fundamentais: Hardware, Software e Peopleware.

  1. Hardware: Refere-se às estruturas físicas – prédios, monumentos, parques, estradas, museus etc. Sem dúvida, o hardware é essencial para oferecer condições básicas de funcionamento e até para atrair um primeiro olhar de curiosos e visitantes.
  2. Software: Diz respeito ao que faz a cidade “acontecer”, suas atividades, sua programação de eventos, o uso ativo dos espaços públicos e, em última instância, as políticas e programas que ativam a cidade.
  3. Peopleware: É o fator humano que determina se a experiência de visita será marcante ou não. Esse conceito engloba a cultura local, o acolhimento, a hospitalidade. Sem as pessoas e suas histórias, nenhum monumento – por mais grandioso que seja – consegue criar uma identidade forte.

Um Hardware bem-feito, resumido a um monumento, pode até se transformar em um cartão postal, porém sem uma estratégia de desenvolvimento humano e cultural (o “peopleware”) e uma visão viva, ativa e integrada (o “software”), esse monumento corre o risco de se tornar apenas um fundo para fotos, sem reter os visitantes por tempo suficiente a ponto de impactar a economia local.

Exemplos que confirmam essa visão

Cidades de todo o mundo já investiram fortunas em projetos arquitetônicos ambiciosos que, depois de inaugurados, se tornaram verdadeiros “elefantes brancos” por falta de estratégias de uso, programação cultural ou articulação com a comunidade. No contexto brasileiro, há casos de cidades que construíram grandes estádios ou centros de convenção esperando atrair visitantes e fomentar o desenvolvimento. Contudo, muitos desses locais enfrentam dificuldades em se manter ao longo dos anos justamente por não terem estabelecido parcerias sólidas, calendários de eventos contínuos e uma identidade capaz de despertar o desejo de retorno. Ou seja, é preciso pensar o software antes do hardware. Não são poucos os exemplos de lugares que se transformaram em pontos de atratividade sem serem pensados para isso originalmente, ou seja, passaram por uma ocupação espontânea (ou não), mas o fato é que se tornaram mais atrativos do que o projeto original reservava para eles. Beco do Batman em São Paulo, Tempelhof Field em Berlim, High Line em Nova Iorque, Feira do Largo da Ordem em Curitiba… exemplos não faltam para, em maior ou menor escala, provar o ponto de que o que acontece é tão, ou mais, importante do que onde acontece.

Um homem anda de longboard em uma pista de asfalto, sendo impulsionado por um pequeno paraquedas de tração com listras vermelhas, brancas e pretas. Ele usa capacete verde, mochila e roupas de frio. À esquerda da imagem, uma mulher empurra um carrinho de bebê, vestida com casaco preto e capuz. O cenário ao fundo mostra uma área aberta com grama e construções distantes sob um céu nublado.

Marca-lugar e identidade viva

Sempre reforço a ideia de que o desenvolvimento de uma marca-lugar forte depende de um alinhamento contínuo entre o que a cidade é, o que ela diz que é e o que as pessoas efetivamente experimentam ali. Dizer que uma cidade é acolhedora, inovadora ou culturalmente rica precisa corresponder a experiências reais para o visitante. Caso contrário, cria-se um descompasso que, no longo prazo, prejudica a reputação e a credibilidade do lugar criando um sentimento ainda pior que o desconhecimento, a frustração.

Nesse sentido, a inauguração de um monumento gigante pode servir como ponto de partida para colocar a cidade no mapa do turismo. Porém, sem boas práticas de governança, sem serviços de qualidade (hotéis, restaurantes, transporte, segurança) e, principalmente, sem a participação ativa da comunidade local, a estátua dificilmente se converterá em um ícone de um destino relevante e amado. Turistas do mundo todo são cada vez mais guiados pela autenticidade, um único “landmark” é facilmente superado por uma experiência mais ampla e autêntica, a gastronomia local, uma história bem contada, uma comunidade hospitaleira e a possibilidade de interagir com a cultura local.

Planejamento e participação da comunidade

Um dos pontos que sempre destaco é a necessidade de planejamento participativo. Quando a comunidade local se sente parte do processo de construção ou fortalecimento da marca-lugar, ela tende a cuidar melhor do patrimônio, a receber bem os visitantes e a desenvolver produtos e serviços ligados às tradições e saberes locais. Por outro lado, quando a iniciativa é pensada de forma impositiva, sem ouvir os anseios e ideias da população, corre-se o risco de criar algo artificial, sem conexão real com a história e a cultura do lugar. Ou seja, a comunidade é essencial ao processo de construção de uma marca-lugar, não só como fonte primária de informação, mas principalmente como, termo que meio que saiu de moda, embaixadores do lugar. É preciso que a comunidade entenda realmente a sua função nesse ecossistema e o quanto ele depende e retorna para ela. Para isso, transparência nos processos de governança também é um item essencial que caminha lado-a-lado com o engajamento da comunidade.

Cidades que apostam em monumentos emblemáticos, mas negligenciam a participação efetiva da comunidade, e tudo o que acontece nela, tem maior propensão a cultivar um distanciamento entre moradores e visitantes, impactando profunda e determinantemente (de forma negativa, obviamente) a experiência dos visitantes e dificultar a consolidação do destino no imaginário coletivo.

Conclusão

Para que um lugar se torne uma marca-lugar forte, não basta investir em grandes estruturas físicas. É fundamental trabalhar o “software” e “peopleware”, de forma integrada ao hardware (quando necessário) para que juntas, essas três dimensões possam oferecer experiências acolhedoras, únicas e autênticas. Um monumento pode sim ser a centelha de uma transformação positiva, mas isso só deverá acontecer se estiver aliado a uma estratégia ampla e sistêmica que valorize a história local e coloque as pessoas no centro do processo.

Portanto, quando uma cidade inaugura uma estátua de Cristo, maior que a do Rio, ela pode até chamar a atenção em um primeiro momento. Mas, se não houver esforço coletivo para gerar experiências marcantes, conteúdo cultural relevante e um verdadeiro sentimento de pertencimento, o monumento corre o risco de se tornar apenas, quando muito, mais uma “selfie” no roteiro de viagem, sem maior impacto no desenvolvimento local e sem fortalecer a marca-lugar a longo prazo. O verdadeiro desafio está em criar conexões humanas e culturais que façam o visitante querer voltar e o morador sentir orgulho do lugar em que vive.